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A Sucessão dos Companheiros no NCC - Luiz Felipe Brasil Santos

De início, chama a atenção o fato de que a regra (artigo 1.790) que trata da vocação hereditária dos companheiros, encontra-se inteiramente deslocada, situando-se nas disposições gerais, quando o adequado teria sido tratar desse tema no artigo 1.829, em conjunto com os demais herdeiros.

30/1/2003

A Sucessão dos Companheiros no novo Código Civil

 

Luiz Felipe Brasil Santos*

 

 

Merece profundo lamento o equivocado, injusto e discriminatório tratamento que o novo Código Civil confere ao direito sucessório dos companheiros.

 

De início, chama a atenção o fato de que a regra (artigo 1.790) que trata da vocação hereditária dos companheiros, encontra-se inteiramente deslocada, situando-se nas disposições gerais, quando o adequado teria sido tratar desse tema no artigo 1.829, em conjunto com os demais herdeiros. O inconveniente explica-se, é certo, pelo fato de que o regramento da união estável não constava do Projeto de Lei 634/75 – até porque a união estável somente veio a ingressar como tal no mundo jurídico pela Constituição Federal de 1988 – tendo sido acrescentado posteriormente, através de emenda do Senador Nelson Carneiro.

 

Ao contrário do que sucede com cônjuge, que com o novo Código passa a desfrutar da condição de herdeiro necessário (artigo 1845), tendo, por isso, assegurada a sua legítima (artigo 1.846), ao companheiro não foi reconhecido igual status. Logo, não havendo outros herdeiros necessários (descendentes e ascendentes), o autor da herança poderá testar a integralidade de seu patrimônio, deixando o companheiro ao desamparo, ressalvada, é claro, a possível meação, quando for o caso.

 

Em incompreensível restrição, o companheiro, de acordo com o caput do artigo 1.790, passa a herdar somente o conjunto de bens adquiridos na vigência da união estável, enquanto no sistema anterior ( Lei 8.971/94), por não existir tal limitação, poderia herdar a integralidade do acervo, inexistindo descendentes ou ascendentes.

 

Há grave equívoco aqui, que pode conduzir a situações de injustiça extrema. Basta imaginar a situação de um casal, que conviva há mais de 20 anos, residindo em imóvel de propriedade do varão, adquirido antes do início da relação, e não existindo descendentes nem ascendentes. Vindo a falecer o proprietário do bem, a companheira não terá direito à meação e nada herdará. Assim, não lhe sendo mais reconhecido o direito real de habitação nem o usufruto, restar-lhe-á o caminho do asilo, enquanto o imóvel ficará como herança jacente, tocando ao ente público.

 

Para evitar tal situação de flagrante injustiça, creio que a interpretação deverá aproveitar-se de uma antinomia do dispositivo em exame. Ocorre que, enquanto o caput do artigo 1.790 diz que o companheiro terá direito de herdar apenas os bens adquiridos no curso do relacionamento, o seu inciso IV dispõe que, não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. Ora, a expressão totalidade da herança não deixa dúvida de que abrange todos os bens deixados, sem a limitação contida no caput. Evidente a antinomia entre a cabeça do artigo e seu inciso. Entretanto, uma interpretação construtiva, que objetive fazer acima de tudo justiça, pode extrair daí a solução que evite a injustiça e o absurdo de deixar um companheiro, em dadas situações, no total desamparo. Portanto, não havendo outros herdeiros, o companheiro, por força do claro comando do inciso IV, deverá receber não apenas os bens havidos na constância da relação, mas a totalidade da herança.

 

Em certa medida, amplia-se, por outro lado, o direito sucessório do companheiro, uma vez que passa a concorrer em igualdade de condições com filhos comuns, e, se a concorrência se der com filhos apenas do autor da herança, receberá a metade do que a cada um destes couber. Dificuldade sem solução na lei haverá quando a concorrência se estabelecer com filhos comuns e filhos só do autor da herança. Como se dará, nesta hipótese, o cálculo do quinhão do companheiro, uma vez que, sendo os filhos portadores de iguais direitos entre si, não haverá possibilidade de atribuir a eles quinhões desiguais ? Em uma interpretação que entendo deva ser favorável ao companheiro, a solução mais justa aponta no sentido de atribuir a este quinhão igual ao de cada um dos filhos.

 

Em outro ponto se manifesta o tratamento discriminatório em relação ao companheiro. É que o cônjuge, quando concorre com filhos comuns, tem assegurada, no mínimo, uma quarta parte da herança (artigo 1.832). Assim, sendo, v.g., cinco (5) filhos comuns, o cônjuge receberá mesmo assim 1/4 da herança, sendo os outros 3/4 divididos entre os cinco (5) filhos. Esse direito de quinhão mínimo, entretanto, não é estendido ao companheiro.

 

A concorrência do companheiro, é bom que se frise, dar-se-á apenas sobre os bens adquiridos na constância do relacionamento, depois de separada a meação que lhe toca, se for o caso, conforme o regime de bens adotado (v. artigo 1.725). Quanto aos bens eventualmente adquiridos antes do início da relação, o companheiro não terá direito sucessório, salvo, como vimos, a hipótese do inciso IV, quando for herdeiro único.

 

A regra do inciso III consagra outra notável injustiça. Concorrendo com parentes colaterais, o companheiro receberá apenas um terço da herança. E, destaque-se, um terço dos bens adquiridos durante a relação, pois, quanto aos demais, tocarão somente ao colateral. Assim, um colateral de quarto grau ( um único “primo irmão” ) poderá receber o dobro do que for atribuído ao companheiro de vários anos, se considerados apenas os bens adquiridos durante a relação, ou muito mais do que isso, se houver bens adquiridos em tempo anterior.

 

O artigo 1.830, ao assegurar o direito sucessório ao cônjuge mesmo se já separado de fato, desde que por tempo inferior a dois anos (ou mais, se provado que a ruptura deu-se sem culpa do sobrevivente), cria regra de difícil harmonização com o direito sucessório do companheiro que simultaneamente venha a concorrer com cônjuge nestas condições.

 

Imagine-se a situação de uma união estável existente há dez anos, vindo a falecer um dos parceiros, que era separado apenas de fato. O cônjuge (melhor seria dizer ex-cônjuge, ante a prolongada separação fática) poderá mesmo assim vir a herdar desde que comprove que a separação ocorreu sem culpa sua ! Ou seja: o Código traz o tema da culpa para dentro do direito sucessório, o que constitui inconcebível retrocesso, que levará à eternização dos inventários, que precisarão ficar suspensos enquanto se discute, em autos separados – por se tratar de questão de alta indagação – de quem foi a culpa pela separação fática ocorrida dez anos antes! E isso tudo em claro prejuízo ao companheiro, que vivia com o autor da herança ao tempo do falecimento deste, que fica sem poder receber tão cedo seu quinhão e, além disso, caso o cônjuge (ex) comprove sua tese, ainda terá que dividir com ele não apenas os bens que o autor da herança possuía quando estava na constância do casamento, como, por igual, os bens que veio a adquirir já no curso da união estável. E, destaque-se, em nenhum momento o Código regra como se dará, neste caso, a divisão dos bens entre o cônjuge (ex) e o companheiro, o que, sem dúvida, vai constituir hercúlea tarefa de construção jurisprudencial.

 

Por fim, arrematando essa verdadeira “caçada” ao direito sucessório dos companheiros, o novo Código Civil não os contempla com o direito real de habitação nem com o usufruto, direitos antes previstos nas Leis 8.971/94 e 9.278/96. Quanto ao cônjuge, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família está assegurado no artigo 1.831, inclusive de modo mais amplo do que no antigo Código Civil de 1916, uma vez que agora não se extingue com o novo casamento do beneficiário, como antes ocorria (artigo 1.611, parágrafo 2o. , CC 1916).

 

Para concluir, resta referir que o próprio relator do Código Civil na Câmara Federal, Deputado Ricardo Fiúza, reconhecendo os diversos equívocos cometidos no tratamento deste tema, encaminhou proposta de substancial alteração ao artigo 1.790, através do PL 6960/02, que, por não ter sido votado ainda no ano de 2002 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, acabou sendo regimentalmente arquivado. Porém, há notícia de que o mesmo legislador está preparando um texto único que consolidará os três Projetos de Lei ( PL 6960/02, 7160/02 E 7312/02 ) por ele apresentados para o tão necessário aperfeiçoamento do novo Código. No que diz com o dispositivo em exame (artigo 1.790), o novo regramento deverá passar a ter a seguinte redação :

Art. 1.790 - O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte:

 

I - em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641);

 

II - em concorrência com ascendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes;

 

III – em falta de descendentes e ascendentes, terá direito à totalidade da herança.

 

Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”

Como se vê, alguns dos equívocos antes diagnosticados ficam reparados com a nova redação proposta, buscando o texto, ademais, dar um tratamento simétrico ao direito sucessório dos companheiros e dos cônjuges.

 

Entretanto, persiste, a nosso ver, no grave equívoco de discriminar ambas as situações, ao manter o cônjuge como herdeiro necessário e não atribuir idêntica condição ao companheiro, que, além disso, continua sem ter assegurado o quinhão mínimo que é garantido ao cônjuge, quando concorre com filhos comuns.

________________

 

* Desembargador do TJ-RS, Professor das Escolas da Magistratura e do Ministério Público do RS, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – Seção RS (IBDFAM-RS)

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