Paternalismo estatal e o bem de família do fiador na locação comercial
É inaceitável que o locador suporte prejuízos financeiros em um negócio pactuado livremente, na forma da lei e sem qualquer vício, para que o fiador continue a residir em seu imóvel, fugindo à responsabilidade e obrigação de garantir.
quarta-feira, 31 de março de 2021
Atualizado às 14:59
Conforme noticiado no último dia 15 de março, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral em torno da constitucionalidade da penhora do bem de família de fiador em contrato de locação comercial.
A discussão teve início com o julgamento do RE 605.709/SP, em que se arguiu a inconstitucionalidade do art. 3º, inc. VII da lei 8.009/901 nos contratos de locação comercial, fundando-se no direito à moradia previsto no art. 6º da CF2, e no princípio da isonomia. A Primeira Turma deu provimento ao recurso, seguindo-se então dezenas de Recursos Extraordinários, culminando no reconhecimento da repercussão geral.
Pois bem. De início, o direito à moradia descrito na Constituição não se confunde com direito à propriedade, tendo conteúdo meramente programático, e há de ser garantido pelo Estado mediante eventual concessão de habitações e políticas públicas pelo Poder Executivo, e não pelo privado em suas relações com outro ente privado.
Observe-se que, não fosse a edição da lei 8.009/90, que instituiu a impenhorabilidade do bem de família, não haveria sequer de se cogitar no impedimento desta constrição, de modo que não há como se interpretar que o art. 6º da CF seria responsável por conferir esta pretensa proteção.
Não obstante, tratando-se de relação de Direito Privado, há de prevalecer a autonomia da vontade, não se justificando tamanho paternalismo estatal ao fiador, que tem plena capacidade de exercer sua liberdade contratual, também prevista constitucionalmente, bastando ao fiador, caso não queira sujeitar seu bem de família à possibilidade de penhora, que não anua com o Contrato de Locação na qualidade de garantidor.
É inaceitável que o locador suporte prejuízos financeiros em um negócio pactuado livremente, na forma da lei e sem qualquer vício, para que o fiador continue a residir em seu imóvel, fugindo à responsabilidade e obrigação de garantir o pagamento, ignorando o pacta sunt servanda.
Outrossim, desde a edição da lei 8.245/91, que incluiu o inc. VII no art. 3º da lei 8.009/90, ou seja, há 30 anos, os locadores que decidem investir o dinheiro acumulado ao longo de anos de trabalho em locações comerciais para receber uma renda que lhes sustente, acreditando na segurança decorrente da garantia fidejussória pessoal, ainda que o fiador tenha um único bem imóvel residencial (o que normalmente é a regra), estariam cobertos em eventual inadimplemento do locatário.
Acatando-se a tese de que a penhora do bem de família do fiador ofende o direito à moradia, todos os locadores que investiram seus recursos angariados ao longo da vida para aquisição de imóveis com finalidade comercial, acreditando na garantia trazida pela legislação, que lhes permite penhorar referido bem do fiador, sofrerão irreparáveis prejuízos, ofendendo-se não apenas o art. 3º, inc. VII da lei 8.009/90, como também o princípio da segurança jurídica.
Acarretaria, também, ante a insegurança do locador em receber a contraprestação devida quando inadimplente o locatário pela ausência de garantia, na derrocada dos investimentos em construções de empreendimentos comerciais e nas próprias locações desta natureza, que precipuamente geram empregos e possibilitam aos trabalhadores obterem renda afim de pagar inclusive por sua moradia, além de onerar toda a cadeia de consumo, seja pelos custos envolvidos nas demais garantias previstas em lei, seja por dificilmente serem suficientes para cobrir todo o período que uma ação de despejo leva para concluir-se.
Há hipóteses, inclusive, em que o fiador é sócio da própria empresa locatária. Ora, é completamente inaceitável que o sócio que viabilizou seu direito à livre iniciativa mediante a garantia fidejussória, alegue impenhorabilidade do bem que deu azo ao próprio Contrato, lembrando-se que ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza.
Há que se dizer que no Brasil, os devedores gozam de exacerbada proteção legal, podendo recorrer a toda sorte de expedientes para assegurar a impenhorabilidade do seu patrimônio, e mesmo quando o legislador, em rara hipótese, traz previsão normativa diversa, há quem argumente inconstitucionalidade objetivando mais uma forma de não pagar credores, sendo este um dos motivos que afastam as mais distintas formas de investimentos no Brasil, fato corroborado por estudo da Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico, que pode ser conferido aqui.
Sopesando-se então o direito à moradia, com o direito à livre iniciativa (art. 1º, caput, CF), o princípio geral da atividade econômica (CF, art. 170, caput), e a segurança jurídica, e considerando que o desenvolvimento das atividades empresariais no imóvel comercial locado incentiva por via indireta o direito à moradia, a impenhorabilidade acaba por prejudicar referido direito.
Quanto à alegada incidência do princípio da isonomia, cumpre mencionar o voto condutor do Ministro Cezar Peluso no RE 407.688, citado pelo Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto no RE 605.709/SP, no sentido de que "os direitos sociais não configuram um direito de igualdade (...) são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios. A expropriabilidade do bem do fiador tende, posto que por via oblíqua, também a proteger o direito social de moradia, protegendo direito inerente à condição de locador, não um qualquer direito de crédito".
No mesmo RE 605.709/SP, o Ministro Dias Toffoli asseverou brilhantemente que o instituto de direito civil da fiança teve sua origem no direito romano, e que "em momento algum, até a data de hoje, as regras civis imputaram ao fiador o dever de dar as mesmas garantias patrimoniais que o afiançado, ou vice-versa, tratando-se de obrigação livremente assumida pelo fiador, nos termos do art. 818 do Código Civil".
Ademais, pode o STF aplicar o mesmo raciocínio e princípio para então permitir a penhora do bem de família do locatário na ação regressiva proposta pelo fiador, ao invés de proibi-la.
No mais, referido princípio da isonomia não parece ser suficiente para sobrepor-se a todos os demais aqui referidos e à própria disposição da norma em comento.
Fato é que, na prática, a declaração de inconstitucionalidade acabaria por esvaziar e tornar inútil o instituto da fiança nas relações de locação comercial.
A título exemplificativo, é o que ocorreu com a caução de imóvel, em que se admite a alegação do bem de família, e atualmente, é de raríssima utilização.
Tendo em vista os argumentos constantes dos recursos que vêm discutindo o tema e do próprio RE 605.709/SP, acentua-se ser impossível presumir que pelo simples fato de a locação ser de um imóvel comercial e não residencial, o proprietário destinará o crédito dos alugueres para outra coisa que não sua subsistência, moradia e alimentos, caindo por terra a alegada necessidade de diferenciação entre uma e outra.
Por fim, o legislador não fez absolutamente nenhuma diferenciação entre a locação residencial e comercial no dispositivo supra mencionado.
Deste modo, a tese de inconstitucionalidade apenas para a locação comercial, por si só, implicaria verdadeiro ativismo judicial, interferindo-se na vontade do Legislativo.
Espera-se com base nestes argumentos que o STF reconheça e declare a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador nas locações comercias no julgamento do Tema 1127.
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1 Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)
2 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição