A forma com que a alta classe brasileira utiliza o trust ao seu favor
"A forma com que a alta classe brasileira utiliza o trust ao seu favor" é de autoria de Carolina de Souza Malavazi e Lucas Natal orientados pelo Geraldo Fonseca.
quarta-feira, 7 de abril de 2021
Atualizado às 13:34
(Imagem: Arte Migalhas)
I. DESDOBRAMENTOS DO TERMO
A fim de entender a relação jurídica denominada trust, é preciso esclarecer o conceito deste termo. Idealizado nos países anglo-saxões, o trust consiste em confiar bens à titularidade e administração de um terceiro. Assim sendo, o trust é um contrato privado, onde o settlor cede parte do patrimônio a um trustee, que assume a responsabilidade de administrá-lo.
Os trusts foram tratados na Convenção da Haia na década de 80. Tal acordo definiu em seu artigo 2° suas principais características:
Para os propósitos desta Convenção, o termo trust se refere a relações jurídicas criadas - Inter vivos ou após a morte - por alguém, o outorgante, quando os bens forem colocados sob controle de um curador para o benefício de um beneficiário ou para alguma finalidade específica.
O trust possui as seguintes características:
Os bens constituem um fundo separado e não é parte do patrimônio do curador;
Títulos relativos aos bens do trust ficam em nome do curador ou em nome de alguma outra pessoa em benefício do curador;
O curador tem poderes e deveres, em respeito aos quais ele deve gerenciar empregar ou dispor de bens em consonância com os termos do trust e os deveres especiais impostos a ele pela lei;
Assim, a Convenção foi utilizada como um intermédio entre o Direito dos países anglo-saxões e continentais, com efeito proporcionando uma integração entre os países da Common Law e da Civil Law, através do reconhecimento deste instituto.
Entretanto, o trust é uma ferramenta com pouca possibilidade de implementação no Brasil devido ao sistema jurídico em vigor. Ademais, do ponto de vista fiscal, não existe equivalência do instituto na legislação brasileira, já que possivelmente acarretaria implicações tributárias para o settlor e para os beneficiários, podendo caracterizar a relação como evasão fiscal, já que ao se constituir um trust, o autor pode se desresponsabilizar de declarações de impostos para a receita sobre a herança, renda, etc.
Seguindo este panorama, no Direito Penal Econômico a evasão de divisas é tratada no artigo 22 da lei 7.492/86, onde a configura como crime contra a ordem financeira e tutela a execução da política cambial. Já a lavagem de dinheiro está disposta na lei 9.613/98 e consiste na ocultação ou dissimulação da natureza, origem, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime.
II. CONTEXTO HISTÓRICO
No contexto da Inglaterra feudal, as propriedades de terras, até então atribuídas ao rei, foram redistribuídas aos tenants, que por sua vez tornaram-se titulares de uma tenure, relação jurídica, que permitia o tenant utilizar a terra em troca de serviços prestados, pois na época somente o rei poderia ter direito de propriedade pleno e perpétuo. Sendo assim, simultaneamente, o tenant e o rei seriam possuidores de uma só terra, característica jurídica marcante deste período.
O primeiro antecedente histórico do trust foi o use, o qual aparece no início do século XVI na Inglaterra feudal, inicialmente desprovido de proteção jurídica, onde determinado bem era transmitido de A para B, to the use (para gozo) de C. Ou seja, os direitos reais eram cedidos a um terceiro, que administraria os bens em favor do cedente ou de outrem por ele indicado.
Neste primeiro momento, a relação jurídica era baseada somente na confiança das partes, pois após o bem ser passado para o fiduciário, segundo a Common Law, ele teria direito de administrá-lo da forma que preferisse, sendo a sanção para sua quebra apenas moral.
No entanto, após alguns anos surge a figura do Chancellor que devido a sua formação eclesiástica e seu papel de conselheiro do rei analisava as questões de justiça natural, insuscetíveis de acolhimento pela Common Law.
A partir do Statute of Westminster de 1285 essa jurisdição do Chancellor foi "legalizada", pois ele poderia emitir writs, isto é, mandados que fossem analisados por ele (como um moderador), visando resolver situações que a Common Law não resolvia e possíveis injustiças. O rei, como detentor de todas as terras, não via vantagem em limitar seus bens, já que era suserano de todos e vassalo de nenhum.
Baseado na justificativa de combater fraudes, que por sua vez ocorriam pela existência de direitos reais não registados, em meados do século XVI o rei Henrique XIII, visando proteger suas receitas, promulgou o Statute of Uses, que tinha por objeto a extinção dos uses. Desta forma, a relação jurídica passa a focar na figura do curador como verdadeiro titular dos bens, ao invés de manter o beneficiário como detentor desse direito.
Ao analisarmos o panorama do século XVII e XVIII, vemos que, com o "início do fim" do poder absoluto e totalitário, o rei foi perdendo sua soberania e seus direitos vão ficando cada vez mais limitados. Sendo assim, consoante o advogado Eduardo Salomão, temos "O golpe definitivo contra o Statute of Uses", realizado pela parcela da sociedade e a corte de chancelaria, que buscavam menores ou nenhuma limitação ao use.
III. ELEMENTOS DO TRUST
O início das relações jurídicas, que quando juntas formam um trust, dá-se a partir do momento em que a primeira das três partes deste, classificada como settlor/outorgante, transfere parte do seu patrimônio a uma instituição financeira (trustee/curador), que na maioria dos casos são bancos internacionais de grande renome, no intuito de ter seus bens administrados corretamente até o término do período estipulado no contrato. Toda essa relação é constituída pela motivação de ter o patrimônio transferido a um beneficiário, que por sua vez pode ser o próprio settlor.
A forma com que o trustee fará a gestão dos bens e a organização estrutural de todas as etapas é acordada em um contrato prévio identificado como trust deed. Sendo assim, é disposta nesse contrato a estrutura da relação como "irrevogável" ou "revogável", sendo a primeira, uma transferência do patrimônio de forma análoga a uma doação, e a segunda, onde o settlor se posiciona como procurador, de forma que o patrimônio seria alocado apenas temporariamente, abrindo a possibilidade de recuperá-lo quando desejar.
Os três elementos básicos para a constituição de um trust são: (1) a intenção, (2) o objeto e (3) os beneficiários. Desta forma, o instituto se mostra presente, abrindo um leque de possibilidades e perspectivas que variam conforme o desenrolar de cada elemento.
IV. UTILIZAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A relação jurídica do direito de propriedade no Brasil é absoluta e exclusiva, ou seja, o sujeito proprietário pode dispor de sua propriedade da forma que preferir, salvo por exceções que o limitam, também, o direito de posse se torna exclusivo, excluindo a possibilidade de que outra pessoa possua direito por uma só coisa.
Para que o Trust fosse implantado no ordenamento jurídico brasileiro e sua utilização fosse semelhante ao instituto inglês, diversas mudanças estruturais deveriam ocorrer. Partindo do caráter absoluto e indivisível do direito de propriedade e considerando que, o direito brasileiro deriva-se do Common Law, estas mudanças dificilmente ocorreriam, e caso acontecessem, não abrangeriam todos os fatores necessários para a utilização completa do instituto, com todas as possibilidades e variáveis que existem na Inglaterra por exemplo.
Segundo as leis vigentes no Brasil, a implantação completa do instituto não é possivel. No entanto, ele pode ser utilizado por brasileiros em países que o reconheça, desde que as regras do direito internacional e do referido país sejam respeitadas.
V. CASO PRÁTICO
A denúncia formulada pelo Ministério Público Federal referente à prática dos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas no âmbito da Operação Lava Jato, contra o Ex Deputado Federal Eduardo Cunha, se baseia no Inquérito 4146/DF, onde obtiveram provas de pagamentos indevidos feitos por empresas fornecedoras da Petrobrás aos dirigentes da estatal. Transcendendo a corrupção e a lavagem de dinheiro pelos agentes da Petrobrás, o esquema foi utilizado para corromper agentes políticos e financiar seus partidos com recursos provenientes do crime.
Segundo a denúncia apresentada, o contrato de aquisição feita pela Petrobrás sobre os direitos de participação na exploração do Campo de Petróleo em Benin - África Ocidental, pela Compagnie Beninoise des Hydrocarbures Sarl - CHB, teria envolvido o na época Deputado Federal Eduardo Cunha (beneficiário), ao receber propina com valor correspondente a USD 1.5 milhões.
Pago pelo proprietário da empresa vendedora, Idalécio de Oliveira (outorgante), e acertada com o Diretor Internacional da Petrobrás Jorge Zelada. Foi intermediada por João Henriques (curador), e paga mediante transferências em contas secretas no exterior. - Prevista na Convenção de Haia "Sobre a Lei Aplicável ao Trust e a Seu Reconhecimento". Parte da propina foi destinada para contas no exterior em nome de Off-Shores/Trust, que sustentavam cartões de créditos internacionais utilizados pelo ex-parlamentar e seus familiares.
Com a celebração do contrato entre a Petrobrás e a CBH, foi transferido 31 milhões à conta mantida no BIS, na Suíça, da Lusitania Petroleum (BC) Limited, uma holding, proprietária, entre outras empresas, da CBH e em MAI/2011, foram transferidos 10 milhões para a conta BSI na Suíça, titularizada pela off-shore Acona International Investments Ltd. Sendo seu beneficiário final João Henriques.
Da conta em nome da off-shore Acona Internacional, foram, segundo a denúncia, realizadas cinco transferências, no período de um mês, no total de USD 1,5 milhão pelo Banco Julius Baer, em Genebra, em nome de Orion SP. A Orion SP é um Trust com endereço formal em Edimburgo e segundo a denúncia, pertenceria a Eduardo Cunha, Deputado Federal ao tempo dos fatos.
Em ABRIL/14, na conta em nome da Orion, foram efetuadas duas transferências no montante de 970.261,34 francos suíços e de 22.608,37 euros para conta no Banco Julius Baer (sucessor do Merrill Lynch), Suíça, em nome da Netherton Investments PTE. Ltd., constituída em Singapura. A conta em nome da Netherton também seria, segundo a denúncia, controlada por Eduardo Cunha.
Teriam sido transferidos em ABRIL/14, USD 165.000,00 da conta em nome da Netherton para conta denominada Köpek, mantida na mesma instituição financeira, e que seria utilizada por Cláudia Cordeiro da Cruz, esposa de Eduardo Cunha.
"Embora a Petrobrás seja sociedade de economia mista, a imputação tem por objeto crimes de corrupção e de lavagem transnacionais, com depósitos no exterior de vantagem indevida e a ocultação e a dissimulação do produto do crime em contas secretas no exterior. Em outras palavras, crimes que se iniciaram no Brasil e consumaram-se no exterior. O Brasil assumiu o compromisso de prevenir ou reprimir os crimes de corrupção e de lavagem transnacionais, conforme Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção". (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. 13° Vara Federal de Curitiba. Ação penal, 505160623.2016.4.04.7000. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; PETRÓLEO BRASILEIRO S/A PETROBRÁS;
EDUARDO COSENTINO DA CUNHA. Condenação 30 de março de 2017).
Em setembro de 2016 foi declarada a perda do cargo de Deputado Federal ao réu. E em sua sentença, Eduardo Cunha é absolvido do crime de lavagem de dinheiro em relação à transferência de USD 165.000,00 da conta em nome da Netherton para a conta em nome Kopek. Porém, foi condenado por:
Corrupção passiva - pela solicitação e recebimento de vantagem indevida no contrato de aquisição pela Petrobrás.
Lavagem de dinheiro - pelo recebimento e movimentação posterior de produto de crime de corrupção, mediante condutas de ocultação e dissimulação, envolvendo as contas em nome da Orion SP e Netherton Investments.
Evasão fraudulenta de divisas - pela manutenção de depósitos não declarados no exterior.
Conclui-se que, o processo de cassação do mandato do ex-deputado Eduardo Cunha foi motivado pela declaração de que ele teria quebrado o decoro parlamentar ao mentir em depoimento na CPI da Petrobrás sobre a existência de contas na Suíça em seu nome. Porém, o réu não poderia ter a anulação de seu cargo político, visto que ele não teria feito nenhuma ocultação, o que havia na Suíça em seu nome era um Trust Fund, constituído por seu patrimônio, não pertencente a ele.
_________
NETO, SALOMÃO EDUARDO. O TRUST E O DIREITO BRASILEIRO. JURÍDICOS TREVISAN EDITORA, 2016.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. 13° Vara Federal de Curitiba. Ação penal, 505160623.2016.4.04.7000. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; PETRÓLEO BRASILEIRO S/A PETROBRÁS; EDUARDO COSENTINO DA CUNHA. Condenação 30 de março de 2017.
COSTAS, MARTINS JUDITH. REVISTA DE DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO. VOL. 12/17. P 165 - 209.JUL - SET 2017
TEPEDINO, GUSTAVO. SOLUÇÕES PRÁTICAS. VOL. 2, P. 509 - 524. NOV/2011.