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Dano continuado e hospedagem online de conteúdos: uma discussão sobre imprescritibilidade

A aplicação do conceito de dano continuado em demandas indenizatórias que debatem a licitude de conteúdo hospedado na internet tem criado uma situação de imprescritibilidade. Mas será que este entendimento jurisprudencial está alicerçado no entendimento da Corte Superior?

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Atualizado às 12:06

O uso da internet por periódicos potencializou o acesso à informação, permitindo uma consulta facilitada e rápida a todo o conteúdo jornalístico produzido. A medida robustece - e dá maior praticidade - à uma obrigação prevista no art. 70 da lei 5.250/67, que determina que jornais enviem, no prazo de 5 dias, exemplares de suas edições à Biblioteca Nacional e à oficial dos Estados, com objetivo de preservação histórica. O próprio Supremo Tribunal federal, neste sentido, sublinhou a importância da aliança entre internet e conservação de acervo jornalístico:

"Daqui já se vai desprendendo a intelecção do quanto a imprensa livre contribui para a concretização dos mais excelsos princípios constitucionais. A começar pelos mencionados princípios da 'soberania' e da 'cidadania', entendida a soberania como exclusiva qualidade do eleitor-soberano, e a cidadania como apanágio do cidadão, claro, mas do cidadão no velho e sempre atual sentido grego: aquele habitante da cidade que se interessa por tudo que é de todos; isto é, cidadania como o direito de conhecer e acompanhar de perto as coisas do Poder, os assuntos da Pólis. Organicamente. Militantemente. Saltando aos olhos que tais direitos serão tanto melhor exercidos quanto mais denso e atualizado for o acervo de informações que se possa obter por conduto da imprensa (contribuição que a internet em muito robustece, faça-se o registro)."1

Ocorre, no entanto, que a migração do acervo de veículos de comunicação para os portais online, festejada na ADPF 130, esvaziou, sob o entendimento atual de inúmeros tribunais da federação, a regra prescricional trienal de responsabilização extracontratual prevista no art. 206, §3º, V do Código Civil.

Isto porque, transportado pela figura do dano continuado, o Poder Judiciário tornou-se palco de discussões versando sobre eventual dever indenizatório da imprensa por reportagens elaboradas décadas atrás, mas hospedadas em acervos online. Não é incomum localizar ações judiciais propostas recentemente, mas debruçadas sobre a ilicitude, ou não, do exercício da liberdade de expressão por conteúdos bastante antigos.

Mas será que a compreensão formulada pelos Tribunais da Federação encontra abrigo naquilo que a Corte Superior desenhou como "dano continuado"? E mais, será que o entendimento se encontra esteado nos valores pretendidos pelo ordenamento jurídico? A resposta exige uma reflexão apurada.

O dano continuado, sob o entendimento do STJ, é aquele que se protrai no tempo, em que há um ato reiteradamente praticado pelo ofensor capaz de lesar um bem jurídico da vítima. Nesta circunstância, a prescrição legal correria tão somente após a data do último ato praticado.

A discussão havida no AgREsp 661.692/RJ, de relatoria do ministro Moura Ribeiro, exemplifica o conceito. Naquele feito, observou-se que o prazo prescricional da demandante, que acusava à TV Globo de plágio pela exibição de novela "Joia Rara", iniciaria a partir da data de exibição do último capítulo da telenovela. Ou seja, após o último ato de violação cometido pela emissora carioca.

A mera hospedagem de conteúdo jornalístico em sites, porém, difere-se sobremaneira do caso acima retratado. É questionável, nestas situações, a existência de um efetivo ato cometido pelo jornal, que não o simples arquivamento da notícia - medida que, como citado, também ocorre em vias físicas, por dicção da lei, na Biblioteca Nacional.  Aplicar a noção de dano continuado nestas circunstâncias torna imprescritível o direito de reclamar uma indenização por violação à imagem, honra, ou até mesmo direitos autorais2.

Não se ignora, certamente, a complexa colisão de direitos envolvida em demandas desta natureza. Por um lado, materiais abusivos elaborados anos atrás, mas indexados em buscadores, podem causar prejuízos severos - e atuais - ao exposto indevidamente. Uma simples consulta do nome do ofendido no Google, por exemplo, pode representar uma nova violação a um direito da personalidade. Por outro, cabe indagar se a imprescritibilidade assumida não desestimula a construção de um acerco histórico online pelos jornais, assombrados por um possível passivo judicial infindo, e pela própria dificuldade probatória sobre fatos ocorridos há muitos anos (consultar a fonte e evidenciar a veracidade de um conteúdo elaborado nos idos de 2000 é muito mais difícil que comprovar a licitude de um material atual).

Há, assim, uma necessidade premente de temperar a aplicação de um dano continuado com a prescritibilidade das ações reparatórias.

Sabe-se, de antemão, que a "imprescritibilidade é exceção dentro de um sistema voltado à estabilização das relações jurídicas, de modo que o silêncio da lei não deve conduzir, de regra, à conclusão de que determinado direito seja imprescritível ou insuscetível de decadência"3. Por outro lado, reconhece-se a imprescritibilidade dos direitos da personalidade.

Assim, sob a complexidade deste conflito, parece que a melhor solução foi àquela dada no RESP 1862910/RJ, que reconheceu, em um litígio envolvendo violação de direitos autorais, que "direitos morais do autor são, como todo direito de personalidade, imprescritíveis, e, portanto, não se extinguem pelo não uso e pelo decurso do tempo. O autor pode, a qualquer momento, pretender a execução específica das obrigações de fazer e não fazer oponíveis "erga omnes", decorrentes dos direitos morais elencados no art. 24 da Lei n. 9.610 /98. Todavia, a pretensão de compensação pelos danos morais, ainda que oriundos de infração de direito moral do autor, configura reparação civil e, como tal, está sujeita ao prazo de prescrição de três anos, previsto no art. 206 , § 3º , V , do CC."4

Noutras palavras, o reconhecimento da abusividade de um conteúdo antigo (datado de mais de três anos) mas hospedado em portais online, acessíveis portanto pela internet, podem gerar comandos obrigacionais.5 (correção, complementação ou exclusão), mas não motivar o dever de uma prestação pecuniária pelo ofensor. Isto porque o art. 12 do Código Civil não torna imprescritível a pretensão indenizatória fundada em violação de direitos da personalidade, apenas assegura o direito permanente de fazer cessar a lesão em curso por meio das ações de abstenção6. Ainda, a ideia de simples arquivo histórico online não justifica, sugere-se, a aplicação da ideia de um dano continuado pelos Tribunais, na medida em que ausente um efetivo ato cometido reiteradamente pelo suposto ofensor, tendo em vista, sobretudo, que a imprescritibilidade deve ser exceção em nosso ordenamento, com estrito sustentáculo na Constituição Federal.

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STF. ADPF 130. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. J. 06.04.2009.

2 "Incabível o reconhecimento da prescrição se os efeitos decorrentes da matéria jornalística foram continuados, uma vez que permaneceu acessível na internet." (TJMG. AC 10000204657696001. Rel. Des. Estevão Lucchesi. J. 08.10.2020).

3 STJ. AgInt no REsp 1886419/PB. Rel. Min. Gurgel de Faria. J. 08.03.2021.

4 STJ. REsp 1862910/RJ. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. J. 02.02.2021.

5 Neste mesmo s "sem embargo da precedência da liberdade de expressão e da necessidade de se manter vigilância constante para a fazer valer, o cotejo dessa liberdade com outros valores constitucionais deve sempre tender à harmonização, de modo a que se consagre o resguardo da intimidade do indivíduo sem se sacrificar a livre comunicação. Tanto quanto possível, portanto, deve-se priorizar: o complemento da informação, em vez de sua exclusão; a retificação de um dado, em vez de sua ocultação; o direito de resposta, em lugar da proibição ao posicionamento, o impulso ao desenvolvimento moral da sociedade, em substituição ao fomento às neblinas históricas ou sociais. Máxime em sistemas jurídicos com acanhada tradição democrática, essa ordem de precedência deve ser observada.".

6 STJ. AREsp 1666637 SP. Rel. Min. João Otávio de Noronha. DJ 14/04/2020.

Alex Mecabô

Alex Mecabô

Mestre em Direito Civil, pela UFPR. MBA em Business Law, pela FGV. Autor do livro "Direitos Humanos Fundamentais e a Antropologia de Emoções: a Prática de Revenge Porn". Advogado.

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