Democracia em crise
Lázaro Piunti*
Fundador do COPEI, partido político de ideologia democrata-cristã, à qual pertenceram Alcides De Gaspari, na Itália, Konrad Adenauer, na Alemanha, Eduardo Frei, no Chile e Franco Montoro, no Brasil, Rafael Caldera presidiu a Venezuela em duas oportunidades.
Em 1971, quando tinha apenas 24 anos e presidia o Sindicato dos Trabalhadores Ceramistas e da Construção e Mobiliário de Itu, recebei da FNT - Frente Nacional do Trabalho, associação civil fundada em 1º de maio de 1960 por Mário Carvalho de Jesus, também ele democrata-cristão e advogado de sindicatos operários, para representá-la em Congresso de dirigentes sindicais cristãos da América Latina e do Caribe. O seminário se realizou em Caracas, sob a coordenação da Confederação Mundial do Trabalho
Era o único sindicalista brasileiro presente, em parte porque muitos dirigentes da esquerda não queriam ver o nome associado ao sindicalismo de tendência social-cristã, em parte pelo temor que alimentavam da repressão, eis que o Brasil estava submetido a um regime militar.
Solteiro, tomado pelo ideal democrático e por haver optado atuar à luz do sol e não na clandestinidade, aceitei o convite, sem temer consequências futuras. Como presidente de importante sindicato, cuja atuação pautava-se pela defesa dos trabalhadores, era um dos jovens dirigentes operários do Brasil e, talvez, da América Latina, pois havia assumido o primeiro mandato com apenas 19 anos de idade.
Rafael Caldera recebeu as várias delegações latino-americanas e do Caribe em agradável tarde primaveril no histórico Palácio Miraflores. Tratou a todos com elegância e, ao se dirigir a mim, indagou sobre o então Senador André Franco Montoro, de quem era amigo particular. Quando timidamente o inquiri sobre sua visão do continente ibero-americano, onde, à época, apenas Venezuela e Costa Rica viviam sob o regime democrático e todos os demais se contorciam debaixo de governos autoritários, o grande venezuelano me respondeu, sem esconder a tristeza que o invadia: "Acabamos de sair de uma ditadura perversa (Caldera vencera a primeira eleição direta, após a derrubada do corrupto e autoritário Perez Gimenez) e as nossas responsabilidades transcendem aos limites da Pátria. Ampliar a solidariedade continental é do nosso dever".
Em seguida, dirigindo-se a todos os presentes, acrescentou: "A Democracia na Venezuela não pode ser medida pelos barris de petróleo extraídos de nossas fontes naturais. Terá que se impor pela conscientização pacífica do nosso povo. Ou a Democracia acabará quando se esgotar o petróleo".
Em março de 1989, após o restabelecimento do regime democrático em nosso País, voltei a me encontrar com o Dr. Rafael Caldera, em Caracas. Desta vez compareci na condição de advogado trabalhista, integrado à executiva da CLAJ – Comissão Latino Americana de Advogados Cristãos. Uma semana antes ocorreram os sangrentos conflitos e quebra-quebra que agitaram a capital, culminando em saques, violências e mortos, que se tornou conhecido como "caracazzo". Faziam parte da onda de protestos contra o presidente Andrés Perez, neoliberal que se afundara na corrupção e dava início ao movimento chavista de tomada violenta do Poder.
Pressenti que o líder democrata-cristão encontrava-se preocupado com o rumo dos acontecimentos, mas se conservava ativo e crente no triunfo do bom senso e da capacidade de resistência das Instituições democráticas.
Em 1993 Rafael Caldera foi eleito para o segundo mandato, mas já não teve meios e forças para recuperar a Nação venezuelana, a esta altura já contaminada por forte onda populista-demagógica.
Por ironia do destino, foi sucedido pelo imprevisível e autoritário Coronel Hugo Chaves, que viria para calar a imprensa, perseguir os opositores, armar o País, e almeja tornar-se vitalício no exercício da presidência.
Rafael Caldera morreu às vésperas do Natal. O petróleo ainda não acabou, mas a Democracia venezuelana agoniza sob a ditadura de Chaves.
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*Advogado trabalhista e escritor
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