Os muitos "nãos" a um "sim"!
Maria Berenice Dias*
Não só chancela a prática da sexualidade, até a impõe. Isso porque a ausência de sexo autoriza a anulação casamento. Decisões neste sentido não faltam. Até parece que o casamento se "consuma" na noite de núpcias, velha crença que ainda subsiste. Depois da solenidade do matrimônio todas as portas se abrem. Os pais até cedem o quarto de casal aos filhos, abençoando o que antes era feito às escondidas.
Depois do "sim" tudo acontece!
Os noivos viram marido e mulher. Adquirem o estado civil de casados. A depender do regime de bens, surge a comunicabilidade do que for adquirido por qualquer deles. E para alienar um bem imóvel é necessária a vênia conjugal. Se um for estrangeiro o outro tem o direito de obter visto de permanência e até a cidadania brasileira. De posse da certidão de casamento, a mulher pode registrar os filhos no nome do marido, sem que alguém questione se o casal está vivendo junto. Qualquer um pode inscrever o seu cônjuge como dependente em tudo, plano de saúde, órgão previdenciário e até no clube social. Ainda que um venha a morrer no dia seguinte ao casamento, o sobrevivente é seu herdeiro necessário, tem assegurado direito real de habitação e o exercício da inventariança.
Tudo acontece de modo instantâneo.
Na união estável já não é bem assim. Mesmo tendo sido chancelada pela CF/88 (clique aqui) como entidade familiar digna da especial proteção do Estado, as relações extramatrimoniais sempre foram consideradas como um casamento de segunda categoria. Aliás, durante 70 anos, com o nome de concubinato, eram reconhecidas como meras sociedades de fato. Por isso permaneceram fora do âmbito do direito das famílias e do direito sucessório. Apesar da mudança, insiste a lei em negar aos companheiros os mesmos direitos dos cônjuges. Esqueceu-se de reconhecer que também ocorre a mudança do estado civil, pois as consequências patrimoniais são idênticas. A comunicabilidade dos aquestos. Esta omissão tende a gerar prejuízos enormes. A desnecessidade de declinar a condição familiar leva os conviventes a se qualificarem como solteiros. Apresentando-se como dono exclusivo do patrimônio imobiliário que está no seu nome, pode aliená-lo sem a participação do outro. Para evitar prejuízo ao terceiro, que foi induzido em erro, por desconhecer que o vendedor não era titular exclusivo do bem adquirido, o prejuízo é do par. Perdeu a metade do bem que também era seu e resta com simples direito indenizatório perante o – agora – ex-companheiro.
Apesar de admitido que os parceiros firmem contrato de convivência, este não tem os mesmos efeitos da certidão de casamento. Ainda que exista o pacto, tal não serve para a mãe registrar o filho em nome do pai. É necessário ingressar com ação investigatória de paternidade. Talvez porque na união estável não existe o dever de fidelidade. De outro lado, o contrato de união muitas vezes não basta para provar a existência do vínculo familiar, sendo exigidas provas outras para que um seja admitido como dependente do outro.
Mas é no âmbito sucessório que as diferenças se acentuam. O companheiro sobrevivente não é herdeiro necessário e está em último lugar na cadeia hereditária. Herda depois dos parentes colaterais de quarto grau, quais sejam: sobrinhos-netos, tios-avós e todos os primos. Para remediar um pouco esta desastrosa regra, existe a chamada concorrência sucessória, mas os parentes colaterais recebem o dobro do companheiro. E ninguém sabe se este quinhão é calculado sobre a metade dos aquestos ou sobre a totalidade da herança. A doutrina não se entende e a jurisprudência hesita. Ainda bem que alguns tribunais vêm reconhecendo a inconstitucionalidade destas diferenciações.
De qualquer modo, se o casal não quiser sujeitar-se a este tratamento discriminatório pode casar. Ainda mais agora, que a dissolução do casamento pode ser instantânea, já que acabou o instituto da separação e não mais se exigem prazos para a concessão do divórcio. Assim, voltou a ser atrativo o casamento.
Mas, e as uniões homoafetivas, que em nada se diferenciam das uniões heterossexuais, em termos de comprometimento mútuo, cumplicidade e afeto? Porque os homossexuais não podem casar? A lei não veda, pois não está prevista a identidade de sexo como impedimento matrimonial. Ainda assim os escassos pedidos de habilitação que chegaram à justiça foram rejeitados, sob o argumento – para lá de insustentável – que o casamento seria inexistente. Mas não há como dizer que não existe uma relação que em nada se diferencia das demais entidades familiares. Aliás, a Lei Maria da Penha (clique aqui) define família como uma relação íntima de afeto independente da orientação sexual. Este conceito serve a todo o sistema jurídico, não mais sendo possível dizer que as uniões de pessoas do mesmo sexo não podem ser reconhecidas por ausência de previsão legal.
De qualquer modo, a falta de lei não pode servir de justificativa para negar direitos. Sabendo o legislador da impossibilidade de prever todas as situações dignas de tutela determina ao juiz que julgue. Inclusive aponta os recursos que deve fazer uso: analogia, princípios gerais do direito e costumes. Ora, não dá deixar de reconhecer que as uniões homoafetivas em nada se diferenciam das uniões estáveis, o que impõe invocar analogicamente as regras que as regem. Ao depois, os princípios constitucionais asseguram a igualdade e impõem o respeito à dignidade, além de proibir preconceitos de qualquer ordem. Além disso, cada vez mais a homoafetividade vem inserindo-se no âmbito social. As paradas LGBT bem provam que está havendo significativa mudança dos usos e costumes.
Diante deste panorama nada, absolutamente nada, justifica negar reconhecimento aos pares homossexuais, que não podem ter seus direitos de cidadania negados pelo só fato de o legislador ter medo de aprovar leis que tutelem parcela significativa de cidadãos. Ainda bem que a justiça vem colmatando a omissão legal e, reconhecendo as uniões como estáveis, tem assegurado todos os direitos, inclusive o de os parceiros constituírem famílias com filhos.
Mas negar direitos os homossexuais gera benefícios. E talvez por isso – mais do que por puro preconceito – interessa. Basta atentar que o pagamento de prêmios, cotas sociais, planos de saúde etc. asseguram direitos ao titular e também aos seus dependentes: cônjuges e filhos. É bem fácil figurar a hipótese. Quando alguém se tornar sócio de um clube pode frequentá-lo com sua família. Se ele é casado, basta apresentar a certidão de casamento para que a mulher passe a ter acesso às dependências sociais. O mesmo acontece com os filhos. Na medida em que vão nascendo passam à condição de dependentes do titular. Negar tal possibilidade a um sócio, pelo fato de o seu par ser do mesmo sexo, além de flagrar inconstitucional preconceito, traz benefícios de ordem financeira à entidade. Isso porque não existem valores diferenciados de mensalidade em face da orientação sexual do sócio. Escancarado o enriquecimento sem causa de quem cobra igual e concede direitos a menos.
E, se um par tem todos os direitos garantidos por dizer "sim" perante um juiz de paz, não há como dizer muitos "nãos" a quem sequer tem a chance de dizer sim ao direito de ser feliz!
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*Vice-presidente nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família
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