Implicações do covid-19 nos repasses públicos da lei 13.019/14 ao terceiro setor
Priorizando os fundamentos introduzidos pela lei 13.019/14 é possível, justificar a manutenção dos repasses ao terceiro setor e minimizar os impactos sociais durante o enfrentamento da pandemia.
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Atualizado às 09:15
O reconhecimento do estado de calamidade pública, pelo Decreto Legislativo nº 06/2020, e, da situação de emergência de saúde pública, pela lei federal 13.979/20, em decorrência da pandemia do COVID-19, têm gerado incontáveis consequências econômicas e contratuais, exigindo adequações e repactuações nas relações de direito público e privado.
Na seara do direito público, os administradores e gestores foram compelidos à promoverem adequações orçamentárias a fim de otimizarem a destinação de recursos para o enfrentamento da crise
Contudo, quando se trata de recursos públicos destinados para repasses às organizações da sociedade civil, regulados pela Lei Federal nº 13.019/2014, com redação dada pela Lei nº 13.019/2015, eventual contingenciamento carecerá de análise diferenciada daquelas afeitas aos contratos administrativos, devido às suas peculiaridades.
A Lei nº 13.019/2015 também intitulada como "marco regulatório do terceiro setor" estabelece o regime jurídico das parcerias públicas com as organizações da sociedade civil, disciplinando os termos de colaboração, fomento e acordos de cooperação e, passou a vigorar para os municípios somente a partir de 1º de janeiro de 2017, propiciando a adaptação dos mencionados entes ao novo regramento.
As organizações sociais desenvolvem, paralelamente à atividade estatal, ações de interesse público, constituindo entidades privadas sem fins lucrativos, com projetos voltados à educação, pesquisa, cultura, assistência social, meio ambiente, saúde, dentre outros.
Ao regime jurídico da Lei 13.019/2014, aplicam-se os princípios da legalidade, legitimidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade, eficiência e eficácia, por expressa disposição de seu artigo 5º, "caput", que visam a assegurar a promoção do desenvolvimento local, regional e nacional, inclusivo e sustentável; a valorização da diversidade cultural e da educação para a cidadania ativa e a promoção e defesa dos direitos humanos.
Não obstante parte da doutrina inclua as parcerias como espécie de contrato administrativo lato sensu, sua natureza distinta não se confunde com o contrato administrativo em sentido estrito, tanto que o art. 84 da Lei n° 13.019/2014 veda expressamente a aplicação da Lei Federal nº 8.666/1993, que "institui normas para licitações e contratos da Administração Pública", às parcerias por ela abrangidas.
Diversamente do que ocorre nos contratos, a parceria não se exaure com a mera entrega de um bem ou serviço, justamente, devido ao interesse público intrínseco que ela abarca ao desenvolver ações de longo prazo que, originalmente, seriam atribuídas ao Estado. Os atores, que na relação contratual teriam interesses opostos, na parceria são denominados partícipes e se unem em prol do mesmo objetivo.
O art. 6º da Lei n° 13.019/2014, em seu inciso I, prevê, dentre outras diretrizes do regime jurídico da parceria, a promoção, o fortalecimento institucional, a capacitação e o incentivo da sociedade civil para a cooperação com o Poder Público.
Em 2019, atuavam no Brasil 50.831 organizações sociais com objetivos voltados à assistência social; 33.052 com finalidade para educação e pesquisa, e, 10.907 na área da saúde.1
Ao contrário da solução encontrada para os contratos administrativos, nos quais a revisão é uma possibilidade legalmente e expressamente prevista2 e, encontra consonância com o interesse público atual, o contingenciamento dos repasses decorrentes de termo de fomento ou de colaboração vigentes pode se revelar medida antieconômica e ineficiente, precipuamente em áreas sensíveis como saúde e assistência social, que suportarão de imediato os impactos da pandemia.
A revisão do plano de trabalho para redução de valores e metas tem amparo no art. 57 da Lei n° 13.019/2014, e poderá ser formalizada por termo aditivo ou por apostilamento ao ajuste original.
O Decreto Federal nº 8.726/16, que regulamenta as parcerias celebradas pela União, prevê, no art. 43, inciso I, a redução dos repasses, sem limitação do montante, mediante termo aditivo e anuência da organização parceira, mantido o objeto.
Contudo, a Lei n° 13.919/14 é omissa acerca da possibilidade de suspensão dos repasses em hipóteses de emergência ou calamidade pública, admitindo a possibilidade de retenção dos recursos somente nas hipóteses do art. 48, incisos I, II e III, quando houver evidência de irregularidades na utilização da parcela anterior, desvio de finalidade, inadimplemento das obrigações e inércia pela organização da sociedade civil na adoção de medidas saneadoras exigidas pela Administração ou pelos órgãos de controle.
Haverá, contudo, situações nas quais o desenvolvimento do plano de trabalho estabelecido no termo de fomento ou de colaboração será temporariamente afetado pela restrição de aglomeração de pessoas, e, mesmo assim, a redução ou a paralisação temporária das atividades, não se enquadrarão necessariamente nas causas que justificariam a retenção das parcelas de repasse.
Aos administradores e gestores públicos caberá a análise casuística da manutenção dos repasses, em consonância com as normas e princípios de boa governança e gestão proba dos recursos públicos.3
A revisão de valores, ainda que nos moldes admitidos pela lei, poderá implicar em prejuízo incontestável à retomada dos projetos desenvolvidos e estaria em dissonância com o escopo da lei do marco regulatório, que estimula, dentre outros quesitos, o fortalecimento institucional.
Uma alternativa conciliatória para propiciar aos entes parceiros equilíbrio entre o repasse e o controle de resultados4, seria a supressão dos valores destinados ao custeio de despesas variáveis que sofrerão diminuição com a suspensão temporária ou redução das atividades presenciais do projeto em execução, tais como alimentação, transporte, despesas com concessionárias de serviço público, etc.
O Poder Público poderá optar em efetivar o repasse integralmente, e, no momento da prestação de contas, apurar o montante de redução de despesas variáveis, que permanecerá aplicado na conta corrente específica da parceria e devolvido por ocasião da conclusão, denúncia, rescisão ou extinção do termo de fomento ou de colaboração5 ou, formalizar a mencionada redução mediante aditamento ao plano de trabalho original.6
Outra problemática enfrentada pelos gestores, é como proceder nas hipóteses em que o recurso público se destina exclusivamente ao custeio das despesas com pessoal, contratado pela organização social, para desenvolvimento do plano de trabalho7.
A empírica, contudo, revela que, especialmente, nas parcerias no âmbito dos municípios, o custeio de despesas com pessoal é uma constante, por ser um dos elementos que mais oneram e inviabilizam os projetos sociais.
A revisão dos valores, admitida pelo art. 57 da lei de regência, implicará em demissão de funcionários, suspensão de contratos de trabalho ou redução de jornada e salário, agregando nas hipóteses de rescisão, custo desnecessário, que, ainda que provisionado no plano de trabalhado, irá dissipar recursos no momento em que se busca justamente sua contenção, além de interferir negativamente nas metas da parceria, fomentando estatística negativa do impacto social e econômico da pandemia.
No Brasil, de acordo informação publicada no site Observatório do Terceiro Setor, mais de 2 milhões de pessoas são empregadas pelas organizações da sociedade civil.8
Alternativas mais flexíveis, como redução de jornada de trabalho, concessão de férias coletivas, antecipação de férias e feriados, utilização de banco de horas, e, quando possível, a adoção do trabalho remoto, devem ser privilegiadas.
Com as ferramentas tecnológicas à disposição, e uma parcela de criatividade, os projetos que demandam atendimento presencial podem ser continuados à distância, desde que aprovados pelos gestores e respectivas comissões de monitoramento.
Sob tais argumentos, os fundamentos da gestão pública democrática, participação social, fortalecimento da sociedade civil e transparência na aplicação dos recursos públicos, decorrentes do art. 5º da lei do marco regulatório, se fundem com os fundamentos da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, e objetivos de construir uma sociedade livre, justa solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades regionais e sociais.
Caberá ao administrador a árdua tarefa de conciliar os mencionados objetivos com as limitações orçamentárias que o impacto da pandemia causou nas receitas públicas, harmonizando o pleno atendimento do interesse público, com a necessidade de adequação de custos.
Na visão dos otimistas, a crise traz consigo a possibilidade de revisar antigos padrões que propiciam, num momento posterior, o desenvolvimento das relações sociais e institucionais. De fato, a história nos traz exemplos que convalidam esse argumento.
Em tempos de incertezas, a normatização do regime jurídico das parcerias se revela em nítido e vitorioso avanço, mas a valorização de seus princípios basilares, pelos administradores públicos e gestores no enfretamento da pandemia, será uma etapa crucial para a consolidação do terceiro setor como instrumento de gestão pública democrática.
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1- Disponível em: Dados e Indicadores. Acesso em: 20/04/2020.
2- Art. 65, da Lei 8.666/93: "Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências."
3- O art. 77, altera o art. 10 da Lei 8.429/1992, que "Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências".
4- Art. 6º, II;
5- Art. 52;
6- Art. 57;
7- Art. 46, I;
8- Disponível em Terceiro Setor emprega mais de 2 milhões de pessoas no Brasil. Acesso em: 20/04/2020.
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*Renata Aparecida Miranda Teodoro é advogada, Graduada pela FDSBC - Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo - SP; Pós-graduada em Processo Civil pela Faculdade Damásio de Jesus; Pós-graduanda em Direito Administrativo pela PUC-MG; Procuradora do Município e Presidente da Comissão de Avaliação e Monitoramento das Parcerias do Terceiro Setor em Vargem Grande Paulista - SP.