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O desejo por instituições democráticas

Há muito, a doutrina chama atenção para os malefícios do desequilíbrio das forças promovidas por autoridades parciais, que tinham por obrigação legal ser imparciais.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Atualizado às 12:21

(Imagem: Arte Migalhas)

As manifestações recentes, em eventos diversos, do ex - ministro Néfi Cordeiro1 e do ministro Sebastião Alves dos Reis Júnior2 do Superior Tribunal de Justiça - STJ são emblemáticas e demandam reflexão profunda sobre o sistema de jurisdição criminal do Brasil.

Pede-se licença, para transcrever trechos de tais manifestações, a fim de que o leitor possa entender o contexto inspirador deste artigo, a ver, respectivamente: 

(...) Manter solto durante o processo não é impunidade, como socialmente pode parecer, é sim garantia, somente afastada por comprovados riscos legais. Aliás, é bom que se esclareça ante eventuais desejos sociais de um juiz herói contra o crime, que essa não é, não pode ser, função do juiz. Juiz não enfrenta crimes, juiz não é agente de segurança pública, não é controlador da moralidade social ou dos destinos políticos da nação.... O juiz criminal deve conduzir o processo pela lei e Constituição, com imparcialidade e, somente ao final do processo, sopesando adequadamente as provas, reconhecer a culpa ou declarar a absolvição. Juiz não é símbolo de combate à criminalidade, é definidor da culpa provada, sem receios de criminosos, sem admitir pressões por punições imediatas. (...) (Grifos não constantes do original).

(...) Não tenho a menor dúvida sobre a culpa do Poder Judiciário nesse quadro. Houve abusos que saltavam aos olhos. E parte dos atores da Justiça se sentiu confortável com isso. Mais do que o Judiciário, o sistema de Justiça precisa se repensar. O Ministério Público não faz mea-culpa, a advocacia não faz mea-culpa, a magistratura não faz a mea-culpa. Todos nós adoramos apontar o dedo para a culpa do vizinho, sem fazer uma necessária autocrítica sobre a própria parcela de responsabilidade. A transformação tem de ser cultural, uma mudança de mentalidade. O Ministério Público tem que se preocupar em indicar o culpado, e não um culpado. Juiz deixar de achar que vai resolver os problemas do mundo aplicando o direito que ele entende que é o correto e não aquele direito que foi interpretado pelos tribunais superiores. A advocacia também saber o limite da sua atuação, porque não é possível a apresentação de quatro, cinco Habeas Corpus idênticos contra a mesma decisão, sem qualquer fato novo. (...) (Grifos não constantes do original).

Pois bem!

Há muito, a doutrina chama atenção para os malefícios do desequilíbrio das forças promovidas por autoridades parciais, que tinham por obrigação legal ser imparciais. A mídia noticia diariamente o incremento da violência, a proliferação de legislação penal simbólica (aquela que da sensação de segurança, mas que não reduz a impunidade e aumenta a seletividade) e recentemente, a despudorado agigantamento de Poderes e interferência dos mais fortes sobre os outros, buscando o protagonismo do salvamento da pátria.

É verdade que algumas dessas autoridades estão imbuídas do sentimento inicial de fazer o bem. De mudar seu meio, para assim mostrar que é possível revolucionar e contagiar as pessoas com atitudes positivas e altruístas. Ocorre que também é verdade, infelizmente, que muitos começam bem intencionados e se perdem no caminho. A vaidade cresce, as regalias acompanham. A burocracia aumenta, as excelências se multiplicam e ver as portas se abrirem, sem ao menos tocar nos trincos, deslumbra. O povo aplaude, o poder fascina e o que antes era só fazer o bem, ou seja, punir os maus é distorcido e vira perseguição contra quem se coloque no caminho.

Aí já não agrada mais, mas não tem importância, pois a tirania se instala. O trabalho diminui e a solidariedade mingua. Assim, algumas autoridades se apropriam do Estado e se eternizam. Planejam, conspiram, executam e quem se coloca contra tais situações é atropelado.

Na história um pouco mais distante do Brasil, normalmente, esses eram a população mais humilde. Os mais pobres, sem educação ou aspiração a uma vida para além do sobreviver.

A pandemia do coronavírus chegou, levou milhões de cidadãos do mundo, mas, se Deus quiser, está próxima de ser administrada. Muitos disseram que sairíamos melhores: mais humanos e espiritualizados. Por meses, o mundo parou e o medo imperou. Exemplos de solidariedade foram dados e permanecem. Entretanto, muita coisa piorou.

Alguns modelos, que já eram ruins de prestações de serviço conseguiram se superar e mandar a mensagem para todos os brasileiros e, não somente para os miseráveis. O recado é que, de outro lado, os castelos continuam de pé e, pós-pandemia, os sobreviventes são realmente ungidos por Deus.

Muito disso, é verdade, fruto da inércia do povo e do cuo deixado pelo Legislativo e Executivo. Ambos, no Brasil, acuados com inúmeras denúncias de corrupção, prisões e impeachment recentes, apenas fortaleceram o Judiciário, que é formado por profissionais preparados. Isso tudo abriu margem para posturas autoritárias e julgamentos eivados de nulidades ao redor do país. A classe política e, por consequência a representação popular foi "posta de joelhos".

Apenas uma coisa há em comum. O apetite de muitos, sobretudo os que se ancoraram no setor público, sem conhecer as dificuldades acentuadas pela crise no setor privado. É assombroso! Limite parece ser configuração geográfica para município. As consequências para todos são nefastas!

É urgente o abandono dos modelos falidos de patriarcalismos aristocratas. Todos os que seguem esta fórmula, independentemente de qual estrutura ocupem, querem ser presidentes ou chefes de algo. Não importa se de um clube recreativo, de um dos poderes da república e suas conformações locais ou de um país. Gastos faraônicos com o dinheiro público, para mostrar força e poder não deveriam ter mais espaço em nossa sociedade, mas se proliferam e se repetem em cascata.

O setor público deveria ser sóbrio, sem pronomes de tratamento pomposos, que não denotam respeito, mas separação. A educação, verdadeira heroína e libertadora do povo deveria ser a ordem do dia, ao invés de falsos heróis, que a história mostra serem guilhotinados, por suas próprias leis mais cedo ou mais tarde.

E o que acontece no meio do caminho? O que se dá entre os abusos e o desfecho, que muitas vezes não chega a tempo de reparar as injustiças? Essas perguntas começam a ser feitas por grandes magistrados, como visto acima. É importante verificar que são Ministros respeitados, oriundos do Tribunal da Cidadania, que possuem formação humanística diferenciada. Eles estão incomodados com os rumos que as coisas estão tomando. Isso deve ser um sintoma de algo mais sério que estruturalmente nos ataca e a sociedade não pode fechar os olhos.

A intolerância aos absurdos que acompanhamos calados deve ser a tônica de uma sociedade igualitária e justa. 

O grande problema é que o povo quer apenas sobreviver!

A maior parte da população mundial não está interessada em discutir política pública ou invasão de poderes. Desequilíbrio estrutural do sistema. E, infelizmente quem está nas posições principais do país sabe disso. Aproveitam, de certa forma, o momento e com "a bola no pé não perdem tempo, fazem o gol". Não é interesse do artigo fulanizar os comentários. Basta abrir os jornais, navegar na internet, ouvir os rádios ou ver TV para se deparar com a enorme quantidade de matérias jornalísticas estampando aumento de regalias, auxílios, compra de aparelhos telefônicos e de informática a valores astronômicos no sítio dos órgãos de controle v.g. Tribunais de Contas da União e dos Estados.

E quem vigia o vigia?

Era para ser o contribuinte, que paga a conta no final.

A quantidade de informação (boas e fakes) e distração é tamanha, que o pão e circo romano, política que lotava o coliseu de Roma, hoje se modernizou e está na palma das mãos de cada cidadão (smartphones), que assiste, de modo geral, apático e sem criticar a quantidade de barbaridades que se vê, salvo raríssimas exceções. 

Linhas de crédito foram pensadas, tributos postergados, auxílios emergenciais heroicamente distribuídos pela Caixa Econômica Federal - CEF, mas a vida é dinâmica. Quem não está brigando, em decorrência da polarização política instalada no país, está preocupado em sobreviver. Retomar suas vidas e seus negócios paralisados e/ou quebrados na pandemia.

A quem isso beneficia?

As instituições democráticas, certamente que não.

O que o cidadão busca é honrar suas contas, sustentar sua família com dignidade e ver as instituições funcionando de modo democrático. Gestores cuidando da coisa pública, como se privada fosse. Com orçamento, com controle, com sobriedade e respeito às leis. Com menos excelências e com mais trabalho. Sem precisar sonhar com heróis fugazes!

Enfim, seria muito bom ver o serviço público pago pelo cidadão, para o cidadão. Ninguém aguenta mais a corrupção, isso é certo. É certo também, que ninguém tolera mais o arbítrio. Somente a educação e às leis libertam, mas sabemos que o processo é lento.

A forma que se encontra é minimamente contribuir com a discussão de tema desta natureza. Insistindo nesta tecla, no futuro teremos orgulho não apenas de cidadãos, que se destacam individualmente, mas da sociedade que estamos formando. Este nada mais é do que o desejo por instituições realmente democráticas.

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1 HC 509.030 - RJ (2019/0128782-2) - 6.ª turma do STJ, julgado à unanimidade, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, 14/5/2019, DJe. 30/5/2019.

2 Punitivismo mira corrupto, mas acerta ladrão de biscoito, diz Reis Júnior, do STJ. Disponível: Conjur.

Antonio Tide Tenório A. M. Godoi

Antonio Tide Tenório A. M. Godoi

Advogado Criminalista, Procurador do Município de Olinda/PE e Conselheiro Seccional da OAB/PE.

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