Migalhas de Peso

A lei de imprensa no STF

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (art.102, III, § 1º CF c/c lei 9882/92), julgada, pelo STF, no final do ano passado e que retirou a lei de imprensa (Lei 5250/67) do cenário jurídico do País, tornou-se o mote obrigatório em todo e qualquer debate que se queira promover sobre o tema informação.

11/1/2010


A lei de imprensa no STF

Lourival J. Santos*

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (art.102, III, § 1º CF - clique aqui c/c lei 9.882/92 - clique aqui), julgada, pelo STF, no final do ano passado e que retirou a lei de imprensa (Lei 5.250/67 - clique aqui) do cenário jurídico do País, tornou-se o mote obrigatório em todo e qualquer debate que se queira promover sobre o tema informação.

É bom salientar que na esteira desse procedimento constitucional a sociedade jurídica – e mesmo parte da política - se mobilizou e o tema, ao que consta, jamais foi tão discutido, por tantos, e em tamanha profusão.

Como o entusiasmo quase sempre resvala o exagero, os defeitos da velha lei ganharam projeção geométrica, a ponto de ser transformada, do dia para a noite, por alguns, no celeiro dos mais ignominiosos ranços autoritários, impeditivos do pleno exercício do direito fundamental da pessoa de, livremente, manifestar o seu pensamento e de expressar suas opiniões dentro de uma sociedade livre, o que serviu de justificativa para o seu imediato banimento do cenário jurídico do País.

Confesso que questionei esta posição e, mesmo, o cabimento da argüição de descumprimento, por entender exagerado pensar que a sociedade brasileira estaria exposta, pela lei de imprensa, ao risco de lesão irreparável ao preceito constitucional fundamental compreendido na dicção do artigo 1º da lei 9.882/99. Até porque, como frisam Nelson Nery Junior e Rosa M. de Andrade Nery1, somente "os preceitos que têm magnitude máxima na ordem constitucional é que se caracterizam como fundamentais para os efeitos previstos no art. 102, § 1º da CF".

Ainda que não primasse pela perfeição, tampouco proviesse de um regime político de liberdade, a lei de imprensa, após ter sido, como o foi, depurada pela CF/88, a qual não recepcionou qualquer ranço autoritário do texto ordinário, por absoluta incompatibilidade com o modelo democrático ditado pela Carta e, após ter sido submetida à orientação jurisprudencial, na parte em que não foi enjeitada pelo Texto Supremo, não mais poderia, segundo meu despretensioso entendimento, ser considerada motivo de grave lesão a preceitos de relevância dentro do conjunto normativo constitucional ou causa de eventual desequilíbrio aos interesses sociais, a ponto de justificar qualquer ação constitucional urgente.

Como pondera a ilustre civilista Maria Helena Diniz, está "ínsita no sistema a regra de que a nova Carta não repudia as normas anteriores com ela compatíveis."2

Cheguei mesmo a pensar que a melhor solução teria sido a de manter a velha lei em vigor até que no Congresso se buscasse a edição de uma norma adequada que, oportunamente e com vantagem, substituísse o antigo texto.

Julgamento da Arguição

A Argüição foi acolhida, concedida a liminar pleiteada, para suspender a aplicação de certos artigos da lei de imprensa e, finalmente, sob alentadas discussões no Supremo, ricas em conteúdo, julgada procedente, com a decisão de que a lei de informação, por descumprir preceito superior, era incompatível com a norma constitucional e, portanto, inconstitucional.

A decisão, cujo relator foi o ilustre Ministro Ayres Brito, contou com votos parcialmente contrários dos Ministros: Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, ambos com linhas de argumentação coincidentes; do Presidente da Corte, Ministro Gilmar Mendes, também parcialmente vencido e do Ministro Marco Aurélio Mello, vencido integralmente, uma vez ter votado pela improcedência da Argüição.

O culto relator, em seu voto, declarou-se convencido da impossibilidade jurídica de se "normatizar" ou "relativizar" o que foi constitucionalmente: "concebido por modo absoluto como condição de garantia de sobre-eficácia do querer normativo da Constituição em tema tão cultural e politicamente sensível como é a liberdade de imprensa".

Enfatizou que: "nenhuma lei pode ir além do que já foi constitucionalmente qualificado como livre e pleno, a idéia mesma de uma lei de imprensa em nosso País soaria como inescondível tentativa de embaraçar, restringir, dificultar, represar, inibir aquilo que a nossa Lei das Leis circundou com o mais luminoso halo da liberdade em plenitude".

Justiça seja feita, pode-se até discutir a latitude dos efeitos do julgamento, porém jamais alhear-se do fato de que desde Rui Barbosa e seus célebres escritos e discursos em defesa da imprensa livre, não se tinha, de parte de nenhum dos poderes constituídos, como agora do Judiciário, pela voz da Suprema Corte, um tão vibrante testemunho em louvor do valor social de maior grandeza dentro da democracia, que é o representado pela livre manifestação do pensamento e das idéias, sem a possibilidade de cerceio.

Apropriado aqui celebrar, o grande tribuno Rui Barbosa, numa de suas indeléveis orações sobre o tema: "de todas as liberdades é a da imprensa a mais necessária e mais conspícua: sobranceia e reina entre as demais. Cabe-lhe, por sua natureza, a dignidade inestimável de representar todas as outras".3

Haverá necessidade de uma nova lei de imprensa?

Defendem alguns que sim, por entenderem que o direito comum não seja capaz de regrar a matéria com a necessária eficácia, em razão de carecer de dispositivos adequados à regulação de certos preceitos disciplinados pela antiga lei.

Exemplo sempre citado é o pedido de resposta (art. 29 e segs. da lei 5.250/67), o qual, muito embora esteja previsto, expressamente, na Constituição (art.5º, V, CF), não encontra, no ordenamento, regras adjetivas a disciplinar o seu procedimento.

Outros receiam que nas reparações por dano, a regulação da matéria pelo Código Civil (clique aqui) possa conduzir à interpretação de que os casos específicos passem a ser compreendidos dentro do contexto da responsabilidade objetiva ou da livre avaliação do risco, prevista no § único do art. 927 do CC: "Haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano, implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem".

No terreno penal, temem que a legislação comum seja insuficiente para encampar as especificidades que caracterizam os delitos, fato que, de per si, justificaria a edição de norma especial. Citam, entre outros pontos, o artigo 27 e incisos da lei de imprensa, que afastava, do âmbito das manifestações abusivas, as críticas jornalísticas realizadas em função do interesse público, entre outras razões de não-abuso, taxativamente nele relacionadas. Por conseguinte, a desconstituição de tal previsão seria prejudicial.

Reflexão sobre as questões apontadas

Pedido de resposta. Procedimento sumário, cujo objetivo era o de fornecer, a quem se julgasse ofendido ou acusado por matéria jornalística, um mecanismo, rápido e objetivo, para a obtenção de resposta ou retificação do que fora divulgado e que, eventualmente, pudesse repor os fatos aos seus devidos lugares, sem a necessidade da adoção de medidas mais drásticas.

Estando previsto na CF (Art. 5°, inciso V), que inclusive lhe impõe parâmetros quanto à proporcionalidade, não há dúvida sobre a sua possibilidade jurídica, mesmo após o banimento da antiga lei. Pela ausência de texto legal específico, a jurisprudência, certamente, será a fonte adequada para o estabelecimento dos limites à obtenção judicial da resposta, assim como ao pedido de explicações, hoje somente previsto no art. 144 do CP.

Sobre a natureza jurídica do pedido de resposta, alguns entendem que ele melhor se adequaria, ao contrário do que previa a antiga lei, como procedimento civil. Penso que não, por se tratar de mecanismo jurídico voltado à busca de esclarecimento público da intenção do agente sobre a matéria jornalística. O objetivo do pedido é a procura sumária de eventual esclarecimento sobre se as erronias ou as acusações constantes da publicação, teriam ou não o caráter intencional. Isto afasta a possibilidade da medida ser civil, quando se sabe que a intenção não é atributo da culpa.

Responsabilidade Civil Objetiva. Os defensores desta tese incluem a imprensa no rol das atividades definidas como de risco e, portanto, sujeita às regras da responsabilidade derivada do chamado "risco exagerado" (§ único do art. 927, CC), que se materializa independentemente da culpabilidade do agente e da existência de prova sobre o nexo causal entre a infração cometida e o dano sofrido (art. 186 do CC), tese da qual me permito discordar.

A imputação independente de culpa (§ único do art. 927 do CC) constitui-se exceção dentro da regra geral da responsabilidade subjetiva adotada pela lei civil (art. 186, CC), tanto que sua existência jurídica está condicionada a previsão em lei específica, ou em contrato, em casos extraordinários.

A esse respeito o ilustre professor Humberto Theodoro Júnior destaca, com precisão, que "a teoria do risco, se adotada como cláusula geral, levaria a extremos de injustiça e a situações completamente indesejadas, porque nocivas ao equilíbrio das relações jurídicas e à paz social".4

É evidente a impossibilidade jurídica de se definir como atividade de risco, e sobre ela aplicar-se o conceito da responsabilidade objetiva, o exercício da liberdade de expressão do pensamento e da informação, que se constitui direito fundamental consagrado em cláusula pétrea pela Constituição Federal e que representa condição basilar do perfeito desempenho da cidadania no estado democrático de direito.

A atividade de imprensa, em realidade, advém da conjugação de dois direitos pétreos, o de informar e o de ser informado, binômio assentado como a viga mestra (Art. 5º, IX e XIV, CF) da democracia.

Considerar como atividade de risco o exercício desses dois direitos, basilares do modelo político adotado pelo Estado, é o mesmo que negar a sua integralidade, à qual, como se expressou o Ministro Ayres Brito, em seu voto: "... a Lei das Leis circundou com o mais luminoso halo da liberdade em plenitude".

O V. Acórdão aqui citado nesse sentido assevera que: "... antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras."

Legislação penal. Reformatio in Pejus. Preconiza-se, e já há discussão judicial sobre o assunto5, conflitos, cuja harmonização ficará a cargo da jurisprudência, no terreno da prescrição punitiva, envolvendo o princípio da ultra-atividade da lei penal mais benéfica ao réu, em razão da diferença de tratamento do Código Penal ora aplicável (art. 109), em área anteriormente regulada pela lei de informação (art. 41).

Outro ponto, como já foi dito, é o do artigo 27 da lei anulada, que relacionava os casos que não constituíam abuso no exercício da crítica jornalística.

Ainda que num primeiro momento a perda do precitado artigo possa parecer um fator desfavorável à liberdade de crítica jornalística, há de se concluir que não tenha tal significância.

De um lado a Constituição prevê, como direito fundamental, a liberdade de informação sem qualquer censura ou barreira e, de outro, o direito do indivíduo de ter livre acesso à informação. Destarte, o interesse público que desperta a notícia e a crítica jornalísticas, está mais do que consagrado no Texto Supremo não necessitando de legislação especial regulatória.

O ilustre Ministro Celso de Mello, no seu voto, destacou, com precisão, que: "o direito de crítica encontra suporte legitimador no pluralismo político, que representa um dos fundamentos em que se apóia, o próprio estado de direito" (art. 1°, inciso V, CF).

Ademais, os incisos do artigo 27 da antiga lei eram redigidos como numerus clausus, o que configurava fator restritivo em relação ao todo não expressamente articulado. Como a Constituição atual, no terreno da comunicação, consagra a informação como liberdade plena, irrestrita, (art.220, § 1º), isto está a reforçar que não houve perda na revogação de um texto cuja finalidade havia sido mais amplamente cuidado pela Carta (art. 2º, Decreto-Lei 4.657/42 - clique aqui).

Assinale-se, também, que o inciso I do referido art. 27 encontra-se reproduzido no inciso II do art. 142 do CP, em pleno vigor.

Aspectos da lei de imprensa já regulados pelo direito comum

Muito antes mesmo do julgamento da Argüição, o prazo decadencial para as ações por danos moral e material, que era originalmente o trimestral previsto pela lei de imprensa (art. 56), passara a ser o trienal previsto pela lei civil (art. 206 § 3º, V, CC).

Os prazos processuais civis seguiram naturalmente as regras do CPC (art. 297);

Os valores indenizatórios, que eram escalonados, segundo a lei de imprensa (artigos 51, incisos de I a IV e 52, caput), de há muito passaram a ser arbitrados judicialmente. Esta matéria foi pacificada pela Súmula 281 do STJ:

"A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na lei de imprensa".

Ao STJ hoje é dado o controle do quantum arbitrado a título de dano moral, a fim de se evitar abusos ou exageros na sua quantificação (STJ, 4ª T., no AI 244.708/99).

A fixação deverá ser realizada com moderação, equidade e equilíbrio, de modo a resultar em aplicação criteriosa, justa e, sobretudo, evitar o enriquecimento sem causa (art.884, CC).

Considerações finais

Considerando o fato de que o Supremo decidiu ser descabida a edição de uma lei para a regulação do direito de imprensa; que grande parte das previsões da lei anulada já está contemplada pelo direito comum e pacificada pela jurisprudência e, mais, que qualquer projeto de nova lei que hoje seja apresentado, terá um prazo de tramitação indefinido dentro Congresso, será lógica a conclusão de que é desaconselhável despender esforços para a votação de uma nova lei.

Para ilustrar, nos últimos 20 (vinte) anos foi apresentada mais de uma centena de projetos de lei sobre a liberdade de imprensa no Brasil. Qualquer projeto, mesmo em caráter de urgência, tramitaria, no mínimo, pelos próximos 5 (cinco) anos, quando a matéria, estará completa e perfeitamente pacificada dentro do contexto do ordenamento jurídico do País.

________________

1 Constituição Federal Comentada, 2ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, p.952

2 Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 11ª edição, Ed. Saraiva, p. 70

3 Obras Seletas, Tomo VII, p. 158 (Dicionário de Conceitos e Pensamentos, Ed. Edart, p.193, Luiz Rezende de Andrade Ribeiro)

4 Responsabilidade Civil Objetiva Derivada de Execução de Medida Cautelar ou de Antecipação de Tutela

5 Processos: nº 583.11.2006.001773-3 – 1ª Vara Criminal de Pinheiros; nº 583.02.2006.002064-6 – 1ª Vara Criminal de Santo Amaro

_________________



*Advogado do escritório Lourival J. Santos - Advogados










___________________

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

O SCR - Sistema de Informações de Crédito e a negativação: Diferenciações fundamentais e repercussões no âmbito judicial

20/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024