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Citação eletrônica e a nova realidade do judiciário no Brasil durante o período pandêmico do covid-19

É preciso atribuir novos significados jurídicos outrora elaborados, de modo a adequá-los às necessidades sociais.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Atualizado às 14:08

(Imagem: Arte Migalhas)

Com a atualização do Código de Processo Civil em 2015, um novo ato de comunicação foi inserido no texto de lei, possibilitando que as citações também ocorressem de forma eletrônica. Apesar da sua existência e do seu respaldo legal, muitos operadores do Direito não acreditaram que essa nova modalidade pudesse ser colocada totalmente em prática sem gerar algum tipo de nulidade processual.

Com o advento da pandemia no ano de 2020, o mundo precisou desacelerar e o "novo normal" entrou em vigor. Os impactos causados foram muitos e no nosso Judiciário não poderia ter sido diferente. Todos foram forçados a sair da sua zona de conforto e principalmente a colocar em prática o que talvez fosse demorar um pouco mais, considerando a necessidade de adaptação à nova realidade processual: citar o réu de maneira eletrônica e pessoal, sem ferir o princípio de legalidade e sem gerar a nulidade do ato.

O ato de citação então, que antes era encaminhado pelos correios ou entregue por oficial de justiça, passou a ficar, inicialmente, sem condições de cumprimento - tendo em vista a emergência sanitária que desolou diversas nações ao redor do mundo, inclusive o Brasil1 - e exatamente por isso foi necessário trazer à tona uma série de atos processuais que já existiam, mas que não eram utilizados de forma rotineira até então.

Isto porque os atrasos e a falta de cumprimento dos mandados de citação trouxeram um expressivo retardo processual e, por conseguinte, grandes prejuízos à movimentação regular da máquina judicial e aos cidadãos que dela dependiam.

Neste contexto, foi necessário (enquanto advogados prestadores de serviço de grandes players do mercado) estudar o sentimento dos magistrados e começar a provocá-los com os provimentos já existentes em cada Estado acerca da utilização dos aplicativos de mensagem (como Whatsapp e Telegram), ligações, bem como e-mails, como mecanismos de comunicação formal dos atos processuais em procedimentos judiciais.

Foi a partir deste momento que analisando as repercussões já vistas nos Estados do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, concernentes aos pedidos de citação pessoal, verificou-se que os resultados positivos só cresceram durante a pandemia do covid-19, conforme demonstrado abaixo.

Unidade da Federação

UF

Legislação sobre o tema

Roraima

RR

Portaria 9/2020 - artº 18

Pará

PA

Portaria conjunta 15/2020 - artº 22

Tocantins

TO

Portaria conjunta 23/2020 - artº 11

Maranhão

MA

Portaria conjunto 1186/2021 - artº 8

Ceará

CE

Provimento 10/2020 - CGJCE

Rio Grande do Norte

RN

Portaria conjunta 38/2020 - art. 12

Paraíba

PB

Provimento 10/2021 - TJPB Nº. 74/2021

Pernambuco

PE

Ato conjunto 18/2020 artº 12 e IN 16/2020

Alagoas

AL

Ato normativo conjunto 11/2020, art. 1º

Bahia

BA

Ato conjuntivo 7/2020 - Art.2º, §9º e decreto 414, anexo I;

Minas Gerais

MG

Não temos provimentos publicados sobre o assunto

Rio Grande do Sul (*)

RS

Ato normativo 030/2020-CGJ e ofício circular 62/2020-CGJ;

Distrito Federal

DF

Portaria GC 34 de 2/3/2021

Eis algumas decisões de extrema relevância que merecem destaque, quanto ao assunto tratado:

SENTENÇA Processo: 0206670-93.2021.8.06.0001 Classe: Busca e Apreensão em Alienação Fiduciária Assunto: Alienação Fiduciária Requerente: Banco J. Safra S/A Requerido: Luís Gustavo Fernandes Barbosa

SOBRE A VALIDADE DA CITAÇÃO FEITA VIA WATHSAPP

Percebe-se que, às fls.91, o oficial de justiça cuidou de invocar todos as disposições regularmentares que o autorizaram a proceder à citação do requerido via Whatsapp.

Em artigo de autoria de Lavinia Cavalcante, a autora aponta a necessidade de interpretações mais amplas dos dispositivos constante do Código de Processo Civil, notadamente em razão da pandemia pela covid-19 e da necessidade de isolamento social que ela impõe.

Salienta que:

"(...) A Covid-19 representa um marco na mudança social, cultural e jurídica. Os padrões e as interpretações consolidadas antes do seu surgimento dificilmente permanecerão.

No tocante à citação, as mudanças legislativas não foram relevantes, razão pela qual se faz necessário interpretar o artigo 242 do CPC num mundo novo, em que os celulares representam um dos itens mais pessoais do ser humano, com biometrias digitais, faciais ou oculares que o protegem, resultando numa legitimidade da citação pessoal por Whatsapp maior doque pelo correio.

A realidade social de obrigatoriedade de isolamento, a perspectiva de que essa situação mudará a cultura de maneira definitiva e os princípios constitucionais e processuais fundamentam o avanço das comunicações dos atos processuais e a possibilidade de citação pessoal por Whatsapp."

Ora, o próprio STJ já admitiu a validade da citação editalícia no processo penal, 1Art. 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de mérito, quando: I - não houver necessidade de produção de outras provas; II - o réu for revel, ocorrer o efeito previsto no art. 344 e não houver requerimento de prova, na forma do art. 349. 2 Art. 344. Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor.

Este documento é cópia do original, assinado digitalmente por AGENOR STUDART NETO, liberado nos autos em 23/04/2021 às 20:05. Para conferir o original, acesse o site aqui, informe o processo 0206670-93.2021.8.06.0001 e código 8A23A35. fls. 98

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO CEARÁ

Comarca de Fortaleza

16ª Vara Cível (SEJUD 1º Grau)

Rua Desembargador Floriano Benevides Magalhaes, nº 220, Água Fria - CEP 60811-690, Fone: (85) 3492 8364, Fortaleza-CE - E-mail: clique aqui devendo o fato constar na respectiva certidão, sob a fé pública do oficial de justiça responsável pelo ato.

Art. 2º - O oficial de justiça fica autorizado a realizar intimação e notificação, por e-mail ou aplicativo de mensagens (WhatsApp ou similar) nos mandados urgentes, nos casos de risco de contágio ou dificuldade no cumprimento de diligência presencial, reputando-se realizada a cientificação, com a confirmação de leitura, aferida pelo Ìcone correspondente do aplicativo, mediante o envio de resposta ou outro meio idôneo que comprove a ciência da parte da ordem constante do mandado ou ofício."

Os documentos de fls.87/90 demonstram que as mensagens foram efetivamente recebidas pelo devedor. Inclusive, o oficial de justiça ampliou a foto do devedor, para mostrar que o número para o qual foram enviadas as mensagens eram efetivamente daquele. Feitas as considerações sobre a forma peculiar de citação, verifico o decurso, in albis, do prazo para apresentação de contestação, o qual findou no dia 9 de abril de 2021, de sorte que se aplicam, ao requerido, em sua integralidade, os efeitos da revelia, presumindo-se a veracidade dos fatos articulados na inicial (artigo 344, do Novo Código de Processo Civil),conforme já destacado.

(REsp 1.418.593/MS, rel. ministro Luis Felipe Salomão, segunda seção, julgado em 14.5.2014, DJe 27.5.2014).

Todavia, na contramão deste entendimento, observa-se que em alguns tribunais é permitida a comunicação eletrônica de atos processuais somente através de sistemas oficiais, ou seja, através de plataformas, meios e endereços que possuam cadastro institucional no Supremo Tribunal Federal, não incluindo, portanto, aplicativos de mensagens.

Para tanto, é seguido o entendimento do que está disposto na lei 11.419/20062 que, apesar de na época ter rendido boas práticas e representado uma grande e expressiva evolução no mundo jurídico, o que proporcionou, inclusive, uma importante redução de custos operacionais, hoje está desatualizada comparada à atual realidade, pois o uso de mecanismos processuais é limitado.

Desta forma, as mudanças e conflitos sociais exigem da hermenêutica jurídica uma readequação, sob pena de obsolescência e inacesso à Justiça.

A absoluta admissão da citação eletrônica como prova irrefutável de citação pessoal, apesar de ainda gerar grandes conflitos, faria não só com o que o custo utilizado para cada mandado expedido fosse reduzido a quase zero, como também com que a segurança e saúde de quem utiliza o instituto restasse preservada, sobretudo se considerarmos uma nova e atual realidade de distanciamento social.   

Portanto, em que pese a existência de algumas normas não se adequarem e não regulamentarem exatamente determinadas necessidades sociais (às vezes por terem sido dispostas em momento anterior, como é o caso da lei 11.419/2006), a hermenêutica jurídica nos propõe, justamente, a interpretação e a extração do sentido da norma aplicado ao caso concreto.

Assim, considerando todas as mudanças socioculturais e jurídicas no Brasil, os padrões interpretativos dos textos legislativos promulgados anteriormente à pandemia da covid-19 não podem ser e nem serão mais os mesmos. É preciso atribuir novos significados jurídicos outrora elaborados, de modo a adequá-los às necessidades sociais. A citação eletrônica, neste contexto, precisa ganhar a legitimidade que a citação pessoal (pelos correios ou pelo oficial de justiça) possuía, outrora. Quando a necessidade social muda, o Direito precisa acompanhá-la.

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1 Desde 6 de fevereiro de 2020, o Brasil regulamentou as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, pela lei 13.979/2020. Disponível aqui.

2 Lei 11.419, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2006 - Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil; e dá outras providências.

Mariana Penha Abreu

Mariana Penha Abreu

Advogada do escritório Bruno Vanderlei Advogados Associados e é gestora da área de recuperação de crédito bancária.

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