Do nacionalismo para a diplomacia das vacinas do covid-19
A diplomacia das vacinas e a pandemia do COVID-19 alterando as relações internacionais.
terça-feira, 30 de março de 2021
Atualizado às 16:23
O mês de março de 2021 marca um ano em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a doença respiratória do covid-19 como pandemia. Desde então, a doença foi responsável por impactos profundos na saúde pública e nas relações sociais e econômicas dos indivíduos. No plano internacional, a pandemia determinou significativas mudanças nas políticas exteriores dos países.
Ao longo de 2020, em meio a um processo de adaptação das relações entre as nações e a busca por um desenvolvimento de vacinas, o sistema internacional foi marcado por uma atuação individual dos Estados, inclusive da União Europeia. Ao contrário dos esforços de coordenação do G20 Financeiro em 2008 e 2009 na instituição de medidas multilaterais a reverter os efeitos da crise financeira iniciada nos Estados Unidos, a pandemia de 2020 atestou uma condução individualista dos países.
Uma expressão ficou conhecida ao longo de 2020: "vaccine nationalism" ou nacionalismo das vacinas. Os países atuaram de forma individual financiando contratos de compras de vacinas em doses superiores à população de seus países. Esse comportamento levou à concentração de vacinas em poucos países, principalmente os desenvolvidos, e a falta de ações multilaterais a garantir vacinas para países menos desenvolvidos.1 A partir do Reino Unido, que iniciou seu programa de vacinação em dezembro de 2020, muitos países da América Latina, África e Ásia ainda não começaram a vacinar e dependem da única iniciativa multilateral promovida pela COVAX, conduzida pela OMS.2
O G20 Financeiro, formado por 19 países e a União Europeia, dos quais 11 são países emergentes e 8 desenvolvidos, emitiu declarações ao longo de 2020, com o objetivo de buscar uma atuação multilateral para combater a pandemia. Contudo, houve pouca adesão das nações na condução de suas políticas externas a transpor os compromissos não obrigatórios em ações práticas.3 A pandemia do covid-19, assim como outros temas de interesse global, como o desenvolvimento, o combate às mudanças climáticas e a estabilidade financeira internacional exigem conduta coordenada dos países e das organizações internacionais a fim de alcançar resultados pragmáticos e eficazes.
Para um melhor entendimento, o Grupo dos 20 (G20 Financeiro ou somente G20) foi criado em 1999, como consequência das crises cíclicas de países emergentes, como no México (94), Leste Asiático (97) e na Rússia (98), apresentando uma estrutra de diálogo informal. A partir da crise financeira de 2008, os encontros passaram a ocorrer entre os Chefes de Estado e de Governo, na atuação de medidas concertadas de estabilidade financeira e promoção ao desenvolvimento econômico. O G20 é composto por 19 Estados e União Europeia, representando cerca de 90% do produto interno bruto mundial, 80% do comércio internacional e 2/3 da população do planeta. Todos os países que constituem o forum do BRICS - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - são partes integrantes do G20 Financeiro.4
A persistência da prática do nacionalismo das vacinas, portanto, não possui o condão de extinguir a pandemia, uma vez que países desprovidos de vacinas e com altas taxas de contaminação poderão desenvolver variantes mais resistentes, o que pode tornar as vacinas, previamente adquiridas, inadequadas para combater o covid-19. Dessa forma, um pandemia se extinguirá somente quando todos os indivíduos no mundo forem vacinados.
O ano de 2021, por sua vez, inaugura um novo termo nas relações internacionais: "vaccine diplomacy" ou diplomacia das vacinas. Não apenas liderando as projeções de crescimento dos seus produtos internos brutos (PIB) no ano de 2021 no mundo, nos valores de 12,6% para a Índia e 7,8% para a China, essas duas principais economias emergentes atuam fortemente na utilização das vacinas contra o covid-19 em suas estratégias diplomáticas.5 Utilizando-se de suas proeminentes indústrias farmacêuticas em seus territórios, China e Índia atuam fortemente na doação de vacinas para países localizados na Ásia e Pacífico e contribuem de forma significativa para a iniciativa da COVAX. Em especial, a Índia responde pela produção de 20% de todos os medicamentos genéricos no mundo e por 60% de toda a produção de vacinas globalmente.6
A atuação dos dois grandes emergentes asiáticos demonstra a prática da diplomacia em suas estratégias de política internacional em exercer maior influência na região da Ásia-Pacífico. Trata-se da utilização do "soft power" ou poder brando. Segundo Joseph Nye (2004, p. 5-6), trata-se de um poder de convencimento ou de persuasão exercido por um determinado país com o objetivo de exercer uma influência indireta no comportamento de outros países ou regiões.7
Recentemente a diplomacia das vacinas passou a ser exercida também pelos Estados Unidos. O governo Biden emprestará 2,5 milhões de doses para o México e 1,5 milhões de doses para o Canadá. Trata-se da vacina AstraZeneca que foi comprada, mas ainda não foi aprovada pela autoridade sanitária norte-americana. Como os Estados Unidos se encontram impossibilitados de utilizar essa vacina, mesmo tendo comprado grandes estoques, o governo norte-americano resolveu emprestar as doses aos seus países vizinhos, que deverão pagar posteriormente ao longo do ano de 2021.
Essa realidade dos Estados Unidos demonstra o resultado de uma política de nacionalismo das vacinas, em que um país possui milhões de doses estocadas, enquanto outros países necessitam de vacinas para imunizar a sua população.
Além disso, essa situação norte-americana trouxe a oportunidade de exercer o seu "soft power" com suas nações vizinhas, que possuem forte integração comercial, uma vez que integram o Acordo USMCA (United States-Mexico-Canada Agreement), que correspondeu à atualização do anterior acordo de criação da área de livre comércio do NAFTA (North American Free Trade Agreement) celebrado em 1994.8
O uso do "soft power", portanto, pode ser considerado como uma estratégia positiva, uma vez que gera benefícios para outros países e, principalmente, para a iniciativa multilateral da COVAX. A pandemia do covid-19 exige uma resposta global. Todavia, o uso da diplomacia das vacinas demonstra o exercício da influência de grandes países desenvolvidos e emergentes no cenário internacional, o que poderá resultar em novos arranjos entre países, bem como na criação de instituições e normas de Direito Internacional.
1 KHAN, Amir. What is 'vaccine nationalism' and why is it so harmful? Al Jazeera. 7 de Fevereiro de 2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 mar. 2021.
2 POLITICO. Rich countries 'hoarding' vaccines, says South Africa's president. 26 de janeiro de 2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 mar. 2021.
3 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES - MRE. Declaração de Líderes do G20 da Cúpula de Riade. Publicado em 22 de novembro de 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 mar. 2021.
4 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES - MRE. O Brasil no G20. Disponível em: www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/diplomacia-economica-comercial-e-financeira/15586-brasil-g20. Acesso em: 20 mar. 2021.
5 ORGANIZATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMENT - OECD. Strengthening the recovery: The need for speed. OECD Economic Outlook, Interim Report March 2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 mar. 2021.
6 DHUME, Sadanand. India Beats China at Vaccine Diplomacy. The Wall Street Journal. 18 de março de 2021Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 mar. 2021.
7 NYE JR, Joseph S. Soft Power. The Means to Success in World Politics. New York: Public Affairs, 2004.
8 KEITH, Tamara. Biden Takes First Jab At Vaccine Diplomacy, Sharing Doses With Mexico, Canada. New Public Ration - NPR. 19 de março de 2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 mar. 2021.
Thiago Almeida
Advogado e especialista em Direito Internacional do Investimento e em Parcerias Público-Privadas. Doutorando em Direito Internacional do Investimento na Faculdade de Direito da UFMG. Mestre em Direito Internacional e Graduado em Direito pela UFMG. Graduado em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Professor de MBA de Infraestrutura, Concessões e Parcerias Público-Privadas na PUC Minas. Especialista de Políticas Públicas de carreira e assessor de investimentos internacionais da Vice-Governadoria do Estado de Minas Gerais.