A desistência da ACP intentada pelo MP com a intenção de impedir a ortotanásia
Eudes Quintino de Oliveira Júnior*
O representante do MP/DF, responsável pela tutela dos Direitos do Cidadão, ingressou com ACP e obteve a liminar suspendendo a eficácia da Resolução. A motivação residiu no fato de que estaria sendo praticada a eutanásia, que é considerada homicídio na legislação brasileira, além do que, a Resolução, na hierarquia das leis, é inferior à lei ordinária representada pelo CP (clique aqui).
Estabelecidos os limites da lide, a Procuradora Federal que sucedeu o autor da ação, lançou uma leitura diferenciada a respeito da res in juditium deducta e opinou para que a ação fosse julgada improcedente, pois, na realidade, não se tratava de eutanásia e sim de ortotanásia, com legitimidade plena do Conselho Federal de Medicina para legislar a respeito da matéria, com a consequente revogação da tutela antecipatória que suspendeu a vigência da Resolução.
A CF/881 distribui os princípios institucionais que regem o MP. O primeiro deles é o da unidade e indivisibilidade, em que cada membro é responsável pela sua atuação no campo processual e quando se manifesta fala em nome de toda a Instituição. Daí não poder cindi-la ou dividi-la, desvinculando os operadores do Parquet uns dos outros. A independência funcional, o segundo, assegura e garante a autonomia funcional limitando a subordinação somente à lei e à consciência do profissional. O corolário desse princípio vem representado pelo disposto no artigo 28 do CPP, na hipótese de rejeitar o juiz a proposta de arquivamento feita pelo representante do MP, encaminhará os autos ao Procurador Geral de Justiça que, por seu turno, poderá oferecer a denúncia, determinar diligências ou designar outro órgão para oferecê-la, mas jamais obrigar o responsável pelo arquivamento a ajuizar a ação penal.
A autonomia funcional assegurada constitucionalmente permitiu que, na mesma ação, dois órgãos do Parquet, vinculados pela unidade e indivisibilidade, tivessem pretensões antagônicas. Um para invocar a tutela jurisdicional e dela obter um provimento liminar a respeito de tema polêmico, que suscita debates de várias ordens. Outro para desfazer a pretensão inicial com o intuito de demonstrar que a lide instaurada comporta julgamento desfavorável. A ação ainda não foi julgada, mas a decisão não será dada em razão da última manifestação, mas sim daquela que for mais conveniente social e juridicamente.
Aparentemente causa estranheza o MP, como órgão de legitimação de ofício, representando interesse de significativo alcance social, possa desistir de ação que tenha intentado. As regras da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação que vigem no processo penal, não se aplicam no âmbito da ACP. Intentada a ação penal criminal de natureza pública, o dominus litis não é detentor da disponibilidade e nem mesmo poderá desistir de recurso que haja interposto. È certo que ocorreu um abrandamento da regra com a inovação introduzida pela lei 9.099/95, que permite a realização da transação penal pelo órgão acusatório estatal. A respeito da ação civil pública, com a sabedoria que lhe é peculiar, MAZZILLI ensina:
"O que sustentamos nós, é que, proposta a ação civil pública, no seu curso poderão surgir fatos que a tomem prejudicada ou pelo menos comprometida no seu êxito (a ação vem a perder o objeto, ou se afere que está insuficiente, inadequada ou erroneamente proposta). O exame de conveniência em se desistir da ação em nada viola o dever de agir do Ministério Público, que pressupõe não só a livre valoração da tutela do interesse público, como ainda, e principalmente, a valoração da existência de justa causa para propor ou prosseguir na ação. Carnelutti, com razão, asseverava que: "a valoração da conveniência do processo para a tutela do interesse público, à base da qual o Ministério Público resolve acionar, não está vinculada"."2
De qualquer forma, meteu-se a cunha em tema relevante não só na órbita do direito, mas também da medicina, da ética, da religião e de tantas outras. E, pela última manifestação ministerial, fica nítido que o CFM tem legitimidade para expedir normas disciplinares a respeito das condutas médicas que tratem a respeito da terminalidade da vida.
Tal conceituação não só revigora a Resolução questionada judicialmente, como também recepciona a Resolução nº1931/2010 do Conselho Federal de Medicina, que cria o novo Código de Ética Médica, com vigência a partir de 13/4/2010, que, em seu artigo 41 e parágrafo único, diz textualmente:
"Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal."
A morte é consequência da vida, é o estágio final da existência. O Estado continua sua função tuteladora e, em razão de seus compromissos éticos, sociais e legais, somente a admite com o cumprimento do ciclo natural, sem qualquer chance de permitir a interrupção precoce da vida em situação de irreversibilidade da saúde do paciente.
A sociedade, no entanto, caminhando lado a lado com a evolução da tecnologia, com o consequente alargamento cultural de vários institutos até então não repensados, sofre uma transformação em sua própria estrutura, abre espaços para discussão e insere o tema relacionado com a morte, visto sob o prisma de sua dignidade, a mesma que foi conferida à vida. Assim, a finitude humana passa a ser motivo de questionamento.
Os mecanismos de prolongamento da vida e da interrupção do sofrimento do paciente ocupam destaque nos debates éticos, bioéticos, envolvendo médicos, juristas, psicólogos, filósofos, religiosos e outros profissionais, que de uma forma ou outra, dedicam sua parcela de contribuição ao tema. Sem falar ainda do envolvimento popular nas camadas mais simples da sociedade, onde o assunto também é frequentado com assiduidade.
A evolução constante da humanidade vai transformando o pensamento do homem, direcionando-o para uma nova ordem moral, social e ética. Tanto é que os conceitos vão se definindo dentro de uma estrutura dinâmica, que se movimenta em velocidade até mesmo incompatível com sua própria história. Basta ver que, a título de exemplo, até recentemente, a união entre pessoas do mesmo sexo era assunto inaceitável tanto pela tradição familiar, como pela apreciação judicial. A rápida evolução dos costumes, como um tsunami invisível, mas que deixa suas visíveis sequelas, fez com que a jurisprudência pátria acolhesse os pleitos e homologasse a união homoafetiva. Nenhum conceito é estático. Obrigatoriamente segue o dinamismo necessário para o melhor aperfeiçoamento da vida humana. O homem dita suas regras individuais e coletivas.
Na senda desta evolução, surge agora a questão que envolve o direito de morrer com a mesma dignidade do direito de nascer. A moral e o Direito repudiam, pela sua tradição e conceituação, qualquer ato que abrevie a existência de um ser humano, mesmo que enfermo. Mas o homem, na incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito da modalidade de morte.
Pois bem. O texto do atual Código de Ética Médica já referido repete o mesmo teor da Resolução nº 1.805/2006. Nesta linha de pensamento, obliquamente, fica permitido o procedimento ortotanásico, desde que algumas condições sejam satisfeitas:
a) – que o paciente seja acometido por doença incurável e irreversível e que se aproxima da terminalidade da vida. Apesar de todo o avanço na área médica, muitas enfermidades continuam sem qualquer chance de reversão. A constatação deve ser feita pelo profissional da saúde que esteja assistindo o doente;
b) – o profissional deixará de ministrar medicamentos para combater a doença, mas, em compensação, oferecerá os cuidados paliativos disponíveis. Não se propõe o abandono do doente, nem mesmo a interrupção abrupta de sua vida, por ação ou omissão, mas assegurar as melhores condições para que a morte seja um acontecimento natural, compatível com a dignidade humana. Numa definição lapidar a respeito de cuidados paliativos, Pessini assim se expressa:
"Em CP (cuidados paliativos), o objetivo é assegurar a melhor qualidade de vida possível. Quando o processo da doença conduz a vida para um fim natural, os doentes devem receber conforto físico, emocional e espiritual."3
c) – o médico, em razão da irreversibilidade da doença, deve desprezar ações terapêuticas inúteis ou obstinadas, sabendo que não conduzirão a nenhum resultado satisfatório. A praxe hospitalar, desde que haja retorno financeiro compatível, recomenda a distanásia, que vem a ser o prolongamento artificial da vida humana. O paciente fica atrelado a aparelhos que somente darão sustentação à sua vida biológica.
O Papa João Paulo II, na Encíclica Evangelium Vitae" deixou transparecer a opção da Igreja Católica pela ortotanásia, expressando-se da seguinte forma: "Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado "excesso terapêutico", ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se, em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objetivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana de fronte à morte".4
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em recente reunião de sua Comissão de Bioética, composta por cientistas, médicos, juristas e teólogos também deu seu "nihil obstat" para a aprovação da ortotanásia no Brasil.
d) – o médico deve acatar a declaração de vontade do paciente, se estiver em condições mentais para tanto, em caso contrário, de seu representante legal. A manifestação de vontade deve ser expressa no documento denominado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que vem a ser a concordância do paciente ou de quem o representa a respeito do procedimento médico, após tomar conhecimento de todos os benefícios e riscos que poderão ocorrer. O paciente trabalha em coautoria com o profissional da saúde. Abre-se mão do direito à vida e não da vida.
Alguns países da Europa deram ênfase à vontade e autonomia do paciente e hoje se discute o "Testamento Vital" ou "Testamento Biológico" e ainda a "Ordem de Não Reanimação". No vizinho Uruguai, o Congresso aprovou uma lei que levou o nome de "Vontade Antecipada", e confere ao cidadão o direito de decidir por escrito que, em caso de doença terminal, sua vida não seja prolongada artificialmente e poderá, para tanto, nomear um procurador para cumprir sua vontade.
O senador Gerson Camata, por sua vez (PMDB-ES), apresentou um projeto que pretende excluir a roupagem de ilicitude da ortotanásia, projeto de nº 116/00, que há nove anos tramita pelo Senado Federal e agora foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania daquela Casa. Ganha corpo e segue para a Câmara dos Deputados. O objetivo é acrescentar dois parágrafos ao artigo 121 do Código Penal, que trata a respeito da tipificação do crime de homicídio, nos seguintes termos:
§ 6º Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.
§ 7º A exclusão de ilicitude a que se refere o parágrafo anterior faz referência à renúncia ao excesso terapêutico, e não se aplica se houver omissão de meios terapêuticos ordinários ou dos cuidados normais devidos a um doente, com o fim de causar-lhe a morte.
O projeto que tramita pela Casa Legislativa define o paciente em estado terminal como sendo aquele portador de doença incurável, progressiva e em estágio avançado, com prognóstico de morte próxima. Paralelamente, institui procedimentos paliativos, mitigadores do sofrimento, com a contribuição de assistência psíquica, familiar e espiritual. O paciente em fase terminal de doença passa a ser o responsável pela autorização da ortotanásia e, na impossibilidade, seus familiares ou seu representante legal, para que o médico suspenda os procedimentos desproporcionais e extraordinários destinados a prolongar artificialmente a vida. Se o paciente, porém, quando lúcido, pronunciou-se contrariamente à ortotanásia, será respeitada sua manifestação, em razão do princípio da autonomia da vontade da pessoa humana.
São considerações rápidas a respeito de tema que merece um debruçar social mais adequado. Afinal, a liberdade que se confere ao homem compreende o poder de decidir todos os passos de sua vida, sempre consciente, até mesmo seus últimos passos.
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1 Constituição Federal, artigo 127, § 1º.2 Mazzilli, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo : meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 8. ed. 1995, p. 292.
3 Pessini, Leocir; Barchifontaine, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Edições Loyola, 2008, p. 481.
4 Costa AC, Martins Filho IGdaS. Encíclicas do Papa João Paulo II: o profeta do ano 2000. São Paulo: LTR Editora, 2003.
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*Advogado, Reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista