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O "puxadinho tributário" e as contribuições sociais das instituições financeiras

Essa tendência característica dos tributos sobre o consumo agrava a complexidade do Sistema Tributário.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Atualizado em 30 de novembro de 2020 08:15

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A unificação da contribuição PIS e da Cofins, por ora menos declamada, que pretende instituir a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), visa, exclusivamente, a simplificação (eficiência tributária). Para tanto, a instituição da não cumulatividade plena, a partir da sistemática "imposto x imposto", vem defendida para resolver um dos mais controversos temas do contencioso tributário federal: a caracterização do que se deve entender por "insumos".

Ocorre que, para boa parte dos grandes contribuintes da PIS/Cofins, essa não é a questão mais controvertida e dependente do letárgico crivo judicial para pacificação. Com a tendencial e gradativa transformação da PIS/Cofins em um tipo novo (e distorcido) de tributo sobre o consumo, as contribuições vêm se tornando cada vez mais complexas. Isso porque os ajustes destinados a atender as demandas extrafiscais e aqueles tendentes a adequar a tributação do consumo à capacidade contributiva individual ou setorial acabam sendo feitos de forma isolada e tópica. Assim, essas adaptações acabam provocando verdadeiros "puxadinhos tributários", dando ensejo a regimes específicos e particulares dentro de um ordenamento estruturado, a princípio, para ser uniforme. Essa tendência característica dos tributos sobre o consumo agrava a complexidade do Sistema Tributário, sobretudo, quando se tem um Estado nacional que conta com, pelo menos, um tributo municipal (ISS), um estadual (ICMS) e três federais (IPI, PIS/Cofins) que tem natureza de tributos sobre o consumo.1

Da mesma forma, nunca é demais lembrar que a tributação sobre o consumo, em detrimento daquela sobre a renda e sobre o patrimônio, acaba por favorecer a regressividade da tributação (justiça tributária). Exatamente por isso é que se justifica certa desconfiança com propostas de reforma tributária que privilegiem tão somente a questão da simplificação dos tributos sobre o consumo. Como se não bastasse, essa necessidade de ajustes acaba redundando em novos "puxadinhos tributários" que terminam enchendo o Judiciário com novas demandas.2 E assim, o inseguro e infernal "manicômio tributário" jamais se livra de seus demônios!

Foi fazendo "puxadinhos tributários" que se edificou a tributação das instituições financeiras pela União Federal. Até 1998, elas não eram tributadas pela Cofins e o recolhimento do PIS já era específico e majorado. Da mesma forma, até então, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) a elas aplicável também era majorada. O fato de a atividade das instituições financeiras não gerar uma receita tributária significativa de ISS, nem (obviamente) de ICMS, deixa uma espécie de "vácuo tributário" que aguçou o interesse arrecadatório do Fisco federal, que vislumbrou, aí, capacidade de pagar tributos. A questão que se chama a atenção, porém, diz respeito à base tributária utilizada para perseguir essa capacidade econômica.

Como consabido, as contribuições sociais estão sujeitas a uma regulação menos rigorosa que a aplicável aos impostos (uma espécie de "sistema tributário paralelo das contribuições"). Além disso, o produto de sua arrecadação não é partilhado com Estados ou Municípios. É exatamente por isso que a União, ao longo dos anos, contornando a arquitetura do Sistema Tributário Nacional, foi dando preferência ao uso das contribuições como mecanismo arrecadatório, quando, na sua essência, elas têm uma função redistributiva e não se prestam, adequadamente, para encher as burras do Erário. Explica-se: por terem o produto da sua arrecadação vinculado ao financiamento do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da Seguridade Social, as contribuições pagas por aqueles que possuem capacidade contributiva serve (ou deveria essencialmente servir), em grande parte, para financiar os serviços sociais daqueles economicamente menos favorecidos. Por isso que o princípio da solidariedade, que firma a natureza redistributiva desses tributos, deve ser entendido como vetor norteador do custeio da Seguridade Social.

A transformação das contribuições sociais em tributo fundamentalmente arrecadatório começou em 1994 com a instituição do Fundo Social de Emergência (FSE), incluído no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT/CRFB/1988) pelo art. 72. A redação original do dispositivo determinava, entre outras coisas, que integrava o FSE a parcela da arrecadação resultante da majoração da CSLL das instituições financeiras (por isso isentas da Cofins) e a parcela do produto da arrecadação da contribuição de que trata a LC 7/70 (PIS) devida pelas instituições financeiras. O FSE, que deveria viger apenas nos exercícios de 1994 e 1995, foi reinstituído pela EC 10/96, que o transformou no Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), destinado a viger de 1/1/96 até 30/6/97. Ao mesmo tempo que se estabelecia que parcela da arrecadação do PIS deveria ser destinada a esses fundos, a legislação firmava a alíquota de 0,75% para o período e estabelecia a base de cálculo ("receita bruta operacional)" similar a definida pela legislação do imposto sobre renda. A EC 17/97, na sequência, prorrogou o FEF até 31/12/99. Entretanto, a desvinculação do produto da arrecadação das contribuições sociais não se extinguiu em 1999. A EC 27/00 criou a DRU, que foi prorrogada sucessivamente pelas ECs 42/03, 56/07, 68/11 e 93/16. Esta última emenda prorrogou a DRU até 31/12/23.3

O que caracteriza as contribuições sociais é essencialmente a vinculação do produto de sua arrecadação a uma finalidade social. Eis a sua nota eidética e distintiva dos impostos. Nesse compasso, a desvinculação de parcela da receita serviu para desfigurar o PIS/Cofins, que foi, pouco a pouco, se transmutando em uma espécie de "imposto" (fraudado) sobre o consumo. Nesse mesmo sentido, buscando ampliar sua incidência de forma a alcançar um espectro maior de negócios, a base "faturamento" foi sendo transformada em base "receita". E, assim, por vias transversas, as contribuições sociais acabaram por tributar o consumo de forma ampla.

Em 1998, foi promulgada a lei 9.718, que pretendeu densificar o disposto no art. 195, I, b, da CRFB/88, remetendo a definição de "faturamento" ao conceito de "receita bruta" de que trata o art. 12 do decreto-lei 1.598/77. Além disso, previu no § 1º do seu art. 3º que "[e]ntende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas". O § 1º do art. 3º da lei 9.718/98 promoveu verdadeira ampliação da base de cálculo das referidas contribuições sociais, como foi devidamente reconhecido pelo STF, que se pronunciou pela inconstitucionalidade da alteração legislativa.4

Salvo por singelas exceções, as instituições financeiras não praticam a venda de bens, nem atuam essencialmente prestando serviços, o que causa verdadeiro desconforto na exigência de PIS/Cofins dessas pessoas jurídicas. Nesse compasso, não é de se estranhar, portanto, o volume de disputas ocasionadas pela não conformação das atividades prestadas pelas instituições financeiras ao conceito anterior de faturamento. Mesmo com as alterações promovidas pela lei 12.973/14, essas dificuldades não foram superadas. Nesse diapasão, o PL 3.887/20 vem propondo a criação da CBS mantendo a tributação diferenciada do setor. Da mesma forma, não se pode negar que a apuração de forma diferenciada deve ocorrer em razão das especificidades que dificultam a possibilidade de tributação do valor adicionado em cada operação.5

Apesar dessas dificuldades, desde 1998, a lei 9.718/98 prevê um regime sui generis de tributação de PIS/Cofins para o setor. A MP 1.807/99 alterou os artigos 1º e 2º da lei 9.718/98 para reduzir a alíquota das contribuições devidas pelas instituições financeiras, empresas seguradoras e de capitalização e entidades de previdência privada, para permitir a "inclusão dessas entidades no rol de contribuintes da Cofins".6 Além disso, a MP incluiu o § 6º ao art. 3º da lei 9.718/98, firmando as "deduções e exclusões admitidas para fins de determinação da base de cálculo da contribuição para o PIS/Pasep e Cofins relativamente às instituições (financeiras)".

No âmbito da RFB, o art. 3º, § 6º, da lei 9.718/98, foi regulamentado pela IN RFB 37/99 e, logo em seguida, pela a IN RFB 247/02. Ambas traziam entre os seus anexos a lista de contas das instituições financeiras que deveriam compor a base de cálculo das contribuições. Entretanto, essa lista vinha lastreada em uma concepção ampla de faturamento (que foi julgada inconstitucional pelo STF). Por isso, a IN RFB 1.285/12 revogou a IN RFB 247/02 e deixou de especificar, em anexo, as contas que deveriam compor a base de cálculo das contribuições. Hoje, está em vigor a IN RFB 1.911/19, que regulamenta a apuração, a cobrança, a fiscalização, a arrecadação e a administração do PIS/Cofins e que, em seu art. 668, prevê as exclusões e deduções autorizadas, de forma muito semelhante ao que vem estampado na lei.

De toda forma, não há clareza sobre o que deve compor o "faturamento" das instituições financeiras, o que apenas será decidido pelo STF no julgamento do RE 609.096. Entretanto, a opacidade é maior ainda (e não há previsão de apreciação da questão pelos Tribunais Superiores) no que diz respeito à amplitude da expressão "despesas incorridas nas operações de intermediação financeira", constante da alínea "a" do § 6º do art. 3º da lei 9.718/98.

A utilização de conceitos (jurídicos indeterminados) como "despesa" e "intermediação financeira" dão ensejo a discussões muito semelhantes às percebidas com relação àquela em torno da ideia de "insumos", própria e característica da sistemática não cumulativa de recolhimento das contribuições sociais. O simples fato de a lei autorizar essas deduções da base de cálculo, aparentemente mais amplas que aquelas permitidas para os contribuintes em geral submetidos ao regime cumulativo, permite vislumbrar certo tratamento "tributário intermediário". Isso porque as empresas que permaneceram no regime cumulativo não ingressaram no modelo não cumulativo, em grande parte, porque não poderiam contar com insumos suficientes para justificar o incremento das alíquotas que a migração para a nova sistemática demandou. Por outro giro, em homenagem à isonomia, as alíquotas majoradas aplicadas às instituições financeiras reclamam o afastamento de determinadas despesas da base de cálculo das contribuições.

Foi por isso que o tratamento específico legalmente desenhado para as instituições financeiras acabou por ser esboçado tal como um "puxadinho tributário" mal arranjado. Esse modelo disforme foi assim traçado para que a União pudesse capturar recursos por meio do PIS/Cofins, de alguma forma, desse segmento econômico, por ter aí vislumbrado indícios de capacidade econômica. O intuito arrecadatório fez o ente federal torturar a logicidade do Sistema Tributário.

O que se verifica na prática é que o tratamento dado pelas auditorias, pela RFB e, de forma ainda incipiente, pelos órgãos julgadores é tópico, ou seja, as deduções da base de cálculo são avaliadas de forma casuística, conta a conta, sem firmar uma delimitação conceitual do que deve ser entendido como "despesa incorrida nas operações de intermediação financeira". Na realidade, tomam, em geral, a ideia de "essencialidade" própria para se avaliar a possibilidade de utilização de um "insumo" como crédito no regime não cumulativo e a transportam, de forma mal adaptada, para um regime que é cumulativo. Obviamente, a solução encontrada está longe de ser adequada, sobretudo porque não se está no regime de apuração não cumulativo.

Na aplicação da ideia do que seja "despesa incorrida nas operações de intermediação financeira" não cabe o "juízo de exclusão" (verificação de essencialidade) pensado para a ideia de "insumo". O regime é cumulativo e a exclusão da base de cálculo não reclama a existência de um "insumo". A ideia de "despesa" é, indubitavelmente, muito mais ampla do que a de "insumo"! Nesse compasso, ao se tributar operações de intermediação financeira, as despesas a serem consideradas devem se submeter a um juízo de "inerência" e não de "essencialidade". Obviamente, uma despesa pode ser adequada e inerente à operação de intermediação financeira, por opção do agente, sem ser essencial e, nesse caso, não deve compor a base de cálculo. A exclusão das despesas incorridas, com toda clareza, deve ser mais ampla.

A RFB acaba definindo com sua interpretação que, costumeiramente tende a favorecer a arrecadação, o que deve ser considerado "despesa incorrida nas operações de intermediação financeira". Isso porque não existe uma densificação normativa adequada que possa ser tomada como referência, porque a maioria das normas que tratam do assunto não são jurídicas e, tampouco, dizem respeito a tributação, mas são normativos expedidos, sobretudo, pelo próprio Banco Central do Brasil (Bacen).

A distorção não ocorre apenas no regime aplicável às instituições financeiras. Os setores submetidos ao regime monofásico, da mesma forma, contam com "microrregimes" ajustados, como acontece no caso do setor automotivo. Para complicar, existem, ainda, diversos setores submetidos tanto ao regime cumulativo quanto ao não cumulativo, como acontece com o setor de transporte aéreo.

Curiosamente, parece que a complexidade é mesmo inerente à tributação do consumo e decorre das necessidades de ajustes, que ocorrem em um ambiente sujeito ao princípio da legalidade reforçada. Basta ver que, no caso das contribuições sociais, a competência é apenas da União. Portanto, as justificativas dadas no sentido de que a complexidade decorre da possibilidade de "guerra fiscal" entre os entes federados, como apontado para o ICMS e ISS, não encontra amparo na realidade.

Nesse sentido, fica no ar uma pergunta: criando ou não um IBS ou uma CBS, o novo tributo seria capaz de afastar a possibilidade de "puxadinhos tributários", no correr dos anos? A resposta parece mesmo ser negativa.

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1 A bem da verdade, a União vem aos poucos solapando a base consumo, invadindo e usurpando a competência tributária dos entes subnacionais.

2 Como já escrevemos em: O reformismo tributário no afogadilho da pandemia

3 Alegando fraude à Constituição pela sucessiva prorrogação da DRU, para driblar a repartição de receitas com os Estados e Distrito Federal, está em trâmite no STF a ADPF 523, sem previsão de julgamento.

4 STF. Plenário, RE 390.840/MG, Relator Min. Marco Aurélio, DJ 15/8/06, p. 25.

5 Nesse sentido, Exposição de Motivos nº 00274/2020 ME, p. 59, item 14.7. Disponível clicando aqui. Acesso em: 25/9/20.

6 Cf. Exposição de Motivos 85/MF. Disponível clicando aqui. Acesso em: 2/9/20.

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 *Onofre Alves Batista Júnior é sócio Consultor do Coimbra & Chaves Advogados. Professor de Direito Público da graduação, mestrado e doutorado da UFMG. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos. Doutor em Direito e mestre em Ciências Jurídico-Políticas.





 *Paulo Roberto Coimbra Silva é sócio fundador do Coimbra & Chaves Advogados. Professor de Direito Tributário e Financeiro da UFMG. Doutor e mestre em Direito Tributário e pós-graduado pela Harvard Law School.





 *Marina Soares Marinho
é sócia do Coimbra & Chaves Advogados. Professora de Direito Tributário e Financeiro da UFMG e da IEC/PUC/MG. Doutoranda e mestre em Direito Tributário pela UFMG.



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