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Retrato de uma injustiça: De inadimplentes de ICMS a réus em ações penais

A análise sistematizada dos precedentes mostrou-se de extrema relevância para comprovar que, nos casos de apropriação indébita tributária, instituiu-se uma completa banalização do processo penal.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Atualizado em 3 de julho de 2020 08:37

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A partir da recente decisão do Supremo Tribunal Federal no recurso em habeas corpus 163.334, o não pagamento de ICMS, ainda que devidamente declarado ao Fisco, pode caracterizar o delito previsto no art. 2º, inc. II, da lei 8.137/90. O provimento foi consequência de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no habeas corpus 399.109, segundo a qual considerou-se a desnecessidade de qualquer clandestinidade envolvendo o delito para sua configuração. Em razão deste marco decisório, a tutela penal do sistema tributário poderá sofrer profundas modificações, seja pelo viés da moldura proibitiva das normas penais, seja pelo viés das políticas públicas consideradas a partir da decisão mencionada.

Antes de dezembro de 2019, a grande maioria da doutrina e jurisprudência brasileira entendia que o direito penal não teria legitimidade para tutelar exclusivamente o não pagamento do tributo, ou a dívida tributária como resultado. Pelo contrário, haver-se-ia de caracterizar algum desvalor da conduta verificada - seja fraude, engodo ou qualquer omissão ardilosa - para que se caracterizasse o elemento objetivo do tipo penal. A dívida tributária exclusivamente, neste sentido, não poderia ser imputada à função penal, mas sim à estrutura administrativo-tributária com seu arcabouço de medidas de cobrança.

Ainda não se tem a publicação do acórdão final, mas alguns elementos são necessários para que se possa construir, desde então, novos rumos à persecução penal nos crimes tributários. Com esta preocupação, a equipe de CAZ Advogados realizou extensa pesquisa sobre a aplicação do crime de apropriação indébita tributária no Estado de São Paulo entre 26 de março e 29 de abril de 2020, especificamente nos arquivos digitais do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O levantamento jurisprudencial considerou todos os precedentes disponíveis sobre o tema no sistema - acórdãos e banco de sentenças - do período compreendido entre 2010-2020. Foram encontrados, a partir das palavras-chaves escolhidas: (1) "art. 2º, II, lei 8.137/90" e "ICMS"; (2) "8.137" e "apropriação indébita tributária" e "ICMS" mais de 420 decisões, entre acórdãos e sentenças, das quais foi possível - pelas informações/cópias e limites temporais da pesquisa - a análise de um terço destes procedimentos.

A principal vertente da pesquisa foi compreender quais informações, para além daquelas já fornecidas pela Receita Estadual, fundam o procedimento criminal, desde a denúncia nos crimes de apropriação indébita tributária até as decisões terminativas destes procedimentos. As perguntas que foram feitas  ao se analisarem os dados, pois, procuraram responder sobre os fundamentos que diferenciam a imputação de responsabilidade na esfera administrativa e na esfera penal: de um lado um mero inadimplemento de ICMS e, de outro, um delito configurado imputado a determinada pessoa física.

Os resultados preocupam. A conclusão é de que essa diferenciação não só inexiste, como resta evidente que também não há a menor preocupação em se identificar as distintas imputações e a diferença entre os pressupostos administrativos e penais de responsabilidade pessoal. Salvo raríssimas exceções, o contribuinte que não recolhe o ICMS é levado direto ao banco dos réus, processado pelo crime previsto no artigo 2º, inciso II, da lei 8.137/90.

Em 73% dos casos, o procedimento adotado pelo Ministério Público do momento da chegada dos autos até o início da ação penal revelou-se idêntico: (I) ao receber da Fazenda do Estado informação acerca do não recolhimento de ICMS declarado, notifica-se o contribuinte a apresentar no prazo de 15 dias documentação hábil a comprovar o pagamento do tributo; e (II) não havendo resposta positiva, oferece-se denúncia.

Significa, pois, afirmar que não houve qualquer produção de provas direcionada a apurar as especificidades da responsabilidade penal em todos estes casos. Bastou exclusivamente o feito  da na esfera administrativa para indicar aos atores do processo penal tanto elementos de autoria como as provas de materialidade.

A dizer, na esfera administrativa a prova da materialidade está consubstanciada nos documentos fiscais, autos de infração e imposição de multa e os relatórios de auditoria dos fiscais respectivos. Também ali não há produção de provas sobre as circunstâncias fáticas ou outros elementos que possam interferir na consumação dos crimes previstos na lei 8.137/90.

No que se refere à autoria, nada se altera. O indivíduo responde criminalmente se contribuinte (ou responsável administrativo do contribuinte) for, ou seja, se estiver em função societária na qual deve responder pelo pagamento do tributo. Não se produz prova a apurar a efetiva autoria ou o nexo real entre a conduta realizada e o os resultados exigidos pela legislação penal. Pune-se pela função exercida e pela presunção de autoria a partir de determinada responsabilidade tributária imposta pela lei.

Em 100% dos casos os indivíduos denunciados são exatamente aqueles que constam do contrato social. Ignora-se por completo o contexto do fato e as diferenças de modelos de organização empresarial. Sequer é ouvida a versão do investigado antes da denúncia. É a consolidação da responsabilidade objetiva - vedada no direito criminal - em sua forma mais crua.  

Neste contexto, os únicos documentos que dão arrimo à propositura da ação penal -exatamente aqueles fornecidos diretamente pela Receita Estadual - são: cadastro do contribuinte, certidão de dívida ativa, Guias de Recolhimento e a ficha cadastral da Junta Comercial de São Paulo. 

Já sob a perspectiva do elemento subjetivo do tipo penal - dolo ou culpa - não se realiza qualquer inquirição a este respeito. Pouco importa se a falta de recolhimento deu-se por má-fe ou pura incapacidade de pagar; nada muda se a prática do contribuinte é reiterada; não se investiga acerca da ocorrência de uma efetiva apropriação de valores. É a dívida tributária - e só ela - que embasa a ação penal.

Registre-se, ainda, que há reiterada confusão de existência de dolo a partir da imposição pela via administrativa de multa ampliada pela simulação ou fraude na esfera tributária. Evidente que os pressupostos a declarar tal procedimento são absolutamente diferentes daqueles previstos na esfera penal, e não dizem respeito, em absoluto, à análise sobre a existência de intenção de fraudar o fisco, conforme exigido por nossa legislação. Não bastam, pois, para declarar o dolo direto na imputação de responsabilidade criminal.

Para aqueles mais próximos do sistema penal tributário, não se trata de novidade. No entanto, por mais que já se tinha a experiência prática de tal modus operandi em casos esparsos, com a presente pesquisa realizada (10 anos nos documentos disponíveis eletronicamente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo), constatou-se qualitativa e quantitativamente que este é o procedimento adotado na maioria dos casos existentes.

Curioso ainda notar que, em dois casos analisados e decididos em 2020 já houve repercussão da decisão do Supremo Tribunal Federal. No primeiro deles, processo 1002135-32.2016.8.26.0058, da Comarca de Agudos, o juiz decidiu em 12.02.20 pela absolvição dos denunciados da imputação do crime previsto no artigo 2º, inciso II da lei 8.137/90 referente a ICMS, por não restar comprovada a contumácia e o dolo de apropriação. O valor do tributo envolvido era de R$ 55.644,31. A referida decisão representa, ainda, uma exceção no universo de casos analisados, porque ao descrever sobre o dolo de agir contra o fisco, o magistrado define que há diferenças entre ser contribuinte e agir com relevância penal.

Em Guarulhos foi ainda analisado outro caso que repercutiu a decisão de dezembro último no STF. Trata-se do processo 1001080-96.2017.8.26.0224, que tramitou perante a 5ª. Vara Criminal de Guarulhos, envolvendo infrações tributárias no valor de R$ 296.033,07. Não houve qualquer investigação sobre os efeitos penais da conduta, não foi instaurado inquérito policial, o réu foi processado a partir do procedimento administrativo-tributário e o juiz decidiu pela absolvição sumária porque não restou demonstrada a contumácia na atuação do acusado.

Já não é de hoje que se fala sobre o caráter arrecadatório abusivo de nosso Direito Penal  em crimes contra a ordem tributária. Mas os números escancaram essa realidade. Revelam que, para muito além do que se poderia imaginar, o Direito Penal tornou-se um mero anexo da Receita. O processo penal não passa atualmente de um instrumento de execução de dívida.  

E não há nada que legitime isso. Ao contrário do que se pode pensar, a decisão do Supremo Tribunal Federal não permite essa atuação; antes, veda-a. O precedente deixa claro que o delito tratado não se confunde com uma mera inadimplência tributária. Sem um dolo específico de apropriação e inexistindo a reiteração da conduta criminosa, assevera a Suprema Corte, não há se falar em delito.

Muitas perguntas e dúvidas surgem a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, mas alguns pontos restam cristalinos, cotejando-se a pesquisa realizada com os critérios descritos no julgamento oral realizado no RHC 163.334.

1. Para que se possa comprovar a contumácia será necessário ir além dos documentos hoje já "importados" da esfera administrativa.1 É preciso criar critérios racionais de interpretação que levem em conta a sistemática do direito penal e os limites proibitivos da norma já existente.

2. Quanto ao elemento subjetivo do tipo, é essencial que seja perquirido, no processo penal, sobre a existência do dolo de apropriação. Dolo este individual e focado no sujeito de direitos a quem se imputa determinada conduta formalmente. Não será possível continuar com o modus operandi de persecução penal que imperou nos últimos dez anos, conforme comprova a pesquisa realizada.

A análise sistematizada dos precedentes mostrou-se de extrema relevância para comprovar que, nos casos de apropriação indébita tributária, instituiu-se uma completa banalização do processo penal. Colocam-se na mesma vala comum condutas tributárias e imputações penais, bem como indivíduos de boa-fé, meros detentores de dívidas tributárias, daqueles que, de forma dolosa e reiterada, apropriam-se de valores indevidos. E isso é inaceitável.

A partir dos novos precedentes do Supremo Tribunal Federal, indispensável que se criem novos paradigmas para a persecução de condutas previstas no artigo 2º. da lei 8.137/90, estruturando vértices de segurança aos empresários e contribuintes no país a mitigar riscos penais a partir da mera inadimplência de tributos.

Dívidas e alargamento de prazos de pagamento são escolhas estratégicas nos negócios, principalmente na situação de absoluta exceção que nos vemos mergulhados em 2020. Seria imensa injustiça continuar punindo os gestores e administradores devedores de forma automática e sem produção de provas no processo penal como atestado pela pesquisa realizada.

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1 Alguns Estados brasileiros já definiram em suas legislações o conceito de contumácia para a via administrativa. São Paulo é um deles. Resta avaliar a importação do conceito para a via penal.

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*Marina Coelho Araújo é sócia do escritório Costa, Coelho Araujo e Zaclis Sociedade de Advogados.

*Daniel Zaclis é sócio do escritório Costa, Coelho Araujo e Zaclis Sociedade de Advogados.

*Murilo de Lima Albregard é colaborador Jurídico do escritório Costa, Coelho Araujo e Zaclis Sociedade de Advogados.

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