Testes de produtos com cobaias animais: os estados podem proibir?
Com o aquecimento dos debates sobre a ética dos testes de produtos industrializados com animais, surge a reflexão sobre qual ente da Federação brasileira possui competência para impedir a continuidade dessas práticas cruéis e qual norma deve prevalecer na hipótese de conflito de leis.
quinta-feira, 6 de maio de 2021
Atualizado às 16:58
I. Introdução
Recentemente tem circulado, nas mídias sociais, um documentário intitulado "Salve o Ralph", animação que apresenta um dia na rotina do coelho Ralph em seu trabalho como cobaia na indústria de cosméticos.
O curta-metragem revela ao telespectador um pequeno fragmento sobre a crueldade dos métodos de testagem de produtos com cobaias animais e os danos irreversíveis sobre essas como dores, cegueira, surdez, dermatites, morte.
O vídeo é uma iniciativa da The Humane Society International (HSI) com escopo de sensibilizar as pessoas sobre os maus tratos sofridos pelos animais usados nesse tipo experimentos e fortalecer o movimento mundial pela proibição dos testes com vidas animais. Em poucos dias, o vídeo já bateu recorde de visualizações pelo modo único como expõe um problema tão antigo, mais ainda tão negligenciado.
Dentro desse contexto, os ativistas cobram dos governos medidas efetivas para a proibição dos testes com animais e a imposição de métodos alternativos às indústrias de cosméticos, medicamentos, produtos de limpeza e outras que lançam mão desses procedimentos.
No Brasil, sob uma ótica constitucionalista, quem pode disciplinar os testes com animais realizados nas indústrias? Seria somente o Governo Federal ou Estados tem competência material e legislativa para criarem normas sobre a matéria?
Dialogar sobre essas questões é o propósito do presente artigo.
II. A lei 11.794/08 - Lei Arouca
A Constituição Federal dedicou um capítulo dedicado ao meio-ambiente, composto pelo art. 225.
No art. 225, §1º, inciso VII, da Constituição Federal, foi incumbido ao Poder Público "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade".
Com objetivo de regulamentar o citado comando constitucional, foi publicada a lei 11.794/08 - também conhecida como Lei Arouca - que estabeleceu procedimentos para o uso científico de animais.
A lei, como expõe seu art. 1º, permite a criação e a utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica, em todo o território nacional, desde que obedecidos determinados critérios.
O §2º do art. 1º ainda define como atividades de pesquisa científica todas aquelas relacionadas com ciência básica, ciência aplicada, desenvolvimento tecnológico, produção e controle da qualidade de drogas, medicamentos, alimentos, imunobiológicos, instrumentos, ou quaisquer outros testados em animais, conforme definido em regulamento próprio.
Para implementação das regras e fiscalização, a lei criou o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal - CONCEA, cujas competências, definidas no art. 5º, possuem em comum a diretriz de garantir tratamento humanitário aos animais utilizados nas pesquisas.
Como braço auxiliador do CONCEA, a lei, em seu art. 8º, determinou a criação, dentro da estrutura das instituições responsáveis pelos testes e pesquisas, de Comissões de Éticas no Uso de Animais - CEUAs, integradas por médicos veterinários, biólogos, docentes e pesquisadores na área, além de um representante de sociedades de protetoras de animais legalmente estabelecidas no País.
Todavia, como já era previsível, essa legislação é pouco conhecida, o que contribui para sua baixa efetividade e fiscalização rara.
III. Leis estaduais proibitivas dos testes com animais e a posição do STF
Norteados pelos princípios protetivos da fauna e o crescente movimento por produtos elaborados sem crueldade aos animais (cruelty-free), alguns Estados do Brasil - como, por exemplo, Pernambuco, São Paulo, Amazonas - passaram a legislar e a proibir os testes com animais.
Em Pernambuco, a Lei Estadual 16.498/18 acresceu dispositivos à lei 15.226/14 - Código Estadual de Proteção aos Animais - incluindo o art. 23-A, que veda a utilização de animais para desenvolvimento, experimentos e testes de cosméticos, perfumes, produtos de higiene e limpeza, e o art. 25-B, que elenca sanções como multa pecuniária e até cassação da licença do estabelecimento.
Em São Paulo, a proibição vigora desde aprovação da Lei Estadual 15.316/14, cujo art. 3º traz um rol de sanções progressivas para os descumpridores. No Amazonas, a proibição foi por meio da Lei Estadual 289/15.
Todavia, a iniciativa legislativa desses entes da Federação não foi bem recepcionada por todos, de modo que alguns passaram a argumentar que tais normas estão maculadas de vício de inconstitucionalidade formal pois os Estados atuaram em nítida usurpação da competência da União.
Aderindo a esse olhar, foi proposta, no Supremo Tribunal Federal, pela Associação Brasileira de Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos - ABUHPEC, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.996 como a finalidade de impugnar constitucionalidade da Lei Estadual 289/15 do Estado do Amazonas, que proibiu "a utilização de animais para desenvolvimento, experimentos e testes de produtos cosméticos, de higiene pessoal, perfumes e seus componentes" naquele Estado.
A tese apresentada pela Associação de Classe consistia na usurpação da competência da União para legislar sobre normas gerais no que diz respeito à proteção da fauna (art. 24, VI, CF), bem como teria extrapolado a competência legislativa suplementar dos Estados, disposta nos §§ 1º a 4º do art. 24 da Constituição Federal.
A ação direta foi julgada improcedente pelo Plenário da Corte, sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, em 15/4/20, resultando na lavratura da seguinte ementa:
Ementa: CONSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. LEI ESTADUAL 289/2015 DO ESTADO DO AMAZONAS. PROIBIÇÃO DO USO DE ANIMAIS PARA O DESENVOLVIMENTO, EXPERIMENTOS E TESTES DE PRODUTOS COSMÉTICOS, DE HIGIENE PESSOAL, PERFUMES E SEUS COMPONENTES. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE DO ESTADO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL (ART. 24, VI, CF). NORMA ESTADUAL AMBIENTAL MAIS PROTETIVA, SE COMPARADA COM A LEGISLAÇÃO FEDERAL SOBRE A MATÉRIA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. 1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. Princípio da predominância do interesse. 2. A Constituição Federal de 1988, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos - União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios - e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União (CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e nos Municípios (CF, arts. 24 e 30, inciso I). 3. A lei 289/15 do Estado do Amazonas, ao proibir a utilização de animais para desenvolvimento, experimentos e testes de produtos cosméticos, de higiene pessoal, perfumes e seus componentes, não invade a competência da União para legislar sobre normas gerais em relação à proteção da fauna. Competência legislativa concorrente dos Estados (art. 24, VI, da CF). 4. A sobreposição de opções políticas por graus variáveis de proteção ambiental constitui circunstância própria do estabelecimento de competência concorrente sobre a matéria. Em linha de princípio, admite-se que os Estados editem normas mais protetivas ao meio ambiente, com fundamento em suas peculiaridades regionais e na preponderância de seu interesse, conforme o caso. Precedentes. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade conhecida e julgada improcedente.
(STF. ADI 5996, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 15/4/20, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-105 DIVULG 29-4-20 PUBLIC 30-4-20) (grifos nossos)
O STF, no julgamento da referida ADIn, fixou a tese jurídica que os Estados podem legislar, inclusive proibindo a utilização de animais para experimentos e testes de produtos cosméticos, perfumes ou congêneres.
Ao contrário do argumentado pelos autores da ADIn, a Constituição primou pela adoção do federalismo de cooperação e fixou competência concorrente quanto a proteção da fauna, nos termos do art. 24, VI, da CF.
Dessa forma, entendeu a Corte Constitucional que, apesar de caber a União estabelecer as normas gerais sobre a matéria, os Estados, exercendo a competência suplementar que lhes pertence, estão autorizados a editar normas mais protetivas ao meio ambiente, com fundamento em suas peculiaridades regionais e na preponderância de seu interesse.
A decisão do STF, proferida no âmbito de Ação Direta de Inconstitucionalidade, tem eficácia contra todos e vincula os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública, nas esferas federal, estadual e municipal, conforme o art. 28, parágrafo único, da Lei Federal 9.868/99.
Com esse julgamento histórico, que contou com a participação, como amicus curae, da The Humane Society International (HSI), entidade produtora do curta "Salve o Ralph", o STF contribui para o fortalecimento do movimento mundial em prol do fim de experimentos com animais em diversos ramos industriais.
IV. Conclusão
Os Estados podem legislar sobre direito ambiental e mais especificamente sobre testes de produtos com animais. Mas apesar da permissão constitucional, a maioria deles não possui norma sobre o assunto. E algumas das poucas legislações ainda se demonstram insuficientes, seja por proibirem sem cominar sanções ou por não tratarem dos mecanismos de fiscalização.
A Lei Federal ainda está vigente, apesar de existirem projetos de lei, no Congresso Nacional, com pretensões de alterá-la.
Em suma, os protetores da fauna ainda têm um longo e pedregoso percurso a trilhar até a concretização de uma legislação que, de fato, trate os animais como sujeitos de direito.