Saneamento: em defesa do que é básico
Qualificar o serviço de saneamento básico à população não é luxo algum, pelo contrário: é um termômetro de progresso social, econômico e ambiental, e credencia o país a criar uma nova realidade, mais digna e menos desigual, para as famílias brasileiras.
terça-feira, 4 de julho de 2023
Atualizado às 14:39
O jurista francês George Ripert alertou que "quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito". Uma advertência cunhada há um século, mas que é o mais atual retrato do saneamento básico do país. Hoje, quase 100 milhões de brasileiros vivem sem acesso a rede de esgoto e cerca de 35 milhões sem acesso a água tratada, um lamentável indicador de exclusão. O fato de quase metade do Brasil viver num abismo onde o direito fundamental ao saneamento básico é precário ou não existe, traduz o tamanho do desafio que temos como sociedade, de universalizar serviços que como o próprio nome já diz, são básicos. Ou deveriam ser, por força e a garantia da lei.
A partir do momento em que a sociedade decide debater este tema, podemos pensar numa vida melhor. Aí entra o papel do Judiciário, que, ao julgar conflitos, cria o ambiente para o avanço desta pauta e consequente mudança dessa realidade, contribuindo para o fim de políticas ultrapassadas que custam caro para a parcela mais vulnerável da população. Esse, aliás, é o avanço civilizatório que se deve perseguir: quando não deixamos ninguém para trás, compreendendo a responsabilidade jurídica na defesa do bem coletivo. E cabe aqui perguntar: a quem interessaria manter privilégios, proteger interesses particulares e manter a trava que inviabiliza investimentos e desenvolvimento?
As ameaças à universalização dos serviços de água e esgoto no Rio Grande do Sul, Estado que atravessa um longo processo de judicialização da desestatização da Corsan, vêm de todos os lados. Inclusive de forças de pretendem sustentar a enorme gama de litígios judiciais, hoje diretamente alimentada, na Corsan, por um passivo judicial com mais de 15 mil ações em trâmite, das quais cerca de 7 mil são trabalhistas e, destas, mais de 2 mil são de autoria de funcionários da própria estatal. Somente em pagamentos de honorários e indenizações trabalhistas, são gastos ao ano aproximadamente R$ 200 milhões, uma cifra considerável.
Enquanto esses longos litígios acontecem no poder judiciário, as demandas da realidade do setor são bastante distintas. De acordo com dados recentes do Instituto Trata Brasil e do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento do governo federal, investe-se no Brasil uma média de R$ 82,71 anualmente por habitante no setor, todavia, no Estado gaúcho essa quantia é ainda menor, de apenas R$ 58,52, ou seja, 30% a menos. Para se ter uma referência, a cidade de Piracicaba (SP), com serviços universalizados em água e esgoto, investiu em 2022 R$ 323 por habitante. O resultado é inevitável: hoje, apenas 34,1% da população gaúcha tem acesso à coleta de esgoto, bem abaixo da magra média Brasil (55,8%), e somente 25,3% do esgoto gerado é tratado no RS, quando a já péssima média Brasil é o dobro (51,2%).
Diante de dados e fatos, não há salvaguarda jurídica que justifique entraves judiciais para manter um serviço precário com déficit acumulado. E foi o que aconteceu essa semana, com o referendo de um acordo trabalhista histórico intermediado pelo TRT-4, caindo mais um obstáculo para a consecução da privatização - e agora restando, pendente, apenas o aval final do Tribunal de Contas do Estado que deve agir rapidamente cumprindo com suas atribuições constitucionais, destravando investimentos da ordem de R$ 15 bilhões em saneamento no Estado e garantindo um aporte de R$ 4,15 bi para programas, políticas e ações de múltiplas áreas do governo do Estado.
Até aqui, o principal interessado, o cidadão, foi quem verdadeiramente sofreu os prejuízos da morosidade da transferência da Corsan à iniciativa privada. Com um exemplo simples, o estrago fica evidente: cada dia de atraso no processo de desestatização representa R$ 1,5 milhão a menos de investimentos aos municípios e a manutenção da ausência de atendimento para cerca de 1.165 gaúchos, como consequência da incapacidade de a estatal executar os investimentos necessários para atender às metas do Marco Legal do Saneamento. Ou seja, desestatizar foi uma decisão totalmente acertada do Governo do Estado, e mais ainda se olharmos para os impactos futuros previstos em matéria de empregos gerados e diversos benefícios socioeconômicos em todo território gaúcho.
Qualificar o serviço de saneamento básico à população não é luxo algum, pelo contrário: é um termômetro de progresso social, econômico e ambiental, e credencia o país a criar uma nova realidade, mais digna e menos desigual, para as famílias brasileiras. Países que investiram na ampliação do acesso a esse serviço estão à frente em benefícios transversais que vão do desenvolvimento escolar ao suporte para aumento do turismo, da saúde pública à proteção ambiental, do desenvolvimento sustentável das cidades à qualidade de vida. Enquanto a morosidade da Justiça seguir errando na garantia do que é básico, jamais alcançaremos o mínimo para crescermos como país.