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Incitou a prática de crime o professor universitário demitido após falar durante aula remota que 'se estupro é inevitável e iminente, relaxe e aproveite'?

Conduta do professor universitário em sala de aula não pode ser considerada criminosa.

terça-feira, 30 de março de 2021

Atualizado às 17:09

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

No contexto imposto pela pandemia da COVID-19, as aulas remotas, através das plataformas tecnológicas, tem sido a saída para oferecer a continuidade da educação em seus mais diversos setores: da educação infantil ao ensino universitário, se apresentam como alternativa capaz de reduzir os impactos ocasionados durante o processo de aprendizado.

Contudo, se por um lado o recurso tecnológico traz o benefício de oferecer essa continuidade que, num primeiro momento, havia sido interrompida ante a necessidade do isolamento social como medida de contenção para uma doença letal que se espraia em proporções ainda desconhecidas, lado outro fez emergir uma exposição até então pouco experimentada pelos docentes, vez que o conteúdo do material produzido na aula remota fica à disposição através de plataformas que permitem o armazenamento, sendo, pois, fonte de ulteriores consultas e checagens.

Cumpre esclarecer que ensino remoto se difere de ensino à distância (EAD): naquele, as aulas são ao vivo, simulando o encontro presencial; neste, as aulas são gravadas. Assim, diferentemente do ensino à distância, no ensino remoto, tal qual acontece com o ensino presencial, o docente sofre um déficit de produtividade na automação da palavra entre o momento de "pensar no que vai falar" e o momento de efetivamente "falar", déficit esse inerente ao ineditismo do "ao vivo".

Tudo isso com uma diferença basilar: se no ensino à distância (EAD) existem as possibilidades de apagar, editar e repetir, na aula remota tais possibilidades são reduzidas na medida em que os alunos acessam o conteúdo como primeiros "avaliadores" da disciplina ministrada.

Aos 12 dias de março de 2021, o noticiário nacional revelou o fato de um professor universitário, durante aula remota para os alunos do curso de Engenharia da Produção, na disciplina de Ergonomia, da Iniguaçu Centro Universitário, de União da Vitória, na região sul do Paraná, estava dando um exemplo sobre casos em que empresas precisam demitir pessoas que não conseguem se adaptar a novos processos e novas tecnologias, ocasião em que proferiu o seguinte comentário: "É algo, meu amigo, que você tem que se adaptar. Desculpe, meninas, sei que é chulo o que eu vou dizer, mas é aquele ditado: se o estupro é inevitável e iminente, relaxe e aproveite" (G1, 2021).

Após não se conformarem com o pedido de desculpas que veio na aula da semana subsequente, o vídeo contendo a fala, gravada por aparelho celular, foi postado nas redes sociais por alunos e logo se espalhou, gerando a imediata demissão do professor.

Conforme noticiado, uma aluna disse que:

Um colega perguntou o motivo de os idosos não conseguirem se adaptar às novas tecnologias. O professor respondeu que, quando você é chefe ou dono de uma empresa e precisa demitir, não há escolha e deve mandar embora. Nisso, ele usou essa infeliz frase para dizer que o funcionário não tinha o que fazer e sim apenas aceitar, utilizando essa analogia. (G1, 2021)

Para além do impacto moral, cuja análise não é objetivo do presente texto, revela-se relevante analisar, sob o prisma do direito penal, se a conduta do professor pode se amoldar a alguma das infrações penais catalogadas no Código Penal. É dizer: ao proferir as palavras que resultaram em tamanha revolta, incorreu o professor na infração penal de incitação ao crime, prevista no artigo 286 do Código Penal?

Nos termos do artigo 286 do Código Penal, a conduta de incitar, publicamente, a prática de crime é punida com pena de detenção, de 3 (três) meses a 6 (seis) meses, ou multa.

Noutras palavras, é desvaliosa para o legislador criminal a conduta delituosa de incitar (induzir, provocar, estimular, instigar), publicamente, a prática de determinado crime.

Não obstante, é de conhecimento comum que o estupro, conduta que atenta contra a dignidade sexual, é de igual maneira catalogado como infração penal, conforme preceitua o artigo 312 do Código Penal.

Ocorre que, nas lições de Sanches (2020, p. 737), para o cometimento daquela infração prevista no artigo 286 do Código Penal, impõe a doutrina o cumprimento do seguinte requisito: para que se caracterize o delito não basta que o agente incite publicamente a prática de delitos de forma genérica, devendo apontar fato determinado.

Segundo Bitencourt (2019, p. 477), "é indispensável, todavia, que se trate de um fato delituoso determinado (e não de instigação genérica a delinquir)". Por fato determinado, entende-se, a título de exemplo, certo estupro, e não estupros genericamente imaginados.

Sendo classificado, quanto às formas ou meios de execução, como crime de forma livre, é irrelevante o meio utilizado para incitar. No entanto, não bastará, para a tipificação penal, uma frase isolada destacada de um discurso ou de um escrito, que deve ser considerado no seu sentido global.

Cumpre mencionar ainda que, ante o silêncio do legislador quanto à previsão de punição para a modalidade culposa, é de se concluir que o delito em comento só é punido a título de dolo, representado pela vontade consciente de incitar a prática de crime ou ao menos de assumir o risco de produzi-lo.

Assim, o agente deve dirigir sua vontade para o fim de excitar a prática criminosa, tratando-se de elemento indispensável para que o crime possa ser reconhecido.

No caso em análise, à luz dos elementos coletados a partir do vídeo que fora veiculado, não é demais concluir que a conduta do professor foi incapaz de produzir reação penal, vez que, por não ter sido meio idôneo para produzir a tipicidade material exigida pelo tipo penal, tal conduta não goza de relevância do ponto de vista jurídico-penal.

Conclui-se, portanto, que, se do ponto de vista moral e, ademais, se em relação às diretrizes que disciplinam a relação contratual privada, a conduta do docente motivou decisões que impactaram negativamente na sua vida, no que diz respeito ao direito penal não encontra guarida conclusão no sentido de ter sido criminosa a sua conduta por ausência do requisito essencial à caracterização da tipicidade, elemento indispensável à configuração do crime segundo o conceito analítico do crime.

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QUAQUIO, J; BRODBECK, P. Professor universitário é demitido após falar durante aula remota que 'se estupro é inevitável e iminente, relaxe e aproveite'. G1, 20 de mar. 2021. Acesso em: 23 de mar. 2021.

CUNHA, Rogério Sanches Direito Penal - Parte Especial. Salvador: jusPODIVM, 12ª ed, 2020.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal - Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 2019, v. 2 (25ª ed).

 

Álvaro Augusto Diniz Queiroz Carvalho

Álvaro Augusto Diniz Queiroz Carvalho

Advogado criminalista, pós-graduado em Ciências Criminais; professor das cadeiras criminais da FAI (Faculdade Irecê).

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