Por que eliminar os embargos infringentes? Um recurso com inúmeras virtudes
José Augusto Garcia de Sousa*
Divulgado o anteprojeto de novo CPC (clique aqui), obra de uma comissão de notáveis juristas, encabeçada pelo Ministro Luiz Fux, deparamos com propostas as mais alvissareiras, o que em nada surpreende, dado o alto nível da comissão. Uma das inovações apresentadas, no entanto, preocupa-nos sobremodo, qual seja, a eliminação dos embargos infringentes.
Aqui, ousaremos remar contra a corrente. Sustentaremos a preservação dos embargos infringentes. Mais do que a defesa pontual de um meio impugnativo, estaremos defendendo uma determinada concepção do direito processual, marcada pelo equilíbrio entre o imperativo da celeridade e a também importante veia argumentativa do processo. Nesse sentido, o texto servirá a uma reflexão acerca dos rumos da grande reforma processual em marcha. Ao mesmo tempo, estaremos enfrentando o dilema maior do processo nos dias atuais, o dilema do tempo. Atenção: não estamos nos referindo somente à luta contra a morosidade. Todo dilema tem dois lados. É preciso cuidar também do segundo lado do dilema, e a isto se propõe o trabalho.
Sem se negar de maneira alguma o mérito da dura batalha travada contra o tempo em terras processuais, não se pode deixar de observar que o processo, paradoxalmente, carece cada vez mais do seu grande inimigo! De fato, à medida que o processo judicial vai ganhando complexidade e transcendência sem precedentes, um tempo mais dilatado — para argumentos e debates — lhe é indispensável em não poucos casos. Eis aí o segundo lado - frequentemente negligenciado - do grande dilema do processo nos dias que correm.
Repise-se: não somos contrários, e nem poderíamos ser, à empresa da aceleração da prestação jurisdicional. Sem embargo, é evidente que a celeridade não pode ser vista como valor absoluto e invencível, um direito magno a se deslocar no solo processual com a pujança de um rolo compressor. Não. A celeridade é meio, não fim. Sem que haja um mínimo de qualidade na prestação jurisdicional, o sentido positivo da celeridade desvirtua-se por completo. Se a decisão judicial é equivocada, melhor que venha morosa do que a jato... Também no processo, como na vida em geral, o equilíbrio é de ouro.
O que torna um processo equilibrado? Em que pese a complexidade da questão, ao menos alguns traços relevantes podem ser apontados. Em um processo equilibrado, o predicado da efetividade não é aferido por um prisma puramente quantitativo, mas também qualitativo. Efetivo não é apenas o processo que, em pouco tempo, proporciona o bem da vida à parte que está com a razão, mas é também o processo que consegue respeitar as garantias de quem não tem razão. Até porque hoje em dia, dada a complexidade do direito — e do mundo —, ficou muito mais árduo descobrir previamente a parte que está com a razão. Mais do que nunca, é no processo, argumentando e debatendo, que a razão aparece.
Além disso, um processo equilibrado aposta na pluralidade de linhas axiológicas e técnicas. Ele não fecha portas. Abre-se para o amanhã sem descurar de experiências passadas, sendo estas repaginadas valorativamente. Se o formalismo já se confundiu com burocratismo e insensibilidade, hoje tem uma importante função garantística. O grande negócio do processo equilibrado é a diferenciação, a versatilidade, a aptidão para cuidar de situações heterogêneas. Surge aí uma clara convergência em relação à jusfilosofia predominante. Para o correto equacionamento dos casos considerados difíceis, o pós-positivismo exalta os princípios e a ponderação. São técnicas diferenciadas para casos especiais. Não obstante, continuam ativos as regras e o método subsuntivo. Para cada caso, então, procura-se o arsenal adequado. É um grande esforço de diferenciação, que serve para valorizar os casos concretos. Da mesma forma deve atuar o processo contemporâneo: forte no pluralismo e na diversificação. E é exatamente à luz das exigências do processo equilibrado e pluralista que devemos analisar os embargos infringentes.
Os embargos infringentes sempre foram alvo de muita polêmica1. A lei 10.352/01 (clique aqui) manteve o recurso, mas lhe apôs restrições relativas ao cabimento, de molde a torná-lo muito mais razoável. Passou a prevalecer então - pelo menos no que diz respeito aos embargos infringentes derivados de apelação - critério dito "futebolístico"2, vez que o cabimento do recurso exige um "empate" de dois a dois — de um lado, o juiz de primeiro grau e o voto vencido na apelação; do outro, os dois votos vencedores —, ficando o desempate para a hora dos embargos infringentes, que funcionam como "prorrogação". Outra alteração importante foi canalizar o recurso para os provimentos de mérito.
Mesmo no novo formato, os embargos infringentes continuaram a atrair críticas e propostas de abolição, embora sem a mesma intensidade do período anterior às alterações promovidas pela lei 10.352/01. Por que o recurso deveria ser extinto? Porque ele continuaria sendo, segundo seus detratores, um recurso desprovido de maior utilidade, só servindo mesmo à procrastinação da tutela jurisdicional, tratando-se além do mais de uma figura sem equivalente no direito processual comparado. Em que pese a autoridade dos que verberam os embargos infringentes, entendemos que há inúmeras boas razões no sentido da preservação do recurso.
Na defesa dos embargos infringentes, cumpre refutar, antes de mais nada, o discurso que atribui aos recursos grande parte da responsabilidade pela morosidade do processo. Muito forte na mídia brasileira, ele transita bem, igualmente, entre os profissionais jurídicos. Como todo discurso reducionista, privilegia superfícies e não mostra maior disposição para enfrentar dados empíricos ou nuances do problema. Recursos atrasam o processo? Certamente que sim. Mas o próprio processo atrasa a vida. Nada mais rápido e fulminante do que a autotutela. Só que a civilização atual deplora, felizmente, a justiça pelas próprias mãos. Há então a necessidade imperiosa do processo, por mais pesado que seja para as pessoas e para a sociedade. O mesmo se pode dizer dos recursos. Também eles consistem em um "mal" necessário, dada a exigência intransponível de ser minimamente democrático o sistema de justiça. Dessa forma, a "perda" de tempo ocasionada pelos recursos apresenta um sentido nobre.
De toda sorte — e aí vai um primeiro e irrespondível argumento a favor da tese preservacionista —, extinguir os embargos infringentes não vai auxiliar em nada a campanha contra a morosidade. Por uma razão muito simples: eles são, em termos numéricos, absolutamente insignificantes. Os próprios desembargadores, a bem do caso específico ou mesmo por comodidade pessoal, evitam ao máximo produzir julgados não unânimes. Só divergências muito sérias são convertidas efetivamente em votos vencidos. Transformaram-se os embargos infringentes, principalmente após a lei 10.352/01, em ave raríssima na nossa paisagem pretoriana. Pergunta-se então: eliminar os embargos infringentes a troco de quê? O ganho em termos de celeridade, globalmente falando, seria nulo. À vista dessa constatação elementar, perde sentido a proposta de eliminação.
Se não há motivo para acabar com o recurso, existem razões muito fortes para mantê-lo. Apesar de raros no cotidiano forense, trazem os embargos infringentes benefícios bastante transcendentes para o sistema de justiça.
Um primeiro traço positivo dos embargos infringentes diz respeito à segurança jurídica, valor fundamental da nossa Constituição (clique aqui). Quando derivados de apelação, lembre-se, somente são cabíveis na hipótese de um "empate" de dois a dois. Mesmo considerando o peso formalmente superior dos votos oriundos do órgão ad quem, fica caracterizada, sob o ângulo substancial, uma situação aguda de incerteza e insegurança. Vêm os embargos infringentes para trazer a solução, o desempate. É um desempate virtuoso, não só sob a perspectiva numérica mas também do ponto de vista procedimental, à medida que o recurso permite a reapreciação da matéria controvertida em bases privilegiadas, ficando o respectivo julgamento por conta exclusivamente da controvérsia. Já no que toca aos julgados não unânimes de procedência em ações rescisórias, o apoio dos embargos infringentes à segurança jurídica talvez se mostre ainda mais pronunciado, vez que está em jogo a própria coisa julgada, bastião maior da segurança no campo processual.
Outro aspecto muito positivo dos embargos infringentes é o fato de representarem mecanismo destinado a pacificar conflitos jurisprudenciais. Numa época que valoriza intensamente tais mecanismos, os embargos infringentes devem ser estimulados e não suprimidos. Ainda mais porque o recurso desempenha um papel muito peculiar, servindo à promoção de decisões inovadoras dos juízes de primeiro grau. Como bem esclarece Pedro Miranda de Oliveira, os embargos infringentes acabam por "ventilar" a jurisprudência, trazendo à tona os entendimentos minoritários de vanguarda3.
O efeito de consolidação de teses inovadoras, proporcionado pelos embargos infringentes, insinua a grande virtude objetiva do recurso, que é a de contribuir para o fortalecimento da argumentação no ambiente processual. De uma forma geral, qualquer recurso, em maior ou menor grau, consubstancia terreno fértil para a argumentação. Nos embargos infringentes, sobe de tom essa índole argumentativa. Afinal, há um fator que faz toda a diferença: a divergência em que o recurso está baseado. Na hipótese de eliminação dos embargos infringentes, essa estrutura voltada para a argumentação se perderia, o que seria lastimável. E mais. Um autêntico anticlímax, do ponto de vista argumentativo, seria produzido. Mal se manifestaria a polêmica nos autos, revelada pelo julgamento colegiado, e ela se veria abruptamente abortada nas vias ordinárias, restando inexploradas as ricas perspectivas hermenêuticas ligadas ao aprofundamento da discussão. Ou seja, no momento mais propício ao acirramento argumentativo da controvérsia, esta subitamente se fecharia.
Também sob a ótica subjetiva, vantagens nem um pouco desprezíveis podem ser contabilizadas. Tome-se, a propósito, a perspectiva dos "consumidores" dos serviços jurídicos. Como se sabe, um dos aspectos revolucionários do movimento do acesso à justiça, quiçá o aspecto mais revolucionário, foi propor a substituição da tradicional perspectiva dos "produtores" do sistema pela perspectiva dos "consumidores". Essa inversão conduz a um processo mais humano e atento aos anseios do jurisdicionado, do homem do povo. Evidentemente, um processo assim não pode permitir jamais a dor e o inconformismo profundos de um litigante que se descobre derrotado mesmo tendo a seu favor o mesmo número de magistrados que apoiou a parte vencedora. Dessa forma, a existência dos embargos infringentes contribui para o triunfo da perspectiva dos “consumidores” dos serviços jurídicos, ao menos no plano recursal.
Toda a nossa argumentação ganha ainda mais densidade quando se imagina a hipótese de a decisão dividida envolver o tema dos direitos fundamentais, como ocorreu em caso concreto no qual atuamos, versando sobre o próprio direito à vida (de um detento ex-policial que lutava contra sua transferência para certo presídio, onde correria grave risco de morte). Nesse caso, se não fossem os embargos infringentes, teria ficado incólume julgado desfavorável aos direitos fundamentais (com remota chance de mudança nas instâncias excepcionais), apesar da funda divergência ocorrida, o que representaria verdadeira aberração do ponto de vista constitucional. Em nossa ordem jurídica, e em qualquer ordem democrática, a proteção aos direitos fundamentais deve ser a mais ampla e substancial possível, inclusive — e principalmente — no âmbito judiciário. O processo da era pós-positivista é um processo visceralmente amigo dos direitos fundamentais.
Uma ordem processual reverente às garantias fundamentais, insista-se, não descuida das necessidades especiais apresentadas por determinados casos. Levar a sério a dignidade humana é valorizar a riqueza e a complexidade dos casos concretos, não deixando nenhuma peculiaridade relevante sem tratamento adequado. Um sistema processual insensível à diversidade é um sistema que, a pretexto de agradar às estatísticas, acaba esquecendo do homem. Nos casos envolvendo afirmação de direitos fundamentais, mostra-se realmente imprescindível o "desempate" propiciado pelos embargos infringentes, sobretudo quando os direitos fundamentais parecem estar levando a pior.
À vista de todas as virtudes dos embargos infringentes, verifica-se que o recurso ostenta uma relação custo-benefício formidável. Por um lado, dada a excepcionalidade do seu cabimento, é um recurso "barato" e que "pesa" pouco, não atrapalhando minimamente, em termos globais, a meta da aceleração da prestação jurisdicional no Brasil. Por outro lado, os embargos infringentes, quando ativados, produzem efeitos notáveis para as partes e para o sistema, subjetiva e objetivamente. Aduza-se que abolir agora os embargos infringentes seria desconsiderar o salto evolutivo trazido pela relativamente recente lei 10.352/01, que conseguiu dotar o recurso de um perfil mais equilibrado e razoável. Não bastasse, incidiríamos em vezo repetidamente criticado por José Carlos Barbosa Moreira: proceder a reformas processuais desligadas de estudos empíricos adequados e sólidos. Com efeito, quem sabe dizer o percentual de embargos infringentes providos em território brasileiro? Aparentemente, um bom número acaba tendo provimento. Confirmando-se tal impressão, fica ainda mais indefensável a eliminação do recurso.
Enfim, defendemos os embargos infringentes por entendermos que a grande reforma processual, em pleno fastígio da metodologia instrumentalista, deve ter horizontes frondosos, homenageando as grandes linhas evolutivas da dogmática contemporânea. Sobretudo, não pode a reforma deixar de observar a relevância da argumentação no direito hodierno. Se a complexidade do direito cresce exponencialmente nos dias atuais, não convém tornar o sistema processual mais arredio à argumentação e ao debate.
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1 A propósito da controvertida trajetória dos embargos infringentes entre nós, confira-se José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V (arts. 476 a 565), 15ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 518-521.
2 Cândido Rangel Dinamarco, A Reforma da Reforma, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 198.
3 Pedro Miranda de Oliveira, O novo regime dos embargos infringentes, in Nelson Nery Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier (coordenadores), Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de Outros Meios de Impugnação às Decisões Judiciais, nº 7, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 611-612.
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*Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Processual Civil da Direito GV
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