Direito de família em tempos de covid-19
Com a pandemia causada pelo coronavírus há quase três meses, muitos direitos foram afetados. É preciso, então, adequar as relações jurídicas, principalmente as de família.
segunda-feira, 13 de julho de 2020
Atualizado às 14:00
Em tempos de pandemia por coronavírus, que causa a doença respiratória aguda chamada de covid-19, tudo está diferente. Seja pelo isolamento social, pela proibição de funcionamento de determinados estabelecimentos, seja pelo novo normal, que de normal não tem nada. Certo é que já estamos há um bom tempo de quarentena, mais precisamente, desde 23.03.20, quando o Governo do Estado de São Paulo editou o decreto 64.881.
As medidas de contenção da disseminação do vírus afetaram todos os seguimentos, sem exceção. Com o Direito não foi diferente.
Uma das maiores dúvidas que chegam até nós em nosso escritório é sobre como fica o Direito de Família durante a pandemia. Como ficam as visitas dos pais separados, quando temos que ficar isolados e evitar contato? Como ficam os pagamentos das pensões alimentícias, quando o alimentante perdeu o emprego, teve o contrato de trabalho suspenso ou carga horária reduzida?
Primeiramente, importante salientar que não há qualquer medida excepcional criada pelo Poder Legislativo para regulamentar as questões de família nesta época, como o fizeram com benefícios de incapacidade, auxílios emergenciais e facilitação e concessão de financiamentos. Desta forma, as regras que continuam norteando o direito de família são o Código Civil, Lei de Alimentos, Estatuto da Criança e do Adolescente e demais legislações correlatas.
Então vamos às peculiaridades:
A) Direito de visitas na pandemia:
Importante frisar que cada caso é único, sendo certo que o juiz deverá analisar cada situação de forma particular, uma vez que, como já dissemos, não há regras para a atual circunstância.
O bom senso deve sempre imperar, bem como o melhor interesse da criança ou adolescente, princípio básico do Direito de Família, seja com relação à guarda ou aos alimentos.
Dessa forma, se o genitor tem direito às visitas e quer exercê-las normalmente nesta época, é preciso cuidado. Pais que continuam trabalhando, não fazem isolamento, têm contato com outras pessoas, ou com pessoas que estão doentes, são da área da saúde, enfim, a melhor recomendação seria pelas visitas virtuais, realizadas através de dispositivos eletrônicos, de preferência com áudio e vídeo.
Mesmo para pais que tomam todos esses cuidados, ainda assim a melhor recomendação seria a realização de visitas virtuais, no mesmo dia e hora habituais, podendo durar o mesmo tempo, se possível, ou serem flexibilizadas.
Vejamos um exemplo de jurisprudência nesse sentido:
Agravo de instrumento. Ação de regulamentação de visitas. Avó paterna contra genitora. Decisão deferiu direito de visitas da avó à menor, sem supervisão. Requisitos do art. 300, do CPC demonstrados. Alegação de ocorrência de abuso sexual perpetrado pelo genitor, que reside com a autora da ação, contra a filha. Visitas avoengas que devem ser realizadas na residência materna, de maneira assistida, até realização dos estudos social e psicológico já determinados. Medida se justifica diante da gravidade dos fatos alegados. Superiores interesses da criança devem ser preservados. Medida reversível. Visitas presenciais suspensas em razão da eclosão de pandemia. Contatos entre a neta e a avó devem ser mantidos por telefone ou video-chamada. Posteriormente, as visitas voltarão a vigorar como determinado. Agravo provido, com observação.
(TJ-SP - AI: 20441893420208260000 SP 2044189-34.2020.8.26.0000, Relator: Edson Luiz de Queiróz, Data de Julgamento: 15.03.12, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07.05.20) gn
O importante é não deixar o distanciamento social, tão necessário neste momento, separar ainda mais filhos e pais. A tecnologia deve ser vista como aliada, e não como vilã.
B) Pensão alimentícia na pandemia:
Quando falamos sobre o dever de alimentar e pandemia, vislumbramos alguns cenários: (a) quando o alimentante deixa de pagar os alimentos, em razão da alegada diminuição de suas possibilidades financeiras; (b) pedido revisional para diminuição do valor dos alimentos, em razão da mesma alegação.
Como já mencionado, não há regras neste momento.
Quando não há o pagamento da prestação, o alimentado continua tendo direito de perseguir seu crédito, através de ação de execução de alimentos.
Contudo, a principal consequência deste tipo de ação, que normalmente é eficaz para compelir o devedor a arcar com sua obrigação, qual seja, a prisão civil, foi relativizada.
Vejamos um exemplo:
HABEAS CORPUS. Execução de alimentos. Prisão administrativa. Admissibilidade, pois decorrente do não pagamento da pensão alimentícia. No entanto, em razão do atual estado de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus e de modo a evitar exposição desnecessária ao risco de contaminação por Covid-19, excepcionalmente, concede-se a ordem, para suspender o decreto prisional, como medida de combate à disseminação do vírus. Ordem concedida.
(TJ-SP - HC: 20524517020208260000 SP 2052451-70.2020.8.26.0000, Relator: Maria de Lourdes Lopez Gil, Data de Julgamento: 19/05/2020, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 19/05/2020) gn
Há, contudo, quem pleiteie a conversão da prisão em domiciliar. Porém, melhor sorte não tiveram, e o entendimento parece ser unânime, uma vez que perde-se a função coercitiva da medida, bem como sua efetividade:
ALIMENTOS - Execução - Prisão civil do devedor - Descumprimento da obrigação - Verbas alimentares referentes ao período previsto no art. 528, parágrafo 7º, do Código de Processo Civil e na Súmula 309 do STJ - Inadimplência incontroversa do alimentante - Custódia legítima - Prisão civil em regime fechado com cumprimento suspenso até reavaliação pelo juízo de primeiro grau, com análise da pandemia - Necessidade de observar as orientações sanitárias do Ministério da Saúde - Prisão domiciliar que não manteria a função coercitiva e a efetividade no atual cenário de isolamento - Decisão mantida pelos seus próprios fundamentos - Recurso improvido.
(TJ-SP - AI: 20936073820208260000 SP 2093607-38.2020.8.26.0000, Relator: Alvaro Passos, Data de Julgamento: 16/06/2020, 2ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/06/2020) gn
A solução, então, tem sido suspender a prisão pelo período de quarentena e isolamento social, sem prejuízo de conversão da execução em patrimonial, quando se busca a expropriação de bens do devedor:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. DECRETO DE PRISÃO CIVIL DO EXECUTADO. INADIMPLEMENTO VOLUNTÁRIO E CONSCIENTE. DESEMPREGO E PROBLEMAS DE SAÚDE QUE SÃO INSUFICIENTES PARA AFASTAR O DECRETO PRISIONAL. OBSERVÂNCIA DA SÚMULA 309 DO C. STJ. JUSTIFICATIVA REJEITADA. PEDIDO SUBSIDIÁRIO DE CONVERSÃO DA PRISÃO EM REGIME DOMICILIAR, EM RAZÃO DE ENFERMIDADES. AUSÊNCIA DE APRECIAÇÃO PELO JUÍZO "A QUO". NÃO CONHECIMENTO, SOB PENA DE INCORRER-SE EM SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. SUPERVENIÊNCIA DA PANDEMIA - VÍRUS COVID 19. RECOMENDAÇÃO CNJ 62/20. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA ORDEM DE PRISÃO. RECURSO, NA PARTE CONHECIDA, PARCIALMENTE PROVIDO. Diante da superveniência da pandemia causada pelo vírus Covid-19 e da Recomendação CNJ nº 62/20, a execução da ordem de prisão civil do devedor de alimentos deve ser suspensa até que sejam cessadas as medidas de isolamento social determinadas pelas autoridades médicas, sem prejuízo da possibilidade da execução prosseguir por meio de constrição patrimonial.
(TJ-SP - AI: 20050966420208260000 SP 2005096-64.2020.8.26.0000, Relator: Maria do Carmo Honorio, Data de Julgamento: 19/05/2020, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 19/05/2020)
Quando, por sua vez, o pedido é de redução do valor dos alimentos, baseado nos efeitos financeiros da pandemia, o magistrado vai avaliar, primeiramente, se há provas de que a possibilidade de pagar os alimentos do alimentante de fato foi reduzida. Se entender que sim, os alimentos serão minorados:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de alimentos gravídicos convertida em investigação de paternidade c/c alimentos. Decisão que fixou os alimentos provisórios em 20% dos rendimentos líquidos, desde que nunca inferior a 50% do salário mínimo nacional, valor este que também servirá de base nas situações de informalidade. Pretenção de redução para 20% do salário mínimo. Cabimento em parte. Em se tratando de pensão alimentícia destinada a um único filho, o percentual mais adequado a se descontar, nesta fase de cognição sumária, é o de 20% dos rendimentos líquidos, desde que nunca inferior a 30% do salário mínimo nacional, valor este que também servirá de base nas situações de informalidade. Agravante profissional autônomo (barbeiro) que certamente vem sofrendo redução em seus ganhos em razão da epidemia de COVID-19, além de possuir mais um filho a quem também presta alimentos. Decisão reformada. Recurso a que se dá parcial provimento.
(TJ-SP - AI: 20575918520208260000 SP 2057591-85.2020.8.26.0000, Relator: José Rubens Queiroz Gomes, Data de Julgamento: 17/06/2020, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/06/2020)
O mesmo se dá para quando há comprovação de redução salarial, como nas hipóteses trazidas pela MP 936, reduzindo-se a prestação de alimentos na mesma proporção. (TJ-SP - AI: 21134188120208260000, Relator: J.B. Paula Lima, Data de Julgamento: 05/06/2020, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 05/06/2020)
Se o magistrado, contudo, entender que não restou comprovada a diminuição da possibilidade do alimentante, manterá o valor dos alimentos:
(...) Quanto ao pedido para que a pensão alimentícia seja reduzida pela metade, diante da pandamina causada pelo coronavírus, é certo que o genitor possui microempresa de motoboys, ramo este que devido a atual situação, cresceu exponencialmente, conforme noticiado diariamente nas redes de comunicação.
Portanto, não há razões, tão pouco elementos capazes de ensejar a complementação ou modificação da decisão embargada.
(TJ-SP - EMBDECCV: 20421211420208260000 SP 2042121-14.2020.8.26.0000, Relator: Rui Cascaldi, Data de Julgamento: 30/04/2020, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/04/2020)
Aparentemente longe de acabar, a quarentema ainda trará outros direitos impactados, cujas soluções serão construídas pela jurisprudência, mas sempre tendo como base o ordenamento jurídico e seus princípios.
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*Juliana Ferres Brogin Crepaldi é advogada, sócia-administradora do escritório Brogin Crepaldi Sociedade de Advogados, especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Unitoledo, especialista em Direito Digital pelo Insper e em Proteção de Dados pela FGV.