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Sobre a redução da base de cálculo e a hipótese de isenção “parcial”: uma visão crítica

Nos causou surpresa, indignação e preocupação a notícia veiculada na página oficial do Supremo Tribunal Federal na Internet, no dia 18 de março de 2005 sob a denominação “Supremo reafirma a constitucionalidade de sistema de benefício fiscal em São Paulo”, a respeito da decisão proferida em Plenário no julgamento do Recurso Extraordinário nº 174.478-SP,

12/4/2005


Sobre a redução da base de cálculo e a hipótese de isenção “parcial”: uma visão crítica ao novo posicionamento do STF

Matheus Simões Gonçalves da Silva*

Iuri Moradillo Mello Alves**

1. Considerações Preliminares

Nos causou surpresa, indignação e preocupação a notícia veiculada na página oficial do Supremo Tribunal Federal na Internet, no dia 18 de março de 2005 sob a denominação “Supremo reafirma a constitucionalidade de sistema de benefício fiscal em São Paulo”, a respeito da decisão proferida em Plenário no julgamento do Recurso Extraordinário nº 174.478-SP, em que se pretendia a declaração da inconstitucionalidade de norma estadual que imputava aos contribuintes a obrigação de estornar os créditos do ICMS relativos às aquisições de insumos e mercadorias para revenda quando as operações subseqüentes ocorressem com o benefício da redução da base de cálculo do imposto.

Surpresa, em face do título atribuído à notícia que dava conta de reafirmação de posicionamento, uma vez que após exaustiva pesquisa, não encontramos decisões anteriores no mesmo sentido. Indignação, haja vista que, após quase uma década de entendimento pacífico em relação ao tema, o que se viu efetivamente foi uma mudança radical de posicionamento sem motivo relevante. Preocupação, com a mudança injustificada de entendimento, pois houve flagrante desrespeito aos ditames constitucionais e ao princípio da segurança jurídica, conforme demonstraremos no decorrer do presente artigo.

2. Da Jurisprudência do STF

Antes da desastrosa decisão que nos levou a escrever este artigo, o Supremo Tribunal Federal apresentava jurisprudência consolidada sobre o tema, tendo proferido seguidas decisões que afastavam a obrigatoriedade do contribuinte de estornar os créditos do ICMS relativo às operações anteriores, quando as operações subseqüentes ocorressem com redução da base de cálculo do imposto. Assim, fazemos questão de trazer a lume as decisões proferidas acerca do tema nos últimos dez anos.

A primeira decisão nesse sentido ocorreu no julgamento do RE 161031-MG, Rel. Min. Marco Aurélio, onde a Egrégia Corte assim se manifestou:

“ICMS – PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE – MERCADORIA USADA – BASE DE INCIDÊNCIA MENOR – PROIBIÇÃO DE CRÉDITO – INSCOSTITUCIONALIDADE. Conflita com o princípio da não-cumulatividade norma vedadora da compensação do valor recolhido na operação anterior. O fato de ter-se a diminuição valorativa da base de incidência não autoriza, sob o ângulo constitucional, tal proibição. Os preceitos das alíneas “a” e “b” d inciso II do§ 2° do art. 155 da Constituição Federal somente têm pertinência em caso de isenção ou não-incidência, no que voltadas a totalidade do tributo, institutos inconfundíveis como benefício fiscal em questão.” (D.J. 6.6.1997)

Posteriormente, ao examinar o Agravo no RE 240.395-RS, Rel. Min. Maurício Corrêa, a decisão foi a seguinte:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINARIO. TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL. REDUÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. BENEFÍCIO FISCAL. CRÉDITO. VEDAÇÃO. PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE-OBSERVÂNCIA. Lei Estadual. Benefício fiscal outorgado ao contribuinte. Crédito decorrente da redução da base de cálculo do tributo. Vedação. Impossibilidade. A Constituição Federal somente não admite o lançamento do crédito nas hipóteses de isenção ou não-incidência. Precedente do Tribunal Pleno. Agravo regimental não provido.” (D.J. 2.8.2002)

Neste sentido também foi o voto do Min. Eros Grau, relator do Agravo Regimental no Agravo de instrumento 418.412-RS, cujo trecho reproduzimos a seguir:

“Conforme preceitua o art. 155, § 2°, II “a”, da Carta da República, somente os casos de isenção ou de não-incidência não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes, não inserida nessa vedação a hipótese de redução da base de cálculo.”

A mesma linha de cognição foi seguida nos julgamentos dos Agravos Regimentais nos Recursos Extraordinários 154.179-SP, 284.120-SP, 357.405-MG, bem como nos Embargos Declaratórios no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 389.871-RS. Salientamos que as decisões aqui mencionadas são recentes, tendo ocorrido nos exercícios de 2004 e 2005.

Desprezando toda jurisprudência reproduzida acima, a Corte Suprema, de maneira injustificada, em flagrante desrespeito aos preceitos constitucionais, proferindo uma decisão claramente política, mudou o seu posicionamento quando do julgamento do RE 174.478-SP, no dia 17/03/05, considerando que a redução de base de cálculo do ICMS equivaleria a isenção, mais precisamente, a isenção “parcial”.

O Plenário do Supremo entendeu que o mecanismo que reduz a base de cálculo do ICMS na saída de produtos industrializados e, em contrapartida, prevê o estorno, na mesma proporção, dos créditos do imposto recolhido na entrada de insumos, estaria perfeitamente de acordo como espírito do tributo, que é o de sujeição ao princípio da não-cumulatividade.

Importante destacar que o relator do processo em tela, Min. Marco Aurélio, demonstrando respeito à Carta Magna e às decisões proferidas anteriormente pela casa, acolheu o pedido do contribuinte para declarar inconstitucionais os dispositivos legais da norma estadual, ficando, infelizmente, vencido neste julgamento.

3. Dos Conceitos Tributários Fundamentais

Antes de iniciarmos o estudo do objeto principal deste artigo, faz-se necessário relembrarmos alguns conceitos fundamentais que serão de extrema importância para a perfeita compreensão do raciocínio a ser desenvolvido. Assim, sem o pendor de analisar profundamente cada um desses temas, estudaremos rapidamente os conceitos de hipótese de incidência, fato gerador, obrigação tributária e base de cálculo.

Iniciaremos com a análise de um dos principais institutos do Direito Tributário, a hipótese de incidência. Na mais festejada obra sobre o assunto, Geraldo Ataliba nos ensina que a hipótese de incidência é primeiramente a descrição legal, a formulação hipotética, prévia e genérica, contida na lei, de um fato. Em linha de pensamento semelhante, Hugo de Brito Machado advoga que “a expressão hipótese de incidência designa com maior propriedade a descrição, contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária”. Podemos simplesmente admitir que a hipótese de incidência é o conjunto de fatores necessários e suficientes à exigência do tributo.

Com a realização da situação prevista na hipótese de incidência temos o nascimento do fato gerador, que segundo o art. 114 do Código Tributário Nacional, é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência. Como podemos notar, a Lei Tributária Nacional não distingue hipótese de incidência e fato gerador, influenciada pela doutrina dominante à época da sua elaboração. Tal posicionamento encontra-se superado, pois na doutrina contemporânea é pacífico o entendimento de que tais institutos são diferentes, independente da terminologia adotada por cada autor. Alfredo Augusto Becker, por exemplo, esclarece que o fato gerador seria a hipótese de incidência realizada. Assim, podemos entender que o fato gerador é a situação de fato, a concretização da hipótese de incidência.

Verificada a ocorrência do fato gerador, nasce como efeito imediato a obrigação tributária, que Hugo de Brito Machado define como a relação jurídica em virtude da qual o particular tem o dever de prestar dinheiro ao Estado ou de fazer, não fazer, ou tolerar algo do interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos, e o Estado tem o direito de constituir contra o particular um crédito.

O fato gerador deve ser estudado levando-se em conta os seus aspectos constitutivos, também chamados de critérios ou elementos. Um desses aspectos formadores do fato gerador é o chamado aspecto quantitativo ou valorativo, que diz respeito à expressão econômica do tributo, ou seja, o cálculo do valor a ser recolhido aos cofres públicos. O aspecto quantitativo ou valorativo do fato gerador é composto de dois elementos: a base de cálculo e a alíquota. Nesse estudo, nos interessa apenas entender o conceito de base de cálculo.

Luciano Amaro preceitua que chama-se de base de cálculo a medida legal da grandeza do fato gerador e Geraldo Ataliba afirma que a base de cálculo tem o condão de fornecer critério para determinação do quantum tributário. De forma objetiva podemos considerar que a base de cálculo é o valor do fato jurídico sujeito à incidência do tributo.

4. Da Não-Incidência, Imunidade, Isenção e Redução da Base de Cálculo

Após a apresentação dos conceitos tributários fundamentais, passaremos a enfrentar o tema principal do presente artigo, o desrespeito ao disposto no art. 155, § 2°, II, “b” da Constituição Federal. Segundo este dispositivo, os contribuintes deverão estornar os créditos do ICMS relativos às operações anteriores, quando as operações ou prestações subseqüentes ocorrerem com isenção ou não incidência.

É de fundamental importância entendermos de forma clara os conceitos de não-incidência, imunidade, isenção e redução da base de cálculo e, principalmente, os traços marcantes que diferenciam cada um desses institutos jurídicos, para que possamos justificar que a decisão do Supremo Tribunal Federal de mudar o seu posicionamento jurisprudencial acerca da matéria não se coaduna com os ditames constitucionais.

Iniciaremos pelo estudo da não incidência que, nas palavras de Hugo de Brito Machado, configura-se em face da própria norma de tributação, sendo assim objeto da não incidência todos os fatos que não estão abrangidos pela própria definição legal da hipótese de incidência. Sacha Calmon Navarro Coêlho propõe que a não incidência natural ou pura, como tal, inexiste, é um não-ser. De acordo com os ensinamentos de Zelmo Denari, a não incidência deve ser entendida como inexibilidade do tributo pela ocorrência de fato sem aptidão para gerar obrigação tributária. Finalmente, Luciano Amaro assevera que todos os fatos que não têm aptidão de gerar tributos compõem o campo da não incidência. Assim, podemos entender como não incidência um instituto jurídico que abarca todos os fatos estranhos a incidência de determinado tributo, ou seja, que não podem ser alcançados pela norma tributária in concreto em virtude de absoluta falta de concatenação entre o fato e a norma tributária.

Já a imunidade é considerada uma limitação constitucional ao poder de tributar que impede a ocorrência do fato gerador. Hugo de Brito Machado nos ensina que a imunidade é um obstáculo criado por uma norma da Constituição que impede a incidência de lei ordinária de tributação sobre determinado fato ou em detrimento de determinada pessoa ou categoria de pessoas. Para Vicente Kleber de Melo Oliveira a imunidade é a vedação constitucional ao poder de tributar, emerge da Constituição e as pessoas ou bens tornam-se inatingíveis pelas leis tributárias, ou seja, não chega a ocorrer o fato gerador. Por fim, Sacha Calmon Navarro Coêlho, preconiza que as imunidades expressas dizem o que não pode ser tributado, proibindo ao legislador o exercício de sua competência tributária sobre certos fatos, pessoas ou situações, por expressa determinação da Constituição.

Notemos que enquanto a não incidência está claramente situada fora do raio de alcance da norma tributária, por abrigar fatos estranhos à tributação, os fatos albergados pela imunidade encontram-se teoricamente dentro do campo de incidência dos tributos, não podendo ser atingidos pelos normativos tributários em função de limitação constitucional imposta aos entes tributantes. Assim, a imunidade impede a ocorrência do fato gerador que ensejaria a cobrança do tributo. Esclarecemos que tal entendimento está longe de uma pacificação doutrinária, uma vez que importantes autores, a exemplo de Luciano Amaro, entendem que as imunidades habitam o campo da não incidência tributária. Por fim, alguns autores entendem que as imunidades, por limitarem a competência do legislador infraconstitucional, não estariam inseridas nos campos da incidência e tampouco da não incidência, representando uma exclusão prévia à tributação.

Passemos a analisar agora o instituto da isenção. A doutrina clássica, capitaneada por Rubens Gomes de Souza, Bernardo Ribeiro de Moraes e Amílcar de Araújo Falcão, sustentava que a isenção consistiria em dispensa legal do pagamento do tributo, conceito este recepcionado pelo Código Tributário Nacional através do seu Art. 175, I, que classificou este instituto como forma de exclusão do crédito tributário. Porém, tal entendimento se encontra superado.

Assevera Sacha Calmon Navarro Coêlho, que a isenção não é forma de extinção da obrigação pela dispensa do crédito, mas fenômeno intrínseco à formação da hipótese de incidência da norma de tributação. Definição ainda mais esclarecedora é a de Hugo de Brito Machado, que conceitua a isenção como a retirada, por lei, de parcela da hipótese de incidência, ou suporte fático da norma de tributação, sendo objeto da isenção a parcela que a lei retira dos fatos que realizam a hipótese de incidência da regra de tributação.

Ora, para se afirmar que a isenção é dispensa legal do tributo há de se pressupor que a obrigação tributária foi formada dando azo à constituição do crédito tributário que será excluído. Contudo, se a figura isentiva tem natureza de norma que impede a ocorrência do fato gerador, como ficou claro nos ensinamentos trazidos à baila, a obrigação tributária nem chegará a nascer e, por conseqüência, o crédito também não. Nesse contexto, como poderíamos excluir algo que sequer chegou a existir? Esta é a principal crítica dos doutrinadores ao conceito clássico de isenção.

Tal qual a imunidade, a isenção também está situada no campo de incidência tributária, distinguindo-se desta em função do plano normativo em que habitam. Enquanto as imunidades são criadas por norma da Constituição Federal, as isenções decorrem de leis infraconstitucionais. De acordo com Sacha Calmon Navarro Coêlho, “os dispositivos isencionais, assim como os imunizantes entram na composição das hipóteses de incidência das normas de tributação, delimitando o perfil impositivo do fato jurígeno eleito pelo legislador.” Entendimento semelhante tem Zelmo Denari, ao afirmar que a regra jurídica de imunidade, à semelhança da de isenção, insere-se na área de incidência tributária, porque supõe a ocorrência de fatos e acontecimentos passíveis de imposição.

Por fim temos as reduções de bases de cálculo, que são benefícios fiscais concedidos pelas administrações tributárias, em sua maioria através de atos do Poder Executivo, com o objetivo de diminuir a carga fiscal de determinados segmentos da economia. Sacha Calmon Navarro Coêlho advoga que as reduções de bases de cálculo e de alíquotas decorrem do modo de calcular o conteúdo pecuniário do dever tributário, determinando uma forma de pagamento que implica redução do quantum tributário. O mesmo autor complementa seu ensinamento propondo que reduções de bases de cálculo e de alíquotas deveriam ser sempre parciais, uma vez que as exonerações totais já são atendidas através das fórmulas isentantes e imunizantes.

Observemos que, diferente da imunidade e da isenção, nas reduções de bases de cálculo verifica-se a ocorrência do fato gerador, o nascimento da obrigação tributária e a constituição do crédito pelo sujeito ativo, havendo apenas uma diminuição valorativa do montante a ser recolhido aos cofres públicos. Logo, resta claro que este favor fiscal nada tem que o assemelhe aos demais institutos jurídicos estudados neste tópico.

5. Da Isenção “Parcial” – Interpretação “Absurda”

Como vimos anteriormente, os Ministros do Supremo Tribunal Federal invocaram a figura da isenção “parcial” como base para proferir a sua decisão. Essa ficção jurídica encontra apoio em alguns doutrinadores de grande importância para o direito tributário brasileiro, como Pontes de Miranda e José Souto Maior Borges.

Segundo Pontes de Miranda “as isenções podem ser totais e parciais. Dizem-se parciais as isenções que deduzem do percentual do imposto ou do imposto fixo. As isenções totais são pré-excludentes da imposição. O imposto não recai no objeto ou no negócio jurídico a que se refere a regra jurídica de isenção.”

No mesmo sentido, José Souto Maior Borges afirma que “as isenções totais excluem o nascimento da obrigação tributária enquanto que, nas isenções parciais, surge o fato gerador da tributação, constituindo-se, portanto, a obrigação tributária, embora o quantum do débito seja inferior ao que normalmente seria devido senão tivesse sido estabelecido preceito isentivo.”

Paulo de Barros Carvalho também admite a existência de isenções parciais, porém, deixa claro que tal figura não se confunde com a isenção tributária, postulando que a diminuição que se processa no critério quantitativo, mas que não conduz ao desaparecimento do objeto, não é isenção, traduzindo singela providência modificativa que reduz o quantum de tributo que deve ser pago. Finaliza o autor informando que o nome atribuído a essa situação pelo direito positivo e pela doutrina é isenção parcial.

Com a devida venia, não podemos concordar com o entendimento dos mestres Pontes de Miranda e José Souto Maior Borges, pois, como vimos anteriormente, as isenções impedem o nascimento da obrigação tributária, o que torna inadmissível a existência de uma forma de isenção que permita o nascimento da obrigação tributária e tenha como objetivo apenas a diminuição do valor do tributo a ser recolhido.

Seguindo esta linha, Sacha Calmon Navarro Coêlho, que é, ao nosso ver, o autor que melhor discorre sobre a impossibilidade jurídica de existência das isenções parciais, nos traz o seguinte ensinamento:

“Ocorre, no entanto, que, à luz da teoria da norma jurídica tributária, a denominação de isenção “parcial” para o fenômeno da redução parcial do imposto a pagar, através das minorações diretas de bases de cálculo e de alíquotas, afigura-se absolutamente incorreta e inaceitável. A isenção ou é total ou não é, porque a sua essentialia consiste em ser modo obstativo ao nascimento da obrigação. Isenção é o contrário de incidência. As reduções, ao invés, pressupõem a incidência e a existência do dever tributário instaurado com a realização do fato jurígeno previsto na hipótese de incidência da norma de tributação. As reduções são diminuições monetárias no quantum da obrigação, via base de cálculo rebaixada ou alíquota reduzida.”

Luciano Amaro também não admite a existência das isenções parciais, propondo que, neste caso, talvez, não se deva designar a situação como isenta, afinal, o fato é gerador. O que ocorre é que, à vista de certa especificidade da situação, a base de cálculo é menor (assim como poderia ser maior), quando comparada à da situação similar em que a referida especificidade não se faz presente.

Independente das discussões doutrinárias, a figura da isenção “parcial” não está prevista na Carta Magna. Segundo preceitua Luciano Amaro, quando da interpretação em matéria tributária, deve-se ater ao princípio da tipicidade tributária, vedando-se a “interpretação extensiva e a analogia, incompatíveis com a taxatividade e determinação dos tipos tributários. Dessa forma, estaríamos diante de uma interpretação “absurda”.

Conforme leciona Vittorio Cassone, a interpretação que leve ao “absurdo” ocorre em matéria tributária quando completamente distanciada do contexto, ou quando cause impacto demasiado nas fianças dos contribuintes. E complementa, afirmando que:

“Uma hipótese que podemos considerar como interpretação absurda dá-se quando se pretende atribuir os mesmos efeitos jurídico-tributários a dois ou mais institutos relacionados no art. 150, § 6º, da CF, quais sejam: subsídio, isenção, redução da base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia, remissão. Isto porque, se a CF nomeou-os um a um, é obvio que cada um tem seus traços distintivos próprios e fundamentos constitucionais e infraconstitucionais diferentes.”

Portanto, ainda que órgãos do Poder Judiciário e uma parte da doutrina insistam na tese da existência de isenção parcial do tributo a ser recolhido, instrumentalizada através de reduções de bases de cálculo ou alíquotas, não podemos concordar com a criação desse novo instituto jurídico, pois a isenção, quando prevista em lei, impede a ocorrência do fato gerador e o nascimento da obrigação tributária, não podendo haver isenção “parcial”, apenas a isenção pura e simples, voltada a atingir a totalidade de um tributo e nunca uma parte deste. Em suma, a isenção ou é total ou não é isenção.

6. Do Princípio da Não-Cumulatividade

Também nos causou espanto a afirmação dos ministros da Egrégia Corte de que o mecanismo que reduz a base de cálculo do ICMS na saída de produtos industrializados e, em contrapartida, prevê o estorno, na mesma proporção, dos créditos do imposto recolhido na entrada de insumos, estaria perfeitamente de acordo como espírito do tributo, que é o de sujeição ao princípio da não-cumulatividade.

O princípio constitucional da não-cumulatividade do ICMS, encartado no art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal é claro e deve ser interpretado de forma literal, não admitindo entendimentos doutrinários ou jurisprudenciais que visem restringir ou ampliar o seu alcance.

Determina o preceito da não-cumulatividade do ICMS que “o imposto será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.”

Para facilitar a compreensão entendemos por bem “dissecar” o princípio transcrito acima para procedermos a uma análise mais acurada. Primeiramente, temos a expressão “devido em cada operação”. Nas situações em que haja o benefício fiscal da redução da base de cálculo, devemos entender por “devido” o valor obtido após a aplicação da alíquota sobre a base de cálculo já reduzida. Em seguida, temos a expressão “com o montante cobrado nas operações anteriores”. Independente da operação subseqüente estar sob a égide de algum favor fiscal, o imposto incidente nas operações anteriores será cobrado em sua totalidade. Dessa forma, o contribuinte tem o direito de aproveitar como crédito o valor total do imposto incidente sobre as aquisições de insumos de produção ou mercadorias para revenda junto aos fornecedores, ainda que as saídas decorrentes dessas aquisições se dêem ao abrigo do benefício fiscal em questão.

O princípio da não-cumulatividade admite apenas duas exceções: a não incidência e a isenção. Sendo assim, sempre que as aquisições de insumos de produção ou mercadorias para revenda se derem ao abrigo da isenção e não-incidência tributária, o contribuinte não terá direito ao crédito do imposto para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes, mesmo porque não houve cobrança de tributo.

A segunda exceção diz respeito às saídas amparadas por isenção e não-incidência, que acarretarão a anulação ou o estorno do crédito relativo às operações anteriores normalmente tributadas. Logo, se o contribuinte adquire insumos de produção ou mercadorias para revenda que se convertam em operações subseqüentes isentas ou não tributadas pelo imposto, este deverá estornar os créditos lançados por ocasião das aquisições.

Impende ressaltar que o texto constitucional utiliza a expressão “salvo determinação em contrário da legislação”, o que quer dizer que, se for do interesse do legislador, podem ser concedidos benefícios fiscais que admitam o credito presumido do ICMS nas aquisições abrigadas pela isenção e não-incidência tributária ou a manutenção do crédito das operações anteriores quando delas decorrerem saídas isentas ou não-tributadas pelo imposto.

7. Conclusões

Ante todo o exposto, resta claro que as normas que obrigam os contribuintes a estornar os créditos do ICMS relativos às aquisições de insumos de produção e mercadorias para revenda quando as operações subseqüentes são efetuadas com o benefício fiscal da redução da base de cálculo do imposto afrontam o disposto no art. 155, § 2°, II, “b” da Constituição Federal, sendo, pois, inconstitucionais.

A possibilidade de alargamento de um conceito constitucional, em prejuízo ao contribuinte, vez que a Constituição Federal não prevê a hipótese de isenção “parcial”, transforma o poder judiciário em legislador, operando-se, na prática, a substituição do poder constituinte (original ou derivado) em matéria de sua estrita competência. Ao Poder Judiciário não é permitido exercer papel que cabe ao legislativo.

Cabe aos onze ministros do Supremo Tribunal Federal, como guardiões da Cata Magna, ofertar segurança jurídica de natureza jurisprudencial a sociedade. Nos casos em que a legislação permanece inalterada, salvo hipótese de novo fato ou fundamento, a ponto de justificar uma mudança de posicionamento, deve a Corte Suprema manter as decisões precedentes sobre a mesma questão. A Segurança jurídica constitui elemento essencial do Estado Democrático de Direito.

De outro turno, sendo a redução da base de cálculo um benefício fiscal em favor dos contribuintes, a partir do momento em que não se admite a possibilidade de manutenção dos créditos relativos às operações anteriores, o benefício concedido se torna nulo ou até negativo, vale dizer, o Fisco estaria literalmente “dando com mão e retirando com a outra”.

Esperamos que os ilustres ministros da nossa Suprema Corte julguem os processos que lhes são apresentados como verdadeiros guardiões da Constituição Federal, e não como auditores fiscais que apreciam impugnações de autos de infração nas juntas e câmaras de julgamento fiscal com visão apenas arrecadatória. Não podemos admitir, também, que o Supremo tribunal Federal seja transformado em extensão do Palácio do Planalto, proferindo decisões de cunho político atendendo apenas os interesses do Poder Executivo.
Estamos vivendo um momento de insegurança jurisprudencial!!!

8. Referencial Bibliográfico

AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 10ª ed. atual São Paulo: Saraiva, 2004;

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000;

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002;

BORGES, José Souto Maior. Obrigação Tributária: uma introdução metodológica. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999;

BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001;

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 15ª ed. rev. e atual.São Paulo: Saraiva, 2003;

CASSONE, Vittorio. Interpretação no direito tributário: teoria e prática. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2004;

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 7ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2004;

DENARI, Zelmo. Curso de direito tributário. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2002;

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004;

MARTINS, Sérgio Pinto. Manual de direito tributário. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2002;

OLIVEIRA, Vicente Kleber de Melo. Direito Tributário: sistema tributário nacional: teoria e prática. 1ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
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*Contador e especialista em Direito Tributário

**Advogado e especialista em Advocacia Empresarial





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