Interpretação do direito ao esquecimento no panorama brasileiro sob a ótica do STF: (In)compatibilidade com o sistema constitucional brasileiro
Frente à ausência de previsão legal expressa para regulamentar a (in)admissibilidade do direito ao esquecimento, não raro o Poder Judiciário recorre à uma interpretação extensiva dessa garantia sob a ótica dos direitos fundamentais.
segunda-feira, 3 de maio de 2021
Atualizado às 17:48
No ápice da maior revolução tecnológica já vivenciada no mundo, com o uso sem precedentes dos mais variados meios de comunicação, o Brasil experiencia hoje uma mudança por completo da base material estruturante da sociedade industrial, tendo sido as perspectivas sociais abruptamente renovadas e transformadas de modo a acompanhar o voraz e agressivo avanço das novas tecnologias informacionais.
No âmago desse movimento digital, que avança ao passo da velocidade da comunicação, malgrado as atuais formas regulamentares dessa relação, tais como o Marco Civil da Internet (lei 12.965/14) e a mais recente Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18), a transmissão e o aproveitamento de dados se torna efeito colateral das intermediações da rede, caminhando em sentido oposto à manutenção da esfera privada dos indivíduos.
Assim, diante de um contexto em que há um movimento tecnológico em energética ascensão, a propagação da informação (sendo ela verificada ou não) se torna cada vez menos dependente de terceiros, já que a rede viabiliza oportunidades infinitas de divulgação, por qualquer pessoa, de uma determinada notícia a nível mundial e de forma instantânea, gerando uma vigorosa oportunidade de veiculação de fatos, cada vez mais mediada pelos meios tecnológicos-sociais - lê-se, mídias/redes sociais.
Contudo, ainda que considerada a relativa dependência informacional possibilitada pelos novos meios de comunicação e tecnologia, a imprensa tradicional ainda reserva grande credibilidade e poder em trazer, nem sempre de forma a atender aos melhores critérios de interesse público, as notícias e informações que julga relevantes para divulgação e repercussão nacional.
Em posse desse privilégio, não raro a mídia resgata, em notoriedade nacional, fatos ocorridos no passado, e até já esquecidos, avivando um determinado acontecimento - normalmente de grande repercussão - o que, por vezes, pode acarretar em resultados desastrosos para os indivíduos envolvidos no certame.
Nesse contexto surge o "Direito ao Esquecimento", assim apelidado pela doutrina e jurisprudência, contemplado pelo Enunciado 531 (VI Jornada de Direito Civil), o qual, basicamente, associa-se à ideia de que um indivíduo possui o direito de "apagar", ou ao menos de que não seja lembrado, um fato ocorrido no passado, em respeito à tutela da dignidade da pessoa humana, proteção da intimidade, da imagem e da vida privada.
Voltado geralmente para o autor de determinada ocorrência, o direito ao esquecimento traduz a ideia da aplicabilidade do princípio processual penal do non bis in idem1, em que se veda a condenação do réu por mais de uma vez em relação ao mesmo fato, não podendo um indivíduo ser duplamente responsabilizado pelo mesmo acontecimento.
Considerando isso, extraiu-se uma discussão arredor do direito ao esquecimento, especificamente no que tange à (im)possibilidade do impedimento, em razão da passagem do tempo, à divulgação de fatos ou dados verídicos em meios de comunicação, em razão do surgimento de futuros transtornos aos envolvidos por força das novas divulgações (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2021).
Importante frisar que referida análise encontra escopo no fato de que a retomada da divulgação de antigos acontecimentos, muitas vezes narrados fora de contexto, viabilizaria uma perpetuação na lembrança popular de uma ocorrência sem precedentes, podendo violar direitos constitucionais dos indivíduos envolvidos (direitos de personalidade). Neste prisma, questiona-se se referido direito estaria (ou não) em consonância com o ordenamento pátrio, podendo ser pleiteado oportunamente.
Aludindo vasta discussão jurídica, o direito ao esquecimento possui como percussor originário o leading case alemão Lebach, ocorrido em 1969, oportunidade em que surgiram as primeiras reflexões sobre o tema, envolvendo uma chacina de quatro soldados alemães, em que três pessoas foram condenadas: duas à prisão perpétua e uma à reclusão de seis anos. Nesse contexto, às vésperas da liberdade do terceiro réu, um canal televisivo voltou a citar o crime ocorrido, retratando-o por meio da dramatização envolvendo pessoas contratadas, criando-se um documentário acerca do ocorrido (SOARES DE SÁ, 2013).
Em razão disso, o réu pleiteou uma tutela liminar para que a exibição do documentário fosse impedida, recorrendo-se ao direito ao esquecimento. Na hipótese apresentada, contudo, referida liberdade se mostrou conflituante com a proteção ao direito de personalidade do réu, sendo necessária a realização de um equilíbrio de interesses em prol do conflito entre direitos, observando-se o princípio da proporcionalidade, concluindo-se pela proibição da transmissão do documentário.
No Brasil, o tema causou algumas movimentações desde o resultado do julgamento do Recurso Especial 1.334.097/RJ, pelo Superior Tribunal de Justiça, retratando um caso ocorrido em 1993.
Mais recentemente, nos autos do Recurso Extraordinário , prevaleceu o posicionamento no sentido de que o direito ao esquecimento é flagrantemente incompatível com a Constituição Federal de 88, uma vez considerado o confronto de dois direitos tutelados na legislação constitucional (privacidade versus direito à informação), prevalecendo o direito de acesso da população à informação e, tangencialmente, o interesse público.
Sobre o tema em análise, o Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal (CJF), por seu turno, chegou a expedir o Enunciado 531, possuindo a seguinte redação "Enunciado 531 (CJF): A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento."
Portanto, sob a ótica do CJF, referido direito estaria implícito na regra legal que assegura a proteção da intimidade, imagem e privacidade do indivíduo, além do resguardo ao princípio da proteção à dignidade da pessoa humana.
Contudo, o Desembargador Fialho Moreira2 assegura que o enunciado expedido pelo CJF garante tão somente a possibilidade de discutir o uso que é dado aos eventos pretéritos nos meios de comunicação social, sobretudo, nos meios eletrônicos, partilhando do mesmo entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal de que decorre do enunciado a vedação ao indivíduo de apagar fatos passados ou mesmo em reaver fatos efetivamente ocorridos (MOREIRA FIALHO, 2013).
Atualmente em nosso País, após o decurso do prazo de 2 (dois) anos do cumprimento da pena ou da extinção da punibilidade, é garantido àquele que praticou o delito o direito à reabilitação, extinguindo-se, após 5 (cinco) anos, a possibilidade de considerar o fato outrora praticado para fins de reincidência, sendo apagados os registros criminais além dos processuais públicos.
Assim, Moreira esclarece não parecer compatível que os atos da vida privada, após divulgados, permaneçam indefinidamente nos meios de informação virtuais, destacando que essa é a origem da teoria do direito ao esquecimento, à luz do "right to bel et alone"3. Sob sua ótica, "não é qualquer informação negativa que será eliminada do mundo virtual. É apenas uma garantia contra o que a doutrina tem chamado de "superinformacionismo". De igual modo, o enunciado contribui, e muito, para a discussão do tema, mas ainda há muito espaço para o amadurecimento do assunto, de modo a serem fixados os parâmetros para que seja acolhido o "esquecimento" de determinado fato, com a decretação judicial da sua eliminação das mídias eletrônicas (MOREIRA FIALHO, 2013).
Seguindo a aspiração da necessidade de um posicionamento contundente sobre esse tema, em decisão majoritária, no dia 11.2.21, o Supremo Tribunal Federal por fim se posicionou no sentido da incompatibilidade com a Constituição Federal de 88 a aplicabilidade do direito ao esquecimento no Brasil, vedando-se a ideia de um direito ao esquecimento que possibilite impedir, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos em meios de comunicação (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2021).
A decisão do leading case em epígrafe, com tema de repercussão geral reconhecida, interposto por Roberto Curi, Maurício Curi e Nelson Curi, em face de Globo Comunicação e Participações S/A, possui origem na discussão da transmissão em rede nacional, por meio do programa "Linha Direta - Justiça", no ano de 2004, da restituição do crime ocorrido na década de 50, sem prévia autorização dos familiares, utilizando o nome e imagem da vítima Aída Curi.
Com o afã de ver a emissora responsabilizada, os familiares de Aída recorreram à justiça, aduzindo o direito subjetivo de obter indenização pelo uso indevido do direito à imagem e nome da vítima. Em razão disso, pleitearam indenização moral pelo profundo sofrimento do revolvimento fático de um evento dramático e lutuoso que o tempo havia apagado, além de indenização material devido ao lucro que a emissora obteve de forma ilícita com o patrimônio dos recorrentes.
Assim, firmou-se o entendimento do STF no sentido de que permitir a aplicabilidade do direito ao esquecimento representa a vedação de acesso à informação, tanto por parte da sociedade como aos estudiosos, não sendo possível admitir a limitação e/ou censura do direito funtamental à liberdade de expressão por meio de um direito ainda não reconhecido ou demarcado no âmbito civil, tampouco existindo direito subjetivo à indenização pela lembrança de fatos pretéritos, in verbis do voto de Nunes Marques (MARQUES NUNES, 2021).
Ganhando igual notoriedade no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o caso Aída Curi também fora objeto de análise por meio do Recurso Especial 1.335.153/RJ, tendo o Tribunal concluido pela sua improcedência, sedimentando a não visualização de dano moral a corroborar com o pedido de reparação devido ao sofrimento causado aos irmãos da vítima pela reconstituição do crime ocorrido nos anos de 50, embora tenha remetido dolorosas lembranças em detrimento do brutal assassinato ocorrido (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2021).
O Tribunal Superior entendeu, portanto, no sentido de "afastar a responsabilidade de buscadores da internet pelos resultados de busca apresentados, reconhecendo a impossibilidade de lhe atribuir a função de censor e impondo ao prejudicado o direcionamento de sua pretensão contra os provedores de conteúdo, responsáveis pela disponibilização do conteúdo indevido na internet".
No entanto, pelo fato de nenhum direito constitucional ser classificado como absoluto, tal como o direito à liberdade de expressão e imprensa, com eventuais abusos de tais prerrogativas, faz-se necessária apuração do Poder Judiciário com o fim de resguardar o direito à intimidade e esquecimento, além da proteção aos dados pessoais que também deverá preponderar, a fim de zelar o direito das pessoas envolvidas em seguir suas vidas com razoável anonimato, "não podendo o fato desabonador corriqueiramente rememorado e perenizado por sistemas automatizados de busca", asseverou o STJ (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2021).
No entendimento do Ministro Alexandre de Moraes, a liberdade de expressão é vista em seu duplo aspecto: o positivo é exatamente o poder de se manifestar como bem entender, e o negativo proíbe a legítima intervenção do Estado por meio de censura prévia, de modo que a liberdade de expressão, em seu aspecto positivo, permite posterior responsabilização cível e criminal pelo conteúdo difundido indevidamente (MORAES ALEXANDRE, 2021).
De igual modo, como assim como há sanções impostas ao abuso da liberdade de expressão, com a possibilidade de invocação ao direito esquecimento, poderia se analisar o cabimento de referida medida frente às notícias meramente tendenciosas e sensacionalistas transmitidas pela mídia, que por sua vez, não são revestidas de caráter informativo, ou até mesmo àquelas informações que estejam desatualizadas, tornando-se imprescindível a atualização dos dados e fatos.
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1 De forma geral, o princípio do non bis in idem é traduzido na ideia de que ninguém pode ser julgado mais de uma vez pelo mesmo crime, geralmente aplicado na seara do Direito Processual Penal, porém de aplicabilidade interdisciplinar no contexto jurídico brasileiro.
2 Desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em entrevista ao Conselho da Justiça Federal.
3 Tradução literal: "direito de ser deixado sozinho".
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