Metas para o Supremo Tribunal Federal
Fernão Borba Franco*
Fê-lo, entretanto, com atraso. Grande e prejudicial atraso, cuja magnitude é aumentada pela própria grandeza das funções do STF, pela relevância e alcance de suas decisões.
O STF – não se é Supremo à toa! – tem como sua mais relevante missão constitucional a de declarar diretamente, e de forma definitiva, a inconstitucionalidade de leis, inclusive a de Emendas à Constituição. Não é pouca coisa, e nem missão para tímidos, consideradas a relevância e repercussão de suas decisões, repercussão essa longe de ser apenas midiática, mas efetivamente prática.
A inconstitucionalidade declarada não teve qualquer efeito prático, pois o prazo do parcelamento já havia decorrido, quando da decisão por todos os ministros. Pior: como foi determinado novo parcelamento, e desta vez muito pior que o anterior, pois em uma das hipóteses sequer há prazo determinado para o pagamento integral, a decisão trouxe foi mais insegurança jurídica, exatamente o contrário do que deveria acontecer e se pretende evitar com o controle concentrado de constitucionalidade.
Mais grave é que o assunto a respeito do qual foi declarada a inconstitucionalidade é hoje dos mais sérios, pois diretamente referente ao controle do poder da Administração. Na verdade, de acordo com a letra da Constituição, hoje a Administração é praticamente irresponsável no Brasil. Sem sermos uma monarquia há quase cem anos, descobrimos que 'the king can do no wrong', ou pior, pode até errar, mas não poderá ser obrigado a reparar o dano!
Traduzo em linguagem civil o que disse em juridiquês: de acordo com as Constituições, desde a de 1946, o Estado paga seus débitos, reconhecidos judicialmente, por precatórios, ordens de pagamento que devem seguir uma ordem de precedência. A partir de 1988, entretanto, esses precatórios foram parcelados, primeiro em oito vezes, depois em dez (a que foi declarada inconstitucional) e agora em suaves prestações, a serem pagas até o Inferno esfriar.
E a que se referem essas prestações? A tudo o que se pode imaginar, mas com um ponto em comum: são relativas a deveres que o Estado brasileiro (União, Estados, Municípios, Distrito Federal, autarquias e fundações públicas) deixou de cumprir. Por isso é que se alertou do risco institucional: sem um meio para obrigar o Estado a cumprir suas obrigações, como ficam os cidadãos, as pessoas físicas e jurídicas, a ele submetidos? Na prática, isso significa que o Estado está além de qualquer controle institucional, que é feito, deve ser feito e não pode deixar de ser feito pelo Judiciário.
Ora, mas o Judiciário não funciona, como todos sabemos. Sabemos mesmo? Afirmo que funciona, e relativamente bem, a não ser quando não tem como funcionar (como fazer com quem não tem dinheiro pagar uma dívida? Como fazer com que criminosos não se comuniquem com seus advogados, se essa possibilidade é garantia constitucional e legal?) ou quando sabotado (como, por exemplo, quando o governante recusa cumprir ordens judiciais que reputa injustas, o que ocorreu recentemente no Pará e até causou intervenção Federal no Estado para fazer com que a Governadora então eleita, mas não reeleita, cumprisse seu dever institucional).
Neste caso, o Judiciário está sendo sabotado, e duplamente sabotado.
Sabotado pelo constituinte derivado, que desse modo escuso modifica cláusula constitucional que não pode ser reformada (cláusula pétrea) porque, dessa maneira, acaba o equilíbrio entre os poderes, equilíbrio que é o fiel da balança entre Executivo, Legislativo e Judiciário, cujos poderes se complementam e limitam.
E sabotado pelo STF, por incrível que pareça. Mas é isso mesmo. Qualquer estudante de primeiro ano do curso de Direito conhece a frase de Rui Barbosa, em sua Oração aos Moços: Justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta.
No caso, a injustiça é realmente manifesta, e realmente qualificada, embora Rui Barbosa, com toda sua inteligência, não pudesse pressentir, na época, o quanto seria acertada sua frase. Na época, ao Judiciário não cabia esse controle; na época, não havia um Estado Democrático de Direito tal como hoje o concebemos; na época, o Judiciário arbitrava conflitos entre particulares e, veja-se, já se identificava perfeitamente a conseqüência da excessiva demora nas decisões judiciais.
Hoje o mundo é diferente, é mais rápido, é mais coletivo; a função do Judiciário é diversa, é mais ampla, é mais abrangente, é mais relevante. Rui Barbosa nunca imaginaria que o mundo tivesse um dia a velocidade de hoje.
O mundo, enfim, não pode esperar. O problema da demora das decisões judiciais, que existiu em todas as civilizações desde Roma, é por isso mais pungente, e não há consenso sobre como superá-lo (ou mesmo se isso é possível).
Entretanto, é certo que a redução da gravidade do problema causou algumas mudanças legislativas importantes, dentre as quais se destaca a chamada Reforma do Judiciário. Entre outras medidas de impacto, criou o Conselho Nacional de Justiça e as súmulas vinculantes. O Conselho Nacional de Justiça deve limitar-se a questões administrativas – não é órgão judicial, mas exatamente de controle administrativo – e vem manifestando preocupação com a demora nos processos, tanto que instituiu as metas para julgamento de demandas iniciadas há certo tempo, metas essas renovadas anualmente.
Estes processos, entretanto, são na maior parte daqueles que conhecia Rui Barbosa; demandas envolvendo interesses particulares, que não tinham relevância para os que não estavam envolvidos nessas particulares relações jurídicas.
Outro tipo de processo existe, e ainda bem; são processos em que o resultado influi nas relações jurídicas de muitas pessoas, além dos que participam das relações jurídicas específicas; são processos que envolvem interesses coletivos, quer relativo a um grupo determinado, determinável ou indeterminável de pessoas. Veja-se, portanto, a extensão e relevância dessas distinções.
Dentre esses processos, estão os que tratam das demandas diretas, propostas perante o STF, cujo objeto é a inconstitucionalidade das leis, que se aplicam a todos. Ora, declarada inconstitucional a lei, não pode ser aplicada, e essa decisão vincula – lembram-se da menção a 'súmula vinculante' a todos, inclusive, ou principalmente, a Administração Pública.
Estes processos são os que podem contribuir decisivamente para reduzir a lentidão do Judiciário (que é em grande medida inexorável; leva tempo conseguir um grau razoável de certeza a respeito de fatos relevantes): impedem novos processos e geram certeza a respeito da aplicação de leis duvidosas.
Por isso, são de extrema importância; o STF, entretanto, ainda parece em grande parte não se ter modernizado. Parece, em verdade, o mesmo Tribunal dos tempos de Rui Barbosa. Não se pode criticar o estudo, a prudência, o capricho nas decisões. Pode-se, entretanto, criticar a demora excessiva, que torna inúteis as relevantes decisões que devem ser tomadas a tempo útil!
O exemplo da decisão, correta e bem tomada, mencionada no início deste artigo, é bem característico. Demorou tanto que ficou inútil e até prejudicial. Inútil porque o dispositivo já se havia esgotado; inútil porque, durante todo esse tempo (dez anos, dois lustros, uma década!), não foi cumprido o dispositivo constitucional excepcionado pela regra inconstitucional, e impossível apenar quem deixou de cumprir a obrigação institucional. Prejudicial não apenas por tudo isto, mas também porque, em vista do novo dispositivo constitucional semelhante, instaurou-se dúvida, objetiva e grave, a respeito da constitucionalidade dessa nova norma, e dúvida a respeito da cláusula constitucional da divisão e controle do poder da Administração Pública.
Já se vê que o STF pode ser tão relevante quanto relevantes são suas decisões. Já é tempo que o STF veja que sua relevância não é a mesma relevância que tinha no tempo de Rui Barbosa, mas a relevância que deve ter atualmente.
Para isso, suas decisões devem ser oportunas, tomadas a tempo; se isso não acontecer, o STF não terá atingido a contento sua função constitucional. Essa, a busca de soluções efetivas e oportunas, evitando disputas o quanto possível, é a Meta que se propõe ao STF, em matéria que nada tem de administrativa – por isso não é da conta do CNJ – mas de jurisdicional, no sentido de necessária, indeclinável e indispensável manifestação do poder constitucionalmente outorgado.
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*Juiz de Direito em São Paulo/SP
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