Retrocesso na terceirização
Ricardo Gelly*
Após regular tramitação, a CTASP - Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados exarou parecer favorável ao Projeto de Lei em referência, tendo o respectivo Relator, Dep. Edgar Moury, sugerido a alteração proposta nos seguintes termos:=
"O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º A Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo:
"Art. 455-A. Nos contratos de prestação de serviços a terceiros, o inadimplemento das obrigações trabalhistas pelo empregador implica responsabilidade solidária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas das empresas públicas e das sociedades de economia mista.
Parágrafo único. Ao tomador dos serviços fica ressalvada, nos termos da lei civil, ação regressiva contra o prestador dos serviços e a retenção de importâncias a este devidas, para garantia das obrigações previstas neste artigo."
Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Sala da Comissão, 1 de novembro de 2007.
"Deputado Edgar Moury, Relator." (destaques e grifos não originais)
I - Considerações particulares em relação à terceirização
Inexiste, no Brasil, qualquer espécie de regulamentação legal referente à terceirização de serviços, excetuando-se o art. 455, da CLT e as leis 6.019/74 (trabalho temporário - clique aqui) e 7.102/83 (segurança privada - clique aqui) que, por serem específicas, não abarcam toda a complexidade da matéria.
Diante da lacuna legal em questão costuma-se aplicar, no âmbito dos problemas jurídico- trabalhistas decorrentes da terceirização, a Súmula 331, do C. TST, assim concebida:
"Contrato de prestação de serviços. Legalidade.
I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei 6.019, de 3.1.74).
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
III- Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei 7.102, de 20/6/83) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da lei 8.666, de 21/6/93)."
Verifica-se, portanto, que a vertente sumulada emanada da Corte Superior Trabalhista autoriza a prática da terceirização com reservas, dizendo-a ilegal num primeiro momento (inciso I) e permitindo-a, num segundo momento, nas hipóteses de contratação de serviços de vigilância, de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador e, mesmo assim, desde que não haja a pessoalidade e a subordinação direta (inciso III), estabelecendo ainda a responsabilidade subsidiária da empresa tomadora na hipótese de débitos de ordem trabalhista pertencentes à fornecedora de mão-de-obra (inciso IV).
II – Do posicionamento adotado em relação ao tema pelos Poderes Legislativo e Judiciário
Não há negar a necessidade de se disciplinar juridicamente o fenômeno da terceirização, adequando-a a uma legislação moderna que viabilize seu implemento como elemento indispensável para o desenvolvimento sócio-econômico do país.
No entanto, tal como se constata do PL em foco, o legislador pátrio, na tentativa de proteger o trabalhador terceirizado, parte do pressuposto de que é preciso equiparar juridicamente tanto a empresa fornecedora de mão-de-obra como a própria tomadora, impondo-lhes igual responsabilidade pelos contratos de trabalho, sem hipóteses nem reservas, indistintamente.
E se em nível Legislativo esse entendimento isonômico vem sendo trilhado, no Judiciário não faltam vozes em pról de idêntico procedimento, haja vista que, na "Primeira Jornada de Direito Material de Processual na Justiça do Trabalho", realizada sob a promoção conjunta da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA), do próprio Tribunal Superior do Trabalho e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados do Trabalho (ENAMAT), foram aprovados três Enunciados sobre terceirização, os quais preconizam o quanto segue:=
"Enunciado nº 10 – Terceirização. Limites. Responsabilidade solidária. A terceirização somente será admitida na prestação de serviços especializados, de caráter transitório, desvinculados das necessidades permanentes da empresa, mantendo-se, de todo modo, a responsabilidade solidária entre as empresas"
"Enunciado nº 11 – Terceirização. Serviços públicos. Responsabilidade solidária. A terceirização de serviços tipicos da dinâmica permanente da Administração Pública, não se considerando como tal a prestação de serviço público à comunidade por meio de concessão, autorização e permissão, fere a Constituição da República, que estabeleceu regra de que os serviços públicos são exercidos por servidores aprovados mediante concurso público. Quanto aos efeitos da terceirização ilegal, preservam-se os direitos trabalhistas integralmente, com responsabilidade solidária do ente público."
"Enunciado nº 16 – Salário. I – Salário. Princípio da isonomia. Os estreitos limites das condições para a obtenção da igualdade salarial estipulados pelo art. 461 da CLT e Súmula nº 6 do Colendo TST não esgotam as hipóteses de correção das desigualdades salariais, devendo o intérprete proceder à sua aplicação na conformidade dos arts. 5° , caput, e 7° , inciso XXX, da Constituição da República e das Convenções n. 100 e 111 da OIT. II – Terceirização. Salário eqüitativo. Princípio da não-discriminação. Os empregados da empresa prestadores de serviços, em caso de terceirização lícita ou ilícita, terão direito ao mesmo salário dos empregados vinculados à tomadora que exercerem função similar."
Tais enunciados, conquanto não possuam eficácia de cunho jurisprudencial, espelham com precisão o entendimento da Justiça do Trabalho a respeito do tema.
III - Análise crítica
A postura que vem sendo adotada pelos Poderes Legislativo e Judiciário merece sérias críticas sob o ponto de vista econômico, social e, finalmente, jurídico, sobretudo porque vem a dificultar ou até mesmo inviabilizar, por completo, a atividade da terceirização, hoje vital para o segmento sócio-econômico.
Assim o dizemos porque o fenômeno da terceirização constitui realidade concreta e inafastável do mundo globalizado, constituindo-se num fomentador de todo um sistema produtivo, trazendo maior agilidade, flexibilidade e competitividade às empresas, isso para não se falar, muitas vezes, na sua própria sobrevivência. Estas - as empresas - pretendem, com a terceirização, a transformação de seus custos fixos em variáveis, possibilitando o maior aproveitamento da produção, com transferência de numerário para a aplicação em tecnologia ou em seu desenvolvimento e também em novos produtos. (Sergio Pinto Martins in "A Terceirização e o Direito do Trabalho", Malheiros editores, 3ª edição, p. 22).
Não por outra razão é que a terceirização configura em alguns países, especialmente no Japão – onde teve a sua criação após a crise do modelo fordista de produção, nascendo daí o toyotismo – experiência das mais proveitosas e bem sucedidas, tanto para as empresas quanto para os empregados.
Tal é a esclarecedora explanação do Professor JOSÉ PASTORE (in Relações do Trabalho no Japão – São Paulo, OIT/IBCB, 1993, pág. 3):
"A subcontratação e a terceirização são praticadas em larga escala no Japão. Os sindicatos japoneses não se opõem a isso. Eles entendem que esse sistema maximiza resultados para a empresa e, por isso, é bom. No setor siderúrgico, a proporção de trabalhadores subcontratados em relação ao total do setor é de 45%. Em algumas usinas modernas, esse número chega a 60%! No setor naval, igualmente, a subcontratação atinge cerca de 33% dos trabalhadores.
O mesmo ocorre nos setores químico e da construção. Os trabalhadores subcontratados do setor siderúrgico têm seu próprio sindicato embora, em vários outros setores, eles não estejam organizados. Há muitos trabalhadores que se aposentam nas grandes empresas e vão trabalhar como subcontratados nas mesmas."
Por outras palavras: cuida a espécie da própria sobrevivência das empresas no universo da competição globalizada, assumindo especial importância, inclusive, para a Administração Pública, a quem o trabalho terceirizado vem em socorro das atividades a ela inerentes. Observe-se, no particular, que, recentemente, o Hospital Pronto Socorro do Município da grande Porto Alegre, iniciou suas atividades com 50 (cinquenta) profissionais servidores públicos e mais de 400 (quatrocentos) cooperados não concursados, a evidenciar, desenganada e induvidosamente, a minimização de custos também em nível público.
Trata-se a terceirização, pois, de um fenômeno necessário e inarredável no segmento econômico e social no contexto das nações, em que a atividade representa quinhão relevantíssimo do arcabouço de empregos. Aliás, para o mencionado professor Sérgio Pinto Martins, "há notícias de que para cada novo emprego perdido na empresa, há a criação de três novos na atividade terceirizada" (in obra citada, p. 23)
Ainda a propósito do tema, insta salientar que o Japão adotou legislação protetiva do trabalhador terceirizado, não no sentido de sobrecarregar as tomadoras com as responsabilidades pelos serviços prestados pelas fornecedoras de mão-de-obra == como se pretende no Brasil pela via legislativa e, o que é pior, com a anuência do Poder Judiciário == mas de regular a atuação destas últimas que, nos termos da lei, devem ter autorização do Ministério do Trabalho para atuar como tal.
O Japão ainda criou, a respeito, a chamada "Worker Dispatching Law", de 1985, com os objetivos básicos de: a) prevenir a exploração dos trabalhadores pelas empresas fornecedoras de mão-de-obra, b) regulamentar as condições de trabalho dos terceirizados, c) determinar quem é o responsável pelo cumprimento das leis de proteção ao trabalho e d) evitar que as empresas fornecedoras concorram para a erosão dos empregos regulares, sujeitos a regimes de trabalho vitalício.
Naquele país, o trabalhador subcontratado fica subordinado às ordens da empresa cliente. Contudo, se o fornecimento da mão-de-obra for feito em conformidade com a lei regulamentadora dessa atividade, não haverá contrato entre o trabalhador e a empresa tomadora. Esta deverá apenas tomar as medidas necessárias, exigidas por lei, para que se não desvirtue o contrato de fornecimento de mão-de-obra. Estamos falando da segunda economia do mundo !!
Mas, se sob o prisma econômico e social a terceirização vem a ser uma necessidade real e concreta, sob o ponto de vista jurídico a responsabilização solidária das tomadoras, genérica e indistintamente, tal como pretendido pelo Legislativo, com o referendo do Judiciário, frise-se, representa anomalia imperdoável e manifesto descompasso com as fontes materiais do direito sob enfoque, já que as normas têm ou devem ter, sempre, fundamento na realidade sócio-político-econômica no tempo.
Logo, o intuito de desestimular ou mesmo de inviabilizar a terceirização para as tomadoras tipifica visão antijurídica e ontologicamente falsa.
Explica-se: se as tomadoras não são as efetivas empregadoras dos trabalhadores terceirizados, evidentemente não devem assim ser tratadas, sob pena de se distorcer por completo o conceito de empregado e empregador preconizado pela Consolidação das Leis do Trabalho. Nesse diapasão estar-se-á a malferir o princípio da livre iniciativa, constitucionalmente assegurado, numa ingerência excessiva e tardiamente corporativa na vida empresarial brasileira.
Consoante explicita, com ponderação e bom senso, o preclaro jurista Jorge Eduardo Gabriel Saad, em recente artigo de sua autoria a respeito de outro projeto de lei afeto à terceirização: "deve ficar aí esclarecido que a responsabilidade solidária da contratante (...) não será presumida, mas apurada na forma do art. 186, do Código Civil (...) posto que a responsabilidade da contratante não pode surgir por mera presunção. Deve ela ser apurada na forma do art. 186, do Código Civil, que estabelece o seguinte: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrém, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito." (in LTr, janeiro de 2009, pág. 73-01/33).
No nosso entendimento, a inserção proposta pelo citado Projeto de Lei (art. 455-A), para o efeito de impor às tomadoras uma responsabilidade a princípio descabida (devendo ser observado cada caso em concreto, nos dizeres de Gabriel Saad) não constitui medida salutar, mas, ao revés, manifestamente retrógrada e em total descompasso com as modernas economias, valendo dizer:= na contra-mão do progresso e da história.
Faz-se aconselhável, na espécie, o uso da criatividade para o implemento de uma legislação moderna e ponderada que, ao mesmo tempo em que legalize a terceirização de um modo geral, aperfeiçoando-a, conceda proteção ao trabalhador terceirizado. É, ainda, de se dar especial importância à participação sindical, inclusive na entabulação de Acordos e Convenções Coletivas de Trabalho, além da experimentação do pouco utilizado (no Brasil) Contrato Coletivo de Trabalho.
Fica aqui a sugestão de que se aproveite como fonte inspiradora a experiência japonesa relativa à matéria, mormente no tópico infenso à aprovação das fornecedoras de mão-de-obra pelo Ministério do Trabalho, o qual constataria, de antemão, a idoneidade financeira da fornecedora, medida que, além de dar respaldo às tomadoras para a contratação de fornecedoras, prevenindo a problemática do estabelecimento das culpas in vigilando e in eligendo, também teria o condão de evitar maiores riscos aos empregados terceirizados.
Para tanto, é de rigor que os órgãos representativos de classe, tanto econômicos como profissionais, promovam intensos debates a respeito da matéria, de modo a elucidar e esclarecer os Poderes Legislativo e Judiciário da necessidade imperiosa de se viabilizar um moderno sistema de terceirização, mister que implicará, por igual, na tão decantada e necessária flexibilização nas relações de trabalho.
Se tal inocorrer, a frase do eminente jurista e Desembargador do Trabalho Sergio Pinto Martins == "há notícias de que para cada novo emprego perdido na empresa, há a criação de três novos na atividade terceirizada" == tornar-se-á letra morta no contexto sócio-econômico e, em especial, nas relações de trabalho, pois a vingar o estado de coisas que se pretende, para cada novo emprego perdido na empresa não haverá a criação de três novos, ao revés, ter-se-á quatro novos desempregados.
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*Advogado do escritório Thiollier Advogados
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