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Diferentes interpretações da Supremacia Constitucional na França e no Brasil

Quem sabe, não seja a percepção brasileira de supremacia constitucional que vem sendo distorcida ao longo dos últimos anos.

terça-feira, 12 de abril de 2022

Atualizado às 13:51

(Imagem: Arte Migalhas)

Tem-se muito solidificada no Brasil a noção de supremacia da norma constitucional, seguindo a estrutura escalonada da ordem jurídica proposta por Hans Kelsen em sua obra Teoria Pura do Direito, de 1999. Sendo a Constituição Federal a Lei Maior, é de responsabilidade do STF regular a conformidade de outras fontes de direito com as normas de valor supremo que integram o bloco de constitucionalidade.

Na França, que também possui sua Lei codificada, a conhecida pirâmide de Kelsen é adotada de forma extremamente similar ao Brasil. Chama atenção a diferença quando se debruça sobre o processo de incorporação de tratados internacionais, o que leva ao questionamento quanto ao peso da noção de supremacia constitucional para cada uma das jurisdições. A origem de tal comparação encontra-se no art. 54 da Constituição da França, que prevê que, caso o Conselho Constitucional1 verifique que um tratado internacional em análise de incorporação comporta cláusula contrária à Constituição, esta deve ser submetida ao procedimento de revisão constitucional para que a incorporação do tratado seja constitucionalmente possível.

Comparativamente à mesma situação no Brasil, de acordo com o art. 19  da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, o tratado em análise seria no máximo, e se houver possibilidade, incorporado parcialmente, apontando-se as cláusulas não aderidas, e não a Constituição passaria por uma revisão de suas normas para incorporá-lo. A partir de André de Carvalho Ramos, 2011, pontua-se que o Brasil não tem o hábito de estabelecer reserva. Remete-se também ao art. 102, b, da Constituição, que trata da função auferida ao STF de declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, por meio de ADI.

É inédito no ordenamento brasileiro o desenrolar de um processo de revisão constitucional que vise exclusivamente a ratificação e incorporação de um tratado internacional, como se prevê no ordenamento francês. O questionamento que surge é quanto ao que isso pode significar. Seriam apenas diferentes interpretações para uma mesma noção de supremacia constitucional ou pode-se pensar em uma distorção francesa do conceito de supremacia?

No Brasil, em decorrência da supremacia constitucional é que se pode questionar a constitucionalidade de outras leis e atos normativos por meio do controle de constitucionalidade. O princípio da interpretação conforme a Constituição rege o Direito brasileiro. Ressalta-se que segundo J. J Gomes Canotilho, 1993:

"a interpretação conforme a Constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a Constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela".

O governo francês investe bastante na publicação de artigos explicativos acerca dos mais variados conceitos e definições de sua estrutura e do funcionamento de seus órgãos. Assim como no Brasil, a constituição francesa é escrita, rígida e dirigente, e a verdade é que, apesar de poder parecer que o exposto acima faça com que a Constituição francesa não seja assim tão suprema, o conceito de rigidez pode bem ser questionado em ambos os ordenamentos.

Legisla-se muito no Brasil. Apenas ano passado foram mais de 750 proposições aprovadas, considerando projetos de Lei, medidas provisórias e emendas constitucionais. É claro que ao longo do tempo, existem disposições que necessitam de um diferente entendimento para acompanhar a evolução de uma sociedade mutável, mas é quase como se a Constituição estivesse se tornando um periódico. Isso sem adentrar o papel do Poder Judiciário, especificamente do Supremo que, cada vez mais, cria precedentes interpretativos através da jurisprudência e da edição de Súmulas Vinculantes a partir de noções, muitas vezes, arbitrárias.

Nota-se, ainda, a grande diferença de volume do corpo de normas das duas Constituições. A francesa possui apenas 89 artigos e, quando posta ao lado dos mais de 240 artigos que compõem a Constituição brasileira, é como se pudesse-se entender a maior necessidade dos franceses de modificar sua Constituição para que o país possa acompanhar o desenvolvimento mundial e ainda assim manter a higidez e a primazia de suas diretrizes constitucionais. 

A França está, desde 1958, em sua 5ª República, e desde então, sua Constituição passou por um total de 24 revisões. 64 anos, 24 revisões. A Constituição brasileira tem 30 anos a menos e uma quantidade desmesuradamente maior de modificações. Outro ponto a se destacar é a instrução do art. 89 da Constituição da França, que prevê que a revisão constitucional é definitiva após ser aprovada por referendo, caso o Presidente da República não escolha a via de submissão ao Parlamento convocado em Congresso.

É em face ao exposto que se percebe a impossibilidade da comparação do conceito de supremacia constitucional entre os dois ordenamentos. Não são dois lados de uma mesma moeda e as definições não podem ser feitas sem se debruçar sobre o estudo da realidade prática de cada país. A conclusão acerca da noção de supremacia não pode ser fixada olhando-se tão somente para o procedimento de incorporação de tratados internacionais, mesmo que possa parecer levar a algum posicionamento prévio. A propósito, aprofundando a análise, questiona-se se, quem sabe, não seja a percepção brasileira de supremacia constitucional que vem sendo distorcida ao longo dos últimos anos.

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1 Cabe pontuar que o rol de atuação do Conselho Constitucional francês, exceto pelo controle de constitucionalidade, em nada se aproxima ao do Supremo Tribunal Federal. O Conselho Constitucional não faz parte do Poder Judiciário, não é guardião da Constituição e atua mediante acionamento do Presidente da República, Primeiro Ministro, Presidente da Assembleia Nacional ou do Senado, ou então pelo conjunto de 60 senadores ou deputados.

Luiza Ling

Luiza Ling

Estudante de Direito na Universidade Federal do Paraná. Atualmente estou em mobilidade acadêmica em Paris, estudando Direito Público e Ciências Políticas na Universidade Panthéon-Sorbonne.

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