ALCA, propriedade intelectual e alternativas para o futuro
No processo de globalização econômica ora vivenciado, os países passaram a buscar constantemente a integração em blocos regionais, com o propósito de ter voz no mercado internacional, consolidando suas economias internas. No caso brasileiro, tal inserção – iniciada desde a ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio) e ALADI (Associação Latino-Americana de Desenvolvimento Integrado) – culminou no Mercosul, através do Tratado de Assunção em 1991. Não há como negar que a integração, ou pelo menos a associação dos países latino-americanos, provocou um movimento da balança comercial muito maior intra-bloco, refletindo-se em uma situação incômoda aos interesses financeiros norte-americanos. Nesse contexto, a ALCA seria uma forma pela qual os EUA tentaria diminuir déficits comerciais com outras regiões do globo.
Contando com 34 países membros, de todas as Américas, com exceção de Cuba, o projeto da ALCA foi criado através de uma proposição de 11 de dezembro de 1994, em Miami – EUA, com vistas a ser implantado definitivamente no ano de 2005, o que provavelmente não acontecerá, haja vista arranjos ainda não concretizados. Importante mencionar que o projeto inicial já foi bastante alterado, razão pela qual alguns a chamam hoje de ALCA Light. As razões da prorrogação do prazo reside em alguns pontos controversos, cujos interesses são claramente conflitantes e sobre os quais ainda não houve um saneamento pleno. Dentre eles incluem-se as compras governamentais, os subsídios agrícolas e as barreiras não-tarifárias.
De igual forma, há um sério entrave nas negociações no que se refere à propriedade intelectual, notadamente na questão das patentes, uma vez que os países em desenvolvimento, entre os quais se inclui o Brasil, defendem um respeito não-absoluto ao direito de patente, advogando a tese de que “o acesso a medicamentos se sobrepõe a todo e qualquer interesse comercial das indústrias farmacêuticas”, nas palavras de Verena Glass, em matéria sobre o Fórum Social das Américas, de 26 de julho de 2004. Até porque, a indispensabilidade do acesso a medicamentos é reconhecido pelo Acordo TRIPS – Trade Related Intellectual Property Rights, de 1994, sobre direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio. Do lado oposto, encontram-se os países desenvolvidos, detentores das patentes, que defendem a não existência de tais exceções.
Para entender melhor, esclareça-se que o gênero propriedade intelectual engloba, digamos, duas espécies, quais sejam: o direito autoral e a propriedade industrial. O primeiro visa a proteger a exteriorização da idéia; já a segunda, objetiva assegurar a própria criação, incluindo-se aí a patente. Acrescente-se que a invenção para que seja patenteada deverá ser nova (nunca realizada, usada ou executada), inventiva (resultado de estudo técnico) e útil (possibilidade de aplicação industrial), concedendo-se ao inventor 20 anos – a começar da data do depósito do pedido de patente – de exclusividade na fabricação, uso, comercialização e distribuição da invenção.
Ocorre que as criações intelectuais são a célula máter da sociedade pós-moderna. Espelha a possibilidade de maior ou menor desenvolvimento para o futuro, podendo-se até prever a existência de um novo período de colonialismo, em que ao invés da terra, ter-se-á como fonte de controle os “ativos intangíveis”, nas palavras de Roberto Castelo, Diretor-geral adjunto da Organização Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI. Daí a grande preocupação norte-americana, seja na configuração de novas patentes, seja na proibição de quebra das já constituídas, pelos países periféricos, pois inobstante a vitória brasileira na Organização Mundial do Comércio - OMC, quando na Reunião Ministerial ocorrida em Doha (Catá, 2001), onde foi declarada (Parágrafo 6º) a possibilidade de licença compulsória para a confecção de medicamentos genéricos aplicados à contenção de doenças graves, como o HIV, a questão ainda gera forte polêmica.
Importante atentar ao fato – de suma importância e que gera grande apreensão – de que a ALCA pode contribuir para que os EUA tenham um acesso geometricamente maior aos mercados menores, podendo estar livremente manipulando a criação de patentes em seu benefício e em desfavor, principalmente, dos países menos desenvolvidos. Isto porque, até mesmo o Brasil possui um processo de patente lento e burocrático, que leva anos para findar, não tendo, o que é pior, a “cultura do patenteamento”. Em outras palavras, grande parte de nossas produções intelectuais não é registrada, permanecendo extra-oficial e vulnerável à aquisição por outros países, sublinhando que cerca de 70% da economia norte-americana gira em torno de criações intelectuais.
Outrossim, na inserção econômica através da ALCA, apesar da harmoniosa eliminação das tarifas aduaneiras, os EUA tentam ofuscar barreiras não-tarifárias que seriam aplicadas para eliminar a concorrência de outros países do bloco, seja através de normas fito-sanitárias, exigindo requisitos não previstos ou superiores, por exemplo, aos indicados na Organização Mundial de Saúde – OMS, ou mesmo utilizando-se de normas relativas à propriedade intelectual com rigidez acima das encontradas no já citado Acordo TRIPS, dificultando ainda mais a ingerência dos países periféricos no promissor mercado dos “ativos intangíveis”.
Acrescente-se, nesse particular, que foi apresentada proposição recentemente na OMPI, pelo Brasil, Argentina e Bolívia, no sentido de que os direitos de propriedade intelectual sejam algo que leve em conta o nível de desenvolvimento dos países. Diante desta preocupação, aliás, foi firmado, semanas atrás, um acordo entre a OMPI e a Comissão Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL, através do qual são propostas medidas para o desenvolvimento econômico-regional, bem como ao progresso tecnológico dos países periféricos, mediante pesquisa e projetos científicos sobre propriedade intelectual, com vistas a minimizar o abissal distanciamento com relação aos países centrais.
Portanto, diante desses fatores, a realidade latino-americana e, especificamente, a brasileira parece meio nebulosa com a chegada da ALCA, notadamente na questão atinente à propriedade intelectual. No entanto, trata-se de um mercado irrenunciável aos interesses econômicos brasileiros, senão vejamos: População de 800 milhões de pessoas (13% da população mundial); PIB de US$ 11,5 trilhões (38% do PIB mundial); Movimentação comercial de US$ 2,5 trilhões por ano (30% do comércio global). Dados contidos no informativo de Fevereiro de 2004, da Amcham São Paulo.
É de se ressaltar, ainda, a importância do pagamento dos Royalties pelas empresas privadas – detentoras dos direitos relacionados à propriedade intelectual – ao Estado, a fim de ser reaplicado em pesquisa e desenvolvimento tecnológico para o progresso da região. Ademais, com a recém aprovada lei de bio-segurança, aberta estará a possibilidade de novas descobertas científicas passíveis de serem patenteadas, devendo-se estar alerta a este fenômeno.
Nesse sentido, alternativas pró-ativas têm de ser lançadas, a fim de que possamos alavancar o máximo possível nossa economia, principalmente no que se refere ao ativo do futuro: a criação intelectual. Necessita-se, pois, de uma conscientização profunda, de caráter nacional, pela importância premente da patente e demais formas de proteção aos direitos de propriedade intelectual, seja de direitos autorais, direitos conexos, marcas, indicações geográficas, etc. É preciso investir internamente nos mecanismos hábeis a nos inserirmos nesse mercado, como o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI.
Em suma, procurando não aderir plenamente à opinião de Hélio Jaguaribe, exposta no início, vislumbra-se a única certeza de que um posicionamento consistente e firme do Governo brasileiro, seja na estruturação interna, seja nas negociações externas, aliados ainda a uma postura inteligente das empresas brasileiras, na conscientização e busca crescente pela certificação das nossas produções intelectuais, poderá proporcionar bons ganhos para o Brasil ou, pelo menos, minimizar as nuances negativas da incursão de nosso país no projeto da ALCA.
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*Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados
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