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A inconstitucionalidade do uso de meios para desqualificar a mulher vítima de violências nos processos

STF proíbe questionar vítimas sobre comportamento em crimes contra a mulher. Decisão garante respeito e dignidade nos processos judiciais.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Atualizado às 08:48

O STF confirmou à unanimidade, no julgamento da ADPF 1.107, no dia 23/5, aquilo que deveria ser óbvio em toda análise de processos: A culpa pelo crime nunca é da mulher vítima.

A ADPF proposta pela Procuradoria-Geral da República se prestava a analisar a prática de perguntas e insinuações no processo sobre o comportamento e o modo de vida da vítima nos casos de violências sexuais como forma de justificar que o cometimento dos delitos se dão em virtude do comportamento das mulheres e que elas seriam as causadoras dos crimes aos quais  foram submetidas. A PGR sustentou que essas práticas são discriminatórias contra a mulher e que deveriam ser proibidas.

Ao julgar a ADPF, o STF fixou a seguinte tese: "É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de modo que é vedada eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou ao modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais".

Houve um alargamento da proibição de perguntas sobre o comportamento e a vida da mulher vítima para todos os crimes praticados contra as mulheres, e não apenas nos processos em que se apuram crimes sexuais.

Essa decisão do Supremo confirma algumas questões que vêm sendo debatidas há algum tempo:

  1. Não pode o processo ser um meio revitimizador da mulher;
  2. A responsabilidade pela prática do crime nunca é da mulher vítima;
  3. A tentativa de usar meios para desqualificar a vítima reforça discriminações e estereótipos de gênero, normalizando situações que não devem ser toleráveis, como as violências sexuais e todas as outras formas de violências que são praticadas contra as mulheres.

A recente decisão da ADPF 1.107 vem no mesmo sentido da decisão do STF no bojo da ADPF 779 que confirmou não ser possível o uso da tese da "legítima defesa da honra", tornando nulos os atos praticados e o julgamento dos processos em que for feito o uso. 

Para além da atuação do Poder Judiciário, também foi necessária atuação legislativa, por meio da lei 14.245/22 (lei Mariana Ferrer), criada após a divulgação de vídeos da audiência na qual a vítima Mariana Ferrer foi submetida a humilhações e tratamento vexatório, sendo extremamente revitimizada e indagada sobre o seu modo de vida, como tentativa de colocar sobre ela a responsabilidade do crime. Essa lei estabelece, entre outras coisas, que é dever de todas as partes do processo devem garantir e zelar pela integridade física e psicológica da vítima e pela dignidade da mesma. 

Poderíamos pensar não ser necessária uma lei para dizer que a vítima deve ser respeitada, mas infelizmente quando se tratam de investigações e processos judiciais envolvendo violências contra mulheres, em especial violências sexuais, rotineiros são os casos em que são utilizados argumentos para dizer que a mulher é a causadora do seu próprio mal. 

Não vale tudo no processo, especialmente quando se trata de crimes contra as mulheres, havendo muita subnotificação também em razão de mulheres terem medo de serem expostas e humilhadas durante a investigação e o processo judicial. Em atuações desse tipo, é essencial que estejamos com a atenção redobrada para que perguntas e insinuações não se tornem mais uma forma de violência contra as mulheres.

Não existe neutralidade no Direito e a todo tempo é preciso observar a aplicação da legislação com lentes de gênero, de raça e das desigualdades impostas a muitos grupos. Por isso é fundamental que a advocacia, em especial aquela dos direitos das mulheres, se atente à aplicação do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do CNJ, fazendo valer o respeito e a dignidade das mulheres nas investigações e processos judiciais.

Renata Bravo

Renata Bravo

Advogada criminalista e de direitos das mulheres. Sócia da Bravo Advocacia. Consultora de direitos e políticas públicas para mulheres, igualdade, não violências e cidadania.

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