Doutor, o que está escrito aqui?
Caro leitor: quantas vezes você ensaiou pedir ao médico que lhe traduzisse aqueles hieróglifos e calou-se, intimidado por sua postura olímpica? Muitas, certamente, mas a irritação dura pouco porque sabem que qualquer balconista da farmácia tira literalmente de letra os nomes dos remédios prescritos, por mais ilegíveis que estejam para os mortais comuns
quinta-feira, 26 de junho de 2008
Atualizado às 07:47
Doutor, o que está escrito aqui?
J. C. Ismael*
Caro leitor: quantas vezes você ensaiou pedir ao médico que lhe traduzisse aqueles hieróglifos e calou-se, intimidado por sua postura olímpica? Muitas, certamente, mas a irritação dura pouco porque sabem que qualquer balconista da farmácia tira literalmente de letra os nomes dos remédios prescritos, por mais ilegíveis que estejam para os mortais comuns. E não dá outra: ele passa os olhos pela receita e, sem hesitar, deposita mecanicamente os remédios na cestinha. Você vai ao caixa, paga a conta e o resto depende somente da eficácia ou não da prescrição, certo? Errado: se o seu Champollion perdeu o hábito de exercitar a dúvida ao ler a receita, essa autoconfiança pode ser desastrosa. E aí?
Aí... Vamos pensar em algumas hipóteses bastante prováveis que podem ocorrer se a prescrição de medicamentos com nomes parecidos não for escrita de modo legível. Você sofre de bronquite e ela não cede porque vem tomando o antibacteriano Ampicilina no lugar do receitado broncodilatador Aminofilina. Uma úlcera mastiga-lhe o estômago, enquanto seus rins funcionam freneticamente: é que no lugar do Losec prescrito, lhe venderam o diurético Lasix. Você continua se coçando até sangrar porque vem se medicando com o antibiótico Clavulin, em vez do antialérgico Claritin garatujado na receita. Ou ainda, suas dores musculares persistem porque pretende curá-las com o estimulante de apetite Profol, no lugar de Proflam, o antiinflamatório receitado.
O que pode lhe acontecer, paciente-leitor, acontece com incontáveis consumidores, incluindo provavelmente seus amigos e familiares. O balconista é cúmplice desses equívocos porque o "orgulho" o impede de, na dúvida, simplesmente pedir uma receita cuja legibilidade se estenda não apenas ao nome do remédio, mas à dosagem, ao modo de usar e à duração da prescrição. Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, feita recentemente nos prontuários de hospitais, mostrou que é muito comum os próprios médicos não entenderem a letra de colegas. O intrigante é que, mesmo sabendo-se portadores da síndrome letra - de médico, por que os doutores não se preocupam com o fato inconteste de que se arriscam a causar graves danos à saúde da população? Vou tentar responder.
A medicina começou a ganhar o sobrenome de científica há cerca de dois séculos, mas da sua longínqua pré-história os registros que chegaram até nós datam do reinado de Assurbanipal, o último dos grandes reis da Assíria, região situada ao norte do rio Tigre. Durante o seu reinado (669-633? a.C.), explorou extensos sítios arqueológicos datados de cinco a seis mil anos. Esses locais guardavam um tesouro: grande quantidade de tabletes de argila gravados com escrita cuneiforme, graças aos quais obtivemos preciosas informações da cultura e da história de diversos povos, entre eles, os da Babilônia e da Suméria.
Os poucos tabletes que registravam as práticas médicas comprovaram o que se suspeitava: a doença, vista como uma força aterradora e desconhecida, só seria derrotada quem (o antecedente longínquo do xamã) se declarava portador de enorme força espiritual, e com isso reprimia o "paciente", incapaz de confrontar a autoridade daquela mistura assustadora de adivinho, feiticeiro e sacerdote.
Se o leitor acha que tenho o atrevimento de insinuar que a vertente totalitária do xamanismo, surgido provavelmente na Sibéria há cerca de dois mil anos, subsiste não apenas entre povos primitivos, mas também em muitos consultórios médicos, acertou! Ressalva: a comparação nem de longe pretende ser ofensiva, pois é injusto julgar a capacidade do médico unicamente por sua impenetrável grafia. No entanto, ela quase sempre contém uma mensagem cifrada de onipotência que contribui para tornar a relação com o paciente mais imperial do que normalmente é. E, como raramente existe inocente sem culpa, concordemos, abrindo o espectro do nosso assunto, que a timidez do paciente (do latim patior, aquele que sofre) complementa a ausência da inspiração humanista dos cursos de medicina.
Contribuímos para nutrir tal estereótipo simplesmente porque nos acostumamos com a postura do temor reverencial, quando carecemos do oposto: conforto e atenção. Ou, nas sábias palavras do médico e professor paulista Protásio L. da Luz, autor de Nem só de ciência se faz a cura: "A falta de humanidade do médico cria uma distância muito grande entre ele e o paciente, impede a comunicação e deixa o enfermo numa situação de inferioridade que simplesmente agrava sua posição já desvantajosa causada pela própria doença".
A cultura de receitas ilegíveis não é exclusiva de países atrasados. Pesquisa recente mostra que nos Estados Unidos dois terços delas podem levar o consumidor a erros, muitos gravíssimos, incluídas as que são aviadas com o ponto decimal da dosagem no lugar errado. A Justiça de lá (e a dos países nórdicos) é muito dura com esse tipo de displicência, mesmo que não afete a saúde do consumidor. No Brasil, que penalidade ele espera para o médico cuja caligrafia o levou a se tratar com medicamentos errados?
O então presidente Getúlio Vargas já se preocupava com o assunto: em 11.1.1932 promulgou o Decreto 20.931 (clique aqui) que, no artigo 15, letra "b" determina:
"São deveres do médico: escrever as receitas por extenso, legivelmente, em vernáculo, nelas indicando o uso interno e externo dos medicamentos..."
Quarenta e um anos depois, a Lei Federal 5991 (clique aqui) estipulou no artigo 35, letra "a", que a receita só pode ser aviada se for escrita de modo legível e por extenso, entre outras exigências. O facultativo, sabendo que essa lei caiu na vala comum das que não pegaram não se preocupa em ter a receita barrada na farmácia, cujo dono, por sua vez, nem pensa em deixar de faturar por causa de uma leizinha qualquer. E diz o artigo 44, § 2º da mesma lei:
"Na hipótese de ser apurada infração ao disposto nesta Lei e demais normas pertinentes, os responsáveis ficarão sujeitos às sanções previstas na legislação penal e administrativa, sem prejuízo da ação disciplinar decorrente do regime jurídico a que estejam submetidos"
Agora, complemento com o Código de Ética (Resolução do Conselho Federal de Medicina 1246/88 publicada no D.O.U. em 26.1.1988). Trata-se de um código moderno e detalhista; o problema, como sempre, é aplicá-lo. O ceticismo de se fazer justiça quando colegas "julgam" seus pares (veja-se a hipocrisia endêmica dos políticos) estende-se à classe médica, onde o espírito de corpo viceja com especial desenvoltura. O artigo 39, por exemplo, proíbe o profissional de "receitar ou atestar de forma secreta ou ilegível". Agora, se ele for desobediente sujeita-se "às penas disciplinares previstas em lei" (Preâmbulo, item VI). Diante dessa "ameaça", perdão pelo trocadilho, rir é o melhor remédio.
Se me acompanhou até aqui, caro leitor, é provável que se sinta desamparado, pois sendo altamente duvidosa a punição até em caso de imperícia criminosa, quem imagina o desmoralizado e paquidérmico Poder Judiciário ou o CRM fazendo uma simples advertência ao médico-rabiscador? Por isso, só lhe resta "enfrentá-lo", exigindo que escreva de forma clara, ou sugerir que passe a usar um processador de texto. Fica o aviso: se continuar inibido assuma o risco de sair correndo de uma reunião porque tomou o laxante Dulcolax no lugar do analgésico Dorilax receitado para mitigar a sua dor nas costas.
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*Advogado e Jornalista
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