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Interpretando bens essenciais na pandemia: o cliente, a geladeira e o jurista brasileiro

Devemos refletir sobre como adequar a interpretação às minúcias da realidade. Aqui, partindo de caso concreto envolvendo geladeira, aborda-se o significado de "bem essencial" no direito do consumidor.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Atualizado às 12:32

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Tenho treinado minha atuação profissional em um escritório localizado no interior do Rio de Janeiro. Certo dia, me passaram um caso envolvendo uma pessoa que estava a mais de um mês com a sua geladeira quebrada e que, sem conseguir acesso à assistência técnica do produto ainda abrangido pela garantia, decidiu processar a empresa que fabricou e vendeu o referido eletrodoméstico.

Das orientações que recebi, uma que destaco foi a de utilizar a jurisprudência para demonstrar, ao magistrado, como ele "deveria" interpretar aquele caso. Nesse sentido, me passaram algumas decisões que delineavam a geladeira como sendo um bem essencial.

Até , nada aparenta ser relevante nessa situação. Te convido, por isso, a ir além da aparência.

Pensemos, assim, nos exemplos de carnes e laticínios: tratam-se de alimentos que perecem rapidamente sem o resfriamento adequado e fazem parte da alimentação cotidiana/básica da maior parte dos seres humanos.

Na jurisprudência sedimentada em contexto anterior à pandemia, a essencialidade da geladeira sempre se baseou nisso e, no geral, nas comodidades e benefícios que consegue proporcionar à vida corrida que existe em nossa rotina de trabalho e compromissos incessantes. O que mudou?

Pois bem, se havia essencialidade baseada nessas questões, quero atentar ao fato de que não podemos nos limitar a esse entendimento, porque a essencialidade do referido eletrodoméstico alcança outros contornos no contexto atual; contornos esses que devem, obrigatoriamente, fazer parte da nossa interpretação.

Para chegar nessa percepção, é necessário refletir sobre estarmos todos inseridos em uma pandemia que, infelizmente, se arrasta de maneira mais agravada em nosso país do que nos demais. Dias atrás, por exemplo, surgiu o número preocupante de 1.972 pessoas mortas em 24h, apenas no Brasil; e, como sabemos, os gravames do contexto brasileiro são, em grande parte, fruto da desinformação e dos incentivos indevidos de sujeitos específicos que tanto fomentam aglomerações quanto afastam, da mente das pessoas, o significado de importância que deveria acompanhar a noção de distanciamento social.

Coloque, agora, a sua visão - do contexto da pandemia - junto de algumas informações que mencionei anteriormente: a geladeira, os alimentos que perecem, a alimentação cotidiana, o caso concreto. Consegue perceber onde quero chegar? Se não, eu explico.

Logo que vi o caso concreto ao qual me referi inicialmente, à mente imediatamente me veio um sujeito que, sem geladeira para conservar produtos essenciais à alimentação cotidiana, estava sendo obrigado a sair diariamente para comprá-los. Se antes da pandemia isso seria um grande inconveniente, o que conclui foi que no contexto atual esse sujeito estava sendo obrigado a expor-se, diariamente, ao risco de contágio.

Tomando dessa perspectiva, vê-se que o direito não pode tratar a essencialidade da geladeira (e outros bens essenciais) da mesma forma que tratava a poucos anos atrás. Hoje, o que temos é que a essencialidade de determinados eletrodomésticos deve surgir de interpretação que observe o caráter relevante desses bens junto das noções sobre diminuição de riscos de contágio à doença que diariamente (atualmente) mata quase duas mil pessoas e lota hospitais do Brasil inteiro.

Obviamente, longe de ser algo limitado às relações de consumo, há um naipe de situações relevantes que também reclamam suas adequações ao contexto da pandemia. Todavia, centrando o foco na geladeira, eletrodoméstico do caso concreto que me fez chegar em conclusões específicas; tê-la utilizado como exemplo para iniciar a reflexão do presente texto me faz querer terminar da mesma forma, afinal, sei que em algumas pessoas terá surgido a vontade de saber um pouco mais sobre como lidei com o caso do escritório.

Assim, destaco que um dos argumentos que utilizei, para defender o direito do cliente, foi no sentido de que: sem o conserto da geladeira, a empresa X estava impedindo a possibilidade do sujeito de fazer aquilo que o nosso senso comum bem conhece através da expressão "compra de mês".

Pode parecer bobo eu ter mencionado isso, mas os prejuízos desse obstáculo (que impede realizar as compras de mês) não são. Um deles: provocam-se mais interações sociais em uma época onde deveríamos incentivar o distanciamento e o isolamento entre sujeitos.

Essa é a essencialidade da geladeira que, ao meu ver, atualmente intensifica-se 1) tanto pela sua maior vinculação às temáticas da saúde/vida 2) quanto pela maior abrangência dos prejuízos de sua ausência, eis que hoje a falta do eletrodoméstico gera malefícios que ultrapassam a vida individual do cliente e chegam na sociedade como um todo.

Em resumo: a geladeira, enquanto bem essencial, elevou-se na sua essencialidade.

Bruno Shayon

Bruno Shayon

Bacharel em Direito recém-formado (2021) na Faculdade Federal Fluminense.

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