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Direito das obrigações no novo CC brasileiro e o regime jurídico de inadimplência contratual

Pinçarei, apenas, algumas das mais destacadas modificações que sofreu o regime jurídico das obrigações, entre nós, por força da promulgação do novo Código Civil. O intuito principal é o de apenas mostrar as questões, sem maior análise crítica, tendo em vista que o ponto central a ser cuidado – o da inadimplência contratual – exigirá um acento um pouco mais detalhado.

16/11/2010


Direito das obrigações no novo CC brasileiro e o regime jurídico de inadimplência contratual1

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka*

Sumário: 1. Para abrir e delimitar o tema. 2. O Código Civil de 2002 e as regras gerais atinentes às obrigações, contidas nos quatro primeiros Títulos do Livro I da Parte Especial. 3. A inadimplência obrigacional e a sua análise no seio do contrato.

1. Para abrir e delimitar o tema

Certamente não haverá outro – ou um melhor – modo de se iniciar uma reflexão acerca do direito obrigacional na contemporaneidade, senão o de referir, a respeito dele, o seu lento perfil de modificações e a sua baixa sujeição às transformações. Quantas vezes se o disse! E a autorização para dizê-lo de novo agora, e repetir sempre, se ancora numa sólida tradição romana à qual se encontra atrelado. Disseram-no os nomes de escol que influenciaram o direito ocidental dos anteriores séculos, e disseram-no os respeitabilíssimos destaques de autoridade jurídica, no anterior século, como por exemplo – e principalmente – Antunes Varela2, Giorgio Giorgi3, Gustav Radbruch4, para citar apenas estes, por escolha, entre inúmeros outros.

Dois focos, dois prismas, duas visões não auto-excludentes, mas sim complementares, na ótica do que é possível conferir, hoje, nas relações creditícias e nas estruturas contratuais da contemporaneidade: a estática e a dinâmica. Vale dizer: o direito das obrigações, em comparação com outros ramos do direito privado, tende a se mostrar menos mutável que os demais ramos, tende a evoluir de modo mais lento, externando uma teoria geral que pouco se altera, quer do ponto de vista da circunstância espacial, quer do ponto de vista da circunstância temporal. Nem por isso – e pela outra visão – deixa de dinamizar-se, o direito das obrigações, uma vez que nem mesmo esta perenidade da disciplina jurídica tem impedido que a atividade privada e a prática contratual se modifiquem profundamente5.

Se esta duplicidade de enfoques é mesmo verdadeira, o é porque enxerga o fenômeno jurídico do ponto de vista do objeto das relações jurídicas e da função que estas últimas desempenham no mundo do ser. A função primordial das relações obrigacionais, então, é colocar-se à disposição do desenvolvimento do fenômeno de colaboração econômica entre os homens; para tanto, o legislador traça as regras supletivas para esta atividade, desenhando os seus possíveis contornos, assim como – na feliz expressão de Antunes Varela6 - faz o matemático quando põe em evidência os fatores comuns de uma expressão algébrica e encerra entre parênteses aquilo a que o comum se refere. O legislador, ao seu turno, também faz ressaltar as regras comuns a todas as relações creditórias, bem como aos negócios jurídicos em geral. Mas, e além disso, o legislador contemporâneo tem se mostrado um pouco mais atento em relação ao recorte simplesmente liberal e individualista que marcava e caracterizava o olhar do anterior século, para passar a exprimir, na construção normativa, uma maior preocupação valorativa, a partir do seu berço constitucional, o que admitiu, por fim, a consagração de um maior solidarismo e eticidade nas relações contratuais.

O expoente máximo desta revisão axiológica, no direito obrigacional e, por conseguinte, no contrato, se expressa pela recepção de novos princípios (o da liberdade contratual, o da função social do contrato, o do equilíbrio das prestações, entre outros), que se alinharam ao princípios tradicionais ou clássicos (o da liberdade de contratar, o da relatividade das obrigações contratuais, o da obrigatoriedade das convenções, entre outros) e matizaram com os tons da exigência social hodierna as mesmas relações privadas de outrora, que não se alteraram, mas que são visitadas, interpretadas e resolvidas por um contemporâneo e coerente modo de se o fazer.

Ainda assim, não se permita que a ilusão ou o otimismo apressado tomem o assento da tranqüilidade, pois o que a realidade mostra é que, na maior parte dos ordenamentos romano-germânicos, o tecido normativo das obrigações tem se mantido imune a qualquer projeto de reforma, não merecendo mais que alterações tímidas da parte do legislador.7

Também é assim no Código Civil brasileiro, promulgado em janeiro de 2002. Não suficientemente avançado, mas até de certa forma acanhado, o Código, foi preciso deixar à doutrina e à jurisprudência, nestes cinco anos de sua vigência, o cuidado maior de adequadamente interpretá-lo, retirando dele a base e a cobertura constitucionais indispensáveis à hercúlea tarefa, e procurando bem construir a rica e proveitosa ambiência que alberga as chamadas cláusulas gerais. Assim, a melhor doutrina brasileira, por exemplo, já identificou o fundamento constitucional da boa fé objetiva, consagrou a construção útil (embora não incontestável) da sua tríplice função (adjuvandi, supplendi e corrigendi), enfatizou o seu papel de oxigenação do sistema obrigacional, construindo-lhe, em síntese, um arcabouço teórico dos mais respeitáveis.8

Modificações assim ocorreram, nos diversos países e nas mais variadas regiões de maneira bastante homogênea e simultânea, neste tempo em que as comunicações se aceleraram e as distâncias entre os povos tendem à virtualidade, construindo um crescente reclamo de conforto pelo indivíduo, na expressão sempre refinada de Silvio Rodrigues.9

'Rodolfo Sacco10 chama a atenção para uma característica muito peculiar da origem remota da obrigação enquanto liame jurídico: para este professor da Universidade de Turim a obrigação nasce, ainda no período neolítico, por uma questão de necessidade econômica, de impossibilidade pessoal para a obtenção de todas as necessidades individuais. É, assim, o coletivo que se 'obriga' a facilitar a consecução das necessidades de um de seus membros o qual, posteriormente, se sente na obrigação de retribuir. A fonte da obrigação é, então, a necessidade de grupo.

Essa mesma necessidade de grupo permanece presente, ainda que latente, quando se atenta para o seguinte: uma necessidade de repudiar e corrigir um desequilíbrio, um enriquecimento desproporcionado. Por isso, quem experimenta uma vantagem, fica obrigado a proporcioná-la, de forma justa e equivalente, àquele que lha proporcionou. Aqui, a prestação é anterior à obrigação, tal como ocorre, segundo lembra o mesmo autor, nos contratos de fato, nos quase-contratos.

Mas é da natureza, ou da fraqueza humana como preferirão alguns, transformar rapidamente as necessidades econômicas em ambições. Acumular capital, aumentar o patrimônio. Não é difícil imaginar os engenhos arquitetados pela alma humana no sentido de se safar do cumprimento de uma obrigação, depois de ter já auferido a prestação. Bem por isso, as regras relativas ao cumprimento foram sendo talhadas. As prescrições para os casos de perda do objeto por culpa de quem o detivesse ou de impossibilidade da observância do dever foram, a pouco e pouco, se desenvolvendo.

Mas também não é difícil perceber o interesse quotidiano de todos no bom cumprimento das obrigações e as sensações de justiça que isso desperta. E aqui está a explicação para o enorme desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial da matéria até nossos dias. Desenvolvimento este que não foi só grande. Foi também e principalmente sólido. Aqui a razão de certa imutabilidade nos conceitos e nas normas, a que não ficou imune o Código Civil do Brasil.'11

2. O Código Civil de 2002 e as regras gerais atinentes às obrigações, contidas nos quatro primeiros Títulos do Livro I da Parte Especial12

A partir daqui, pinçarei, apenas, algumas das mais destacadas modificações que sofreu o regime jurídico das obrigações, entre nós, por força da promulgação do novo Código Civil. O intuito principal é o de apenas mostrar as questões, sem maior análise crítica, tendo em vista que o ponto central a ser cuidado – o da inadimplência contratual – exigirá um acento um pouco mais detalhado.

'O primeiro Título, portanto, do Livro I da Parte Especial cuida das modalidades das obrigações, ou seja, desenha o perfil das obrigações tal qual elas podem se expressar no mundo do ser. O primeiro perfil é, então, aquele pelo qual uma ou mais pessoas se obrigam diante de outra ou outras a entregar uma coisa. Nesse caso, então, a prestação se verifica em um objeto que é dado, em virtude do acordo de vontades. Este objeto que é dado pode ser uma coisa certa ou incerta, como se sabe. A única modificação substancial que este modelo de obrigação sofreu no novo Código está assente no art. 245, segundo o qual, quando se trate de obrigação de entrega de coisa incerta, passam a vigorar as regras atinentes à obrigação de dar coisa certa, com a conseqüente distribuição da culpa pelo perecimento eventual do objeto, assim como as regras a respeito dos frutos e melhoramentos, não mais a partir do momento em que a escolha é efetivada, mas sim do momento em que esta escolha foi levada ao conhecimento da outra parte. Mas, observe-se: as regras não mudaram; mudou apenas um pormenor.

O segundo grande modelo traçado pelo legislador e que diz respeito também ao objeto da prestação é aquele relativo quer à facção, quer à não facção de uma certa tarefa. Refiro-me às obrigações de fazer e não fazer. Nestes modelos o legislador incluiu uma regra nova, repetida quer no art. 249, quer no art. 251, regra esta que permite ao credor, verificada a urgência que requeira a medida, e independentemente de autorização judicial para tanto, mandar executar o fato, às suas expensas, ressarcindo-se do prejuízo ao depois, ou desfazer aquilo a que o devedor era obrigado a não fazer, cabível também o posterior ressarcimento, sempre pelo devedor. É óbvio que no curso da ação de ressarcimento deverá o credor demonstrar que a situação era de urgência extrema que lhe impedia até a tentativa de buscar autorização judicial para tanto.

O segundo Título deste mesmo Livro trata da transmissão das obrigações e se reporta substancialmente, em dois Capítulos, à cessão de crédito, que no Código anterior tinha o status de Título, e à assunção de dívida, figura não tratada no Código Civil de 1916.

Relativamente à cessão de crédito uma importante modificação foi procedida, do ponto de vista positivo. Trata-se da previsão, agora expressa, de que o cessionário de boa-fé não poderá ser confrontado com uma eventual cláusula que proibisse a cessão do crédito, se tal cláusula não estiver aposta no instrumento da obrigação. Mas a esta conclusão já se chegava no sistema anterior pelo raciocínio lógico. Como lembra Silvio de Salvo Venosa13, o terceiro poderá ter tomado conhecimento da proibição de outra forma, o que lhe suprime a boa-fé, o que deverá ser examinado no caso concreto.

Quanto à assunção de dívida, também chamada, mesmo depois da aprovação do Código, de cessão do débito por parte da doutrina, como Silvio Rodrigues e Maria Helena Diniz, por exemplo, cabe a verificação da conformidade das regras instituídas pelo Código com aquelas anteriormente preconizadas pela doutrina, como forma de se verificar a estabilidade ou não de suas regras.

Segundo Orlando Gomes14, para quem não existe uma melhor denominação para o instituto em nosso vernáculo, assunção de dívida é a tradução literal do título que o instituto recebe no Direito alemão, um dos primeiros sistemas jurídicos, ao lado do Suíço, a prevê-lo. Trata-se da substituição do sujeito passivo da relação creditória, sem que isto implique modificação da obrigação, quando então, estar-se-ia diante de uma novação subjetiva passiva. A obrigação, assim, permanece a mesma, com mera substituição do devedor. Mas como a substituição do devedor pode implicar o não cumprimento da obrigação, por ser o novo devedor insolvente, por exemplo, exige a lei a concordância expressa do credor, se a assunção tiver sido pactuada pelo devedor primitivo com o terceiro. Mas ela pode também se configurar pelo acordo de vontades diretamente levada a efeito entre o credor e o terceiro, vendo-se assim o devedor primitivo liberado do vínculo. A vantagem da assunção de dívida sobre a novação subjetiva passiva reside, segundo o mesmo autor15, na circunstância de que não extingue os direitos acessórios nem as garantias da dívida.

Avançando, o Título III trata do adimplemento das obrigações, seja pelo pagamento, seja por outras formas a ele assemelhadas, acarretando, em consequência, a extinção das obrigações.

No que diz respeito às outras formas de extinção das obrigações, que não o pagamento propriamente dito, é importante fazer referência à transferência de dois Capítulos, tratados neste local pelo CC de 1916, para o Título V deste Livro, relativo às várias espécies de contrato. Trata-se da transação e do compromisso, sendo certo que este último capítulo, no CC/1916, estava expressamente revogado pela lei 9.307/96, relativa à arbitragem, tendo agora retornado ao CC de 2002, sem necessidade nenhuma, posto que está melhor sistematizado e pormenorizado na referida lei de arbitragem.

Mas no que se refere às formas de extinção da obrigação que permaneceram neste Título, convém deixar claro que a maioria delas não sofreu qualquer modificação nos dispositivos que as regulamenta. Assim: o pagamento em consignação, salvo a expressa menção de sua modalidade bancária, entretanto já prevista no ordenamento jurídico nacional; a imputação do pagamento; a novação e a compensação não sofreram alterações, salvo aquelas ligadas à redação e à gramática...

Apenas nos Capítulos relativos à dação em pagamento e à remissão de dívidas, é que se ressalvou, agora expressamente, os direitos atinentes a terceiros, quer quanto aos credores evictos da coisa dada em pagamento (CC, art. 356), quer quanto aos prejudicados pela remissão aceita pelo devedor (CC, art. 385), como sejam os credores do remitente. Em ambas as hipóteses a conseqüência é o restabelecimento da obrigação primitiva. Ademais, ressalte-se que a aceitação da remissão da dívida pelo devedor, agora legalmente prevista, era já exigida pela doutrina e pelo direito comparado (Cf. Venosa, p. 327).

Por fim, o Título IV do Livro Primeiro trata do inadimplemento das obrigações, daquelas obrigações que não são levadas a bom termo ou que lá chegam de forma defeituosa, incompleta.’

3. A inadimplência obrigacional e a sua análise no seio do contrato

Adimplemento e inadimplemento obrigacional são noções que sempre contaram com uma clara visão de separação entre elas, quer dizer, por adimplemento se entendeu sempre ser aquele natural e efetivo meio de extinção da obrigação, quando o devedor cumpre o que lhe foi atribuído e o credor recebe aquilo que lhe é devido; ao mesmo tempo e contrario sensu, o inadimplemento sempre foi visto como o descumprimento do avençado, acarretando a insatisfação do credor. Atualmente, contudo, como tão bem expressa Anderson Schreiber16, reconhece-se que a obrigação transcende, em muito, o dever consubstanciado na prestação principal. A própria noção de obrigação, identificada com um vínculo de submissão do devedor ao credor17, vem sendo, gradativamente, abandonada em favor do conceito mais equilibrado de relação obrigacional, composta por direitos e deveres recíprocos, dirigidos a um escopo comum. Avultam, neste sentido, em importância os chamados deveres anexos ou tutelares, que se embutem na regulamentação contratual, na ausência ou mesmo em contrariedade à vontade das partes, impondo comportamentos que vão muito além da literal execução da prestação principal.18

A melhor doutrina analítica do formidável fenômeno de releitura mais ampla e mais consentânea com a atualidade e com a realidade dos partícipes da relação obrigacional tem definido, com significativo relevo, um campo rico de apreciação do fenômeno, muito além da visão meramente estrutural das obrigações que identifica a satisfação dos interesses envolvidos com a realização da prestação principal.19 Muito mais do que a anacrônica simplicidade de se reduzir, o adimplemento, a uma atividade de apenas dar, ou fazer, ou não fazer. As transformações oriundas deste novo, importante e corajoso modo de tratar o adimplemento – e, conseqüentemente, o inadimplemento – podem ser externadas por uma visão triangular muito bem arquitetada e muito bem apresentada por obrigacionistas contemporâneos, entre eles, no Brasil, Anderson Schreiber, que assim as descreveu, temporalmente, conceitualmente e conseqüencialmente: [...] alteraram-se o momento de verificação do adimplemento (tempo), as condições para sua configuração (conceito) e os efeitos que dele decorrem (conseqüências). Em cada um destes aspectos, pode-se constatar a presença de novas figuras e construções que vêm sendo vinculadas, direta ou indiretamente, à boa-fé objetiva, como o inadimplemento antecipado, a violação positiva do contrato, o adimplemento substancial e a responsabilidade pós-contratual.

Todos estes aspectos são de uma riqueza ímpar e fundamental, como escolhas, para serem trazidos a colação, numa oportunidade como esta. No entanto, tendo em vista as naturais limitações que um evento deste porte nos impõe, permito-me escolher, como fecho de minha participação, discorrer brevemente sobre o chamado adimplemento substancial, uma das visões, entre as que generosamente nos são presenteadas pela melhor doutrina, que tem importantíssima aplicabilidade prática e funcional, embora o silêncio do legislador de 2002.

Quando se fala em adimplemento substancial, a idéia primeira a ser considerada é aquela que rejeita a resolução do contrato por inadimplemento, se o incumprimento tem dimensão insignificante, relativamente ao contrato como um todo. A conservação do negócio jurídico, sob a luz da teoria do adimplemento substancial, é bem vinda no percurso atual da visão econômica dos contratos, uma vez que busca impedir efeitos drásticos oriundos da ruptura abrupta do contrato, em situação em que teria sido possível uma outra solução, mais coerente com a definição e finalidade do próprio contrato, como instituto instrumental de circulação benéfica das riquezas entre os contratantes.20

A dificuldade inicial que tem se sentido na aplicação da teoria pelo Poder Judiciário encontra-se na fixação de certos parâmetros que permitissem ao juiz dizer, em cada caso concreto, quais são as hipóteses de configuração do adimplemento substancial. O que a jurisprudência brasileira tem mostrado, nos julgados que já recepcionaram a hipótese de aplicação da teoria, é na verdade uma espécie de "escala percentual" que funciona como critério para se dizer se, em cada caso, verifica-se a presença de significativo adimplemento que permita a rejeição do pedido de extinção do contrato. Ressentem-se, até aqui, as Cortes brasileiras da possibilidade de recepção e aplicação de critério de natureza mais qualitativa que quantitativa. Todos os casos examinados têm se baseado neste critério mais matematicamente seguro que não se socorre dos princípios da ponderação e da razoabilidade, mas se socorre das definições simplesmente percentuais do quanto já foi objeto de adimplemento e do quanto ainda não foi pago. No entanto, a segurança imaginada para o uso preferencial deste critério percentual não tem sido alcançada em sua plenitude, uma vez que os julgados têm, por vezes, aceitado como substancial o adimplemento efetivado pelo devedor, em certas circunstâncias e não tem assim entendido em outras circunstâncias concretas, apesar da semelhança entre os casos. Pior que a disparidade entre decisões proferidas, diz Anderson Schreiber, com acerto, com base em situações fáticas semelhantes – notadamente, aquelas em que há cumprimento quantitativo de 60% a 70% do contrato –, o que espanta é a ausência de uma análise qualitativa, imprescindível para se saber se o cumprimento não-integral ou imperfeito alcançou ou não a função que seria desempenhada pela relação obrigacional em concreto. Em outras palavras, urge reconhecer que não há um parâmetro numérico fixo que possa servir de divisor de águas entre o adimplemento substancial ou o inadimplemento 'tout court', passando a aferição de substancialidade por outros fatores que escapam ao mero cálculo percentual. 21

A tarefa que incumbirá, a seguir, à doutrina e à jurisprudência, será exatamente a de dar o passo seguinte, no sentido de se encontrar critérios de aferição da presença do adimplemento substancial que não prevejam apenas a análise quantitativa do proveito do quanto já foi pago pelo devedor ao seu credor, mas que se baseiem em outras formas de análise, como por exemplo, a de verificar se há, no caso concreto, outros meios ou remédios que sejam capazes de atender ao interesse do credor e que sejam menos danosos, menos drásticos, ao devedor, que a abrupta resolução do contrato. A doutrina e também a jurisprudência estrangeiras já têm apresentado como critério, e segundo esta outra formulação, a possibilidade de se oferecer ao credor outro remédio para minorar os efeitos da inadimplência não significativa do seu devedor, como, por exemplo, a imposição de perdas e danos. Este é, no meu sentir, o percurso que deve também percorrer o Poder Judiciário brasileiro, assim como já tem decidido pioneiramente, como nos casos de alienação fiduciária em garantia, negando a prisão civil se tivesse ocorrido, até a data da inadimplência, um efetivo substancial adimplemento das demais prestações. Assim, por exemplo, deu-se na decisão de vanguarda proferida no Recurso Especial 272739/MG, cujo relator foi o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, publicada no DJ, de 2/4/01, p. 00299, antes mesmo da promulgação do atual Código Civil brasileiro.22

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1 Palestra proferida, em 19/08/2008, no Simpósio Internacional – Universidade de São Pulo (Brasil) e Universidade Keio (Japão), comemorativo do centenário da imigração japonesa no Brasil e do sesquicentenário da Universidade Keio. Este evento se realizou nas Faculdades de Direito e de Medicina da USP, entre os dias 16 a 19 de agosto de 2008.

2 Das obrigações em geral, vol I, Coimbra: Almedina, 2000

3 Teoria delle obbligazioni nel diritto moderno italiano, Florença: Fratelli Cammelli, 1924

4 Filosofia do Direito. Tradução de Cabral de Moncada, 6ª edição, Coimbra: Armênio Amado/Coimbra Editora, 1997

5 Conf. Anderson Schreiber, A boa fé objetiva e o adimplemento substancial, in Direito Contratual – temas Atais, coordenação de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Flávio Tartuce, São Paulo: Editora Método, 2007, ps. 125-146.

6 Ob cit., p.45.

7 Anderson Schreiber, op. cit, ps. 127-128.

8 Idem, ibdem, ps. 128-129.

9 Direito Civil: parte geral das obrigações. 30ª edição, São Paulo: Saraiva, 2002, p.3

10 À la recherche de l’origine de l’obligation. Archives de philosophie du droit, tomo 44, p. 33-41. Paris: Dalloz, 2000, p s. 37 e ss.

11 O texto que se encontra entre aspas simples já houvera sido escrito pela palestrante, em anterior estudo denominado ‘Direito das Obrigações: o caráter de permanência dos seus institutos, as alterações produzidas pela Lei Civil brasileira de 2002, e a tutela das gerações futuras’, in Novo Código Civil - Interfaces no ordenamento jurídico brasileiro, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2004, ps. 51-68

12 Idem à nota imediatamente anterior, quanto ao texto marcado entre aspas simples, neste item 2.

13 Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 330.

14 Obrigações. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.215.

15 Idem, ibdem, p. 225.

16 Anderson Schreiber, op. cit, p. 130. As notas de rodapé a seguir (nºs 17 e 18) também são referentes ao texto citado deste autor.

17 Como explica Hans Hattenhauer, a idéia do vínculo obrigacional, já associada desde os romanos a um poder do credor, ganhou, sob a influência da filosofia kantiana, a conotação de verdadeiro apossamento de parte da liberdade do devedor: “La obligación se producía porque alguien conseguía poseer uma determinada cantidad de la libertad de otra persona, y, en armonía con las leyes generales de la libertad, podía forzar a cumplir lo prometido y actuar sobre la voluntad del otro, cuya libertad se convertía – una parte exactamente determinada – en su propia libertad.” (Conceptos Fundamentales del Derecho Civil, Barcelona: Ariel, 1987, p. 82).

18 Os deveres anexos abrangem, em conhecida classificação, deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade. Sobre o tema, ver António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa fé no Direito Civil, Coimbra: Almedina, 1997, pp. 605 e ss.

19 Anderson Schreiber, op. cit, ps. 130-131.

20 Indica-se a leitura: Eduardo Luiz Bussatta. Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial, São Paulo: Saraiva, 2007, especialmente ps. 35 e ss.

21 Anderson Schreiber, op. cit, p. 140.

22 Alienação Fiduciária. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. [...]

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*Professora da USP. Coordenadora da FADISP - Faculdade Especializada em Direito

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