Covid-19 - Reflexões sobre o futuro da judicialização
Que desses atos, possamos construir um novo universo jurídico, a nos encontrar num tempo que esperamos não nos seja tão distante, e que ele possa ser chamado de justo e humano, por todos aqueles que por ele transitem e que dele se socorram, ainda que não se saiba por que, quando ou como.
quinta-feira, 14 de maio de 2020
Atualizado às 12:38
O mundo tem passado nos últimos meses por questões de gigantesca complexidade nas mais incontáveis ordens.
A pandemia da COVID-19 repercutiu de forma imediata nas mais variadas áreas da existência humana.
Saúde, educação, moradia, saneamento básico, economia, relações pessoais e trabalhistas, num primeiro enfoque, sofreram e continuarão a sofrer por um tempo indeterminado milhares de consequências igualmente imprevisíveis.
Militantes na área jurídica já se antecipam a pensar em como tudo isso impactará no Poder Judiciário, em como os juízes decidirão a respeito das demandas que lhes serão apresentadas para julgamento nos próximos meses.
Para muitos casos talvez se mostre inerte ou ineficiente a legislação vigente, o que não afastará dos magistrados o dever legal de terem de decidir sobre os casos que lhes forem levados à apreciação.
Por todo o mundo, milhares de vida se foram e ainda não se sabe o número de pessoas que será contaminada e a quantidade de vidas que serão ceifadas até que a cura ao novo Coronavírus seja uma realidade acessível, concreta e palpável a todos os seres viventes sobre a face do planeta Terra.
Em decorrência das contaminações e dos óbitos, muitos se questionarão sobre a causa de cada contaminação e de cada óbito, as razões em que ocorreram, as consequências do que eventualmente poderia ter sido evitado, do que não foi e do por que.
Inevitavelmente, muitos casos, por esta mesma razão, serão judicializados, em escalas que, de pronto, podemos afirmar serem estratosféricas, dada a projeção mundial da COVID-19.
Fazemos uma conjectura aos impactos que as demandas causarão, considerando a possibilidade de existirem leis ineficientes, como já salientamos, e ponderamos ainda uma realidade que já nos era bastante comum e corriqueira antes do inimigo invisível ser a ameaça mais real e perceptível a todos os seres humanos viventes, qual seja, a da superlotação de tribunais, em decorrência da judicialização em massa, muito característica da justiça brasileira.
Assim, se já era incalculável o déficit da prestação jurisdicional a contento, por inúmeras questões peculiares, imaginemos como será o futuro da judicialização brasileira quando a realidade da pandemia minimamente se estabilizar, caso busquemos manter o que nos era típico e comum.
Perseguiremos a máxima de que a justiça tarda, mas não falha ou de que, se tardia, a justiça não é justa?
Por hora, a maioria dos trabalhos de tribunais, juízes, servidores e advogados ainda acontece de maneira remota, mas sabemos que isso não será para sempre.
Ainda são poucos os que têm acionado as vias judiciais para verem-se socorridos de suas necessidades e serem amparados, ponderando-se igualmente que algumas diretrizes emanadas de órgãos superiores da justiça brasileira inviabilizam qualquer outra maneira de se agir (como os enunciados do CNJ, por exemplo, a amparar, em síntese, a urgência judicial urgentíssima, inexistindo prejuízos se adiados feitos e atos que não inseridos em algumas de suas normativas).
Porém, em algum determinado momento da história, ainda sem precisão exata, a vida "vai voltar ao normal" e aqueles que se virem prejudicados pelas mais variadas razões em decorrência de tudo o que perderam, sofreram ou passaram durante a pandemia, inevitavelmente, acionarão os Tribunais e levarão à apreciação judicial incontáveis casos, que resultarão nas mais inumeráveis ações.
Não podemos nos esquecer de que também este "tempo", aguardado por alguns, tem, inclusive, amparo legal, já que a legislação vigente salvaguarda períodos cronológicos a fim de que alguém possa levar para apreciação do Poder Judiciário alguma questão sem que seu direito decaia e sem que a respectiva ação para pleiteá-lo prescreva.
Desta forma, exposta a realidade e feitas algumas ponderações inerentes a ela (por óbvio que sem a menor pretensão de se esgotar as incontáveis possibilidades de reflexão que esta nova situação nos traz), talvez seja o momento de advogados, demais militantes na área jurídica e partes repensem a respeito do futuro do judiciário.
Será que continuaremos a ser o país em que tudo só tem validade quando recebe uma chancela judicial e ainda assim, muitas vezes, ela é motivo de deboche por parte de quem tem de cumpri-la?
Uma ação judicial no ordenamento jurídico brasileiro costuma ser bastante onerosa e o tempo para o seu julgamento é absolutamente incalculável.
Quando a pandemia "passar" ou minimamente a situação se estabilizar, havemos de pensar que esse ônus financeiro e esse tempo serão fatores de grande relevância àquele que busca pela judicialização ou que nela, de alguma forma, participa.
Poderão surgir situações condenatórias que jamais serão efetivamente adimplidas, já que não há como se saber, com a precisão que inegavelmente todos desejariam, a respeito dos impactos na economia que a COVID-19 já trouxe e ou que continuará a trazer ao mundo e menos ainda por quanto tempo.
Absolvições também são conjecturas possíveis, já que não há como precisar a razão que levará a se provar incontáveis inocências silenciosas hoje vistas como condenações já concretas.
Cada fato será único, assim como o é cada vida contaminada ou cada morte concretizada e como jamais deixará de ser a realidade de cada um que tem prejuízos na saúde, na educação, na moradia, que sofre e tem perdas pela falta de saneamento básico, que passa por uma emblemática situação econômica, com impactos em suas relações pessoais e/ou trabalhistas.
Como será, então, o futuro da judicialização, sopesadas toda esta realidade e todas as circunstâncias que a acompanham para atuarmos ou buscarmos pelo Poder Judiciário?
Valeremo-nos dos costumes?
Recorreremos às práticas da mediação e da arbitragem?
Buscaremos a aplicabilidade de legislações por analogia?
Escreveremos uma nova jurisprudência?
Ainda que não se saibam as respostas, já que somos movidos neste momento por muitas perguntas ainda sem qualquer desfecho lógico ou conclusivo, que saibamos usar este tempo que nos toca, inegavelmente reflexivo, para somá-lo à realidade que inexoravelmente nos é inerente e para buscarmos mudar o que precisa ser mudado e ressignificar o que já não fazia e fará cada vez menos sentido.
Que desses atos, possamos construir um novo universo jurídico, a nos encontrar num tempo que esperamos não nos seja tão distante, e que ele possa ser chamado de justo e humano, por todos aqueles que por ele transitem e que dele se socorram, ainda que não se saiba por que, quando ou como.
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*Natalia Carolina Verdi é advogada, especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, especialista em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, mestre em Gerontologia pela PUC-SP, Professora Convidada, Palestrante, Autora, Blogueira no Blog Direitos do Longeviver, junto ao Portal do Envelhecimento.