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O novo divórcio potestativo: leitura estritamente constitucional

A EC 66/10, com publicação e vigência no dia seguinte, alterou a redação do § 6º do art. 226 da CF/88 e criou o divórcio potestativo, desvinculando o instituto de qualquer prazo ou condição, nos seguintes termos: "o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio."

10/8/2010


O novo divórcio potestativo: leitura estritamente constitucional

Maximiliano Roberto Ernesto Führer*

1. A modificação

A EC 66, de 13 de julho e 2010 (clique aqui), com publicação e vigência no dia seguinte, alterou a redação do § 6º do art. 226 da CF/88 (clique aqui) e criou o divórcio potestativo, desvinculando o instituto de qualquer prazo ou condição, nos seguintes termos: "o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio."

O texto constitucional anterior permitia apenas o divórcio conversão, desde que houvesse prévia separação judicial por mais de um ano, atendidas as determinações legais, e o divórcio direto, caso comprovada separação de fato por mais de dois anos.

Desponta no cenário doutrinário o entendimento no sentido de que, afora a desnecessidade de prazo e de prévia separação de fato ou judicial, nada mais foi alterado. Como dantes, pode o divórcio se concretizar pelas vias judicial ou administrativa. A última se concretiza por escritura pública, exigindo-se consenso, inexistência de filhos menores ou incapazes, e resolvidas as questões enumeradas no art. 1.124-A do CPC (clique aqui) (descrição e partilha de bens, pensão e nome dos cônjuges).

Considerando os debates e as opiniões explanadas no Parlamento, parece ter sido esta a idéia original. Também, tendo em conta a tradicional e salutar prudência dos meios jurídicos brasileiros, provavelmente esta interpretação moderada deve prevalecer, pelo menos por algum tempo. E, de fato, as questões que começam a ser debatidas são apenas as periféricas, como a solução dos processos em andamento e a sobrevivência, ou não, da separação judicial convivendo com o divórcio.

Neste sentido são as primeiras orientações das Corregedorias de Registros Públicos e as manifestações de cúpula das Associações de Notários e Registradores.

Não obstante, a análise estritamente constitucional do novo texto conduz à conclusão de que foi criado um instituto inteiramente novo. Ao desvincular o divórcio de prazo e condição e ao afastar a lei ordinária da regulamentação, o Constituinte forjou o novo divórcio potestativo, com natureza bem diferente das antigas figuras já citadas.

2. Como era

Após longo e renhido debate político, com quadrantes filosóficos, sociológicos e especialmente religiosos, a Carta Magna de 1988 conferiu status constitucional ao divórcio.

No princípio, havia uma única maneira para se alcançar este tipo de dissolução do casamento. Era a via judicial. No divórcio direto, era colhida a prova da separação de fato do casal e do prazo de dois anos, sem reconciliação. A comprovação geralmente se realizava através do depoimento de testemunhas. No divórcio conversão, verificava-se exclusivamente o trânsito em julgado da sentença de separação e o prazo de um ano.

Aos poucos, passou a dominar o entendimento no sentido de excluir do debate todas as questões estranhas aos requisitos constitucionais, como aquelas ligadas ao mérito (culpa dos cônjuges), ao descumprimento das cláusulas da separação judicial e ao não pagamento de alimentos.

Com inteira razão, aliás. O texto maior não se referia a tais aspectos e, assim sendo, não poderia o legislador inferior ou o julgador criar entraves ou alterar o direito constitucionalmente assegurado ao divórcio.

Em função dessa vedação de discussão acerca das questões paralelas e da reduzida possibilidade de contestação ao pedido de divórcio, a intervenção judicial no divórcio assumiu aspecto anacrônico, perceptível por todos. Bem por isso, a lei 11.441/07 (clique aqui), que criou o art. 1.124-A do CPC (clique aqui), trouxe pela primeira vez na história brasileira a possibilidade do divórcio por via administrativa, através de escritura pública. O texto legal condicionou o acesso à via administrativa à existência de consenso, que não houvesse filhos menores ou incapazes, e que fossem descritos e partilhados os bens comuns, bem como resolvidas as questões sobre alimentos e sobre os nomes dos cônjuges.

Evidente que tais determinações tinham algum sabor de inconstitucionalidade, pois impunham limitações ao direito constitucional de divórcio. Entretanto, tal fato nunca alcançou relevância, pois a via administrativa era apenas uma opção dos divorciandos, que sempre poderiam fazer uso da ação judicial, caso não desejassem cuidar daqueles assuntos correlatos exigidos para a lavratura da escritura pública.

O projetista do art. 1.124-A do CPC parece ter pressentido que mudança radical chegaria em breve.

3. Como é

A nova redação do § 6º do art. 226 da CF/88 reforçou o princípio pelo qual ninguém está obrigado a permanecer unido a outrem se esta não for a sua vontade, como já estava bem delineado no art. 5º, XX, do Texto Maior. De fato, o Constituinte vinculou o divórcio potestativo exclusivamente à vontade do interessado, sem a necessidade do preenchimento de qualquer outra condição ou prazo.

Mesmo quando o outro cônjuge for incapaz ou não concordar com a dissolução do casamento, o divórcio não poderá ser obstado.

Como se trata de mandamento constitucional, as normas de nível inferior não podem impor qualquer espécie de restrição a este direito puramente de vontade. Ou seja, todas as eventuais restrições ao divórcio existentes na legislação não foram recepcionadas pela nova ordem constitucional.

Repetindo, basta a vontade do interessado.

A natureza jurídica do divórcio é de declaração unilateral de vontade, cujos requisitos de validade são exclusivamente aqueles gerais de qualquer ato jurídico ordinário. Isto é, a opinião e a posição eventualmente adotada pelo outro cônjuge são despidas de qualquer relevância jurídica.

Ou, por outra, não há possibilidade de contestação.

Sabe-se que, para a proposta de ação judicial, é preciso demonstrar a existência de interesse na providência desejada. É o chamado interesse de agir, que se materializa na demonstração, pelo menos em linhas gerais, de que tal providência judicial é realmente necessária. Não há interesse de agir, ou seja, não há interesse de se fazer movimentar a máquina judiciária, se a coisa pode ser obtida normalmente, sem interferência do juiz. Para se abrir a janela da própria casa, por exemplo, não há necessidade de processo, salvo demonstração em contrário.

Exceto a ocorrência de circunstância anormal, as declarações unilaterais de vontade, como o testamento e, agora, o divórcio, dispensam a provocação do Judiciário.

Por conta disso, não é difícil perceber que ao pedido judicial de divórcio falece interesse de agir, que é uma das três condições da ação.

O casamento tem natureza contratual especial. Contrato sui generis, onde prevalecem as normas de caráter público e onde a função social é de relevância muito maior, mas sempre um contrato.

E os contratos são desfeitos pela mesma forma exigida para o contrato (art. 472 do CC - clique aqui). No caso, tal forma é a escritura pública.

A resilição unilateral deste contrato, ou melhor, o divórcio potestativo, se faz por escritura pública, com notificação do outro cônjuge (art. 473 do CC).

A declaração de vontade e a notificação ao outro cônjuge independem de fiscalização ou homologação judicial, sendo necessária a averbação para validade perante terceiros. Esta averbação tem como supedâneo o § 1º do citado art. 1.124-A do CPC.

Havendo consenso, todas as questões paralelas e acessórias de cunho potestativo, como a divisão de bens, o nome e pensão dos cônjuges, podem integrar a escritura.

O deslinde das questões propriamente familiares, como guarda, alimentos aos filhos menores ou incapazes, regulamento de visitas, e das questões patrimoniais, exige provocação do juízo do foro da Família.

Estas conclusões podem causar perplexidade – e de fato causam, em função da sistemática anterior que vivíamos no Direito Familiar, mas defluem estritamente da prevalência das normas constitucionais sobre todo o ordenamento jurídico.

As questões periféricas

Os pedidos judiciais de divórcio em andamento devem ser objeto de deferimento imediato, pois não sobrevive qualquer espécie de exigência ou óbice legal. Prosseguem, entretanto, aqueles onde há cumulação de pedidos (alimentos, guarda, etc), exclusivamente em relação às questões sobreviventes.

Como não houve revogação expressa, nem tácita, sobrevive a possibilidade de separação judicial, para aqueles que, por razões filosóficas ou religiosas, cujo respeito é garantido constitucionalmente, desejarem apenas romper a relação matrimonial sem extinguir o casamento. Entretanto, como o divórcio potestativo é desvinculado de qualquer termo ou condição, e como quem pode o mais (divórcio), pode o menos (separação), a interpretação lógica indica que também a separação passou a ser puramente potestativa, livrando-se de toda estrutura legal regulatória e restritiva antiga.

4. Como será

Inexistindo ainda previsão para a gratuidade dos serviços cartorários de tabelionato, para a lavratura da escritura pública de divórcio, negar imediatamente o acesso ao Poder Judiciário significará excluir parcela ponderável da população do pleno exercício do direito constitucional de liberdade de união.

Assim, como já dissemos, o bom senso recomenda que seja mantida por algum tempo a sistemática da “ação judicial” de divórcio. Embora ausente o interesse de agir e a possibilidade de contestação, poderá o "pedido" de divórcio tramitar pela brandura do amplo foro da jurisdição voluntária.

O desenvolvimento lógico parece ser a regulamentação do Juizado de Paz, cuja competência incluiria o processamento do descasamento, com a formalização da declaração unilateral de vontade, a necessária notificação do outro cônjuge e a posterior averbação. Naturalmente, para lá se estenderá a gratuidade de Justiça.

5. Conclusão

Embora possivelmente esta não tenha sido a intenção principal, o constituinte acabou por produzir reflexamente o mecanismo para uma monumental reforma do Poder Judiciário, retirando de seu encargo milhões de ações desnecessárias, onde não há lide, nem possibilidade de contraditório, cujo objeto não exige sua atividade, deixando sobrar recursos e forças para as demais causas.

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*Membro do MP/SP


 

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