Os impactos da pandemia no transporte coletivo de passageiros e o dever de reequilíbrio econômico-financeiro das concessões e permissões
O que se sabe é que a demanda atual não é suficiente para cobrir os custos do serviço em operação.
segunda-feira, 11 de maio de 2020
Atualizado às 13:43
É de conhecimento público a existência do novo coronavírus (covid-19) e o estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional decretado pela Organização Mundial da Saúde. Em consequência disto, a fim de barrar o avanço da transmissão, tem-se a implantação de medidas de isolamento social, o que, inevitavelmente, culminaram no rompimento abrupto do equilíbrio nas finanças de diversos ramos da cadeia produtiva, comércio e serviços.
Em sua totalidade, remanesce, ao menos por enquanto, a tentativa de manutenção dos serviços tidos como essenciais à população, ainda que presente a onerosidade excessiva para tal. Dentre estes, destacamos os impactos no setor de transportes, especificamente, quanto ao Transporte Coletivo de Passageiros.
Dados da NTU1 (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbano) demonstram que a partir de 16 de março de 2020 as medidas de isolamento começaram a reduzir a demanda do transporte público de forma mais significativa. Neste estudo, restou-se evidenciado que a redução média identificada foi na ordem de 80% na quantidade de passageiros transportados. Por outro lado, a fim de minimizar os impactos da crise, algumas empresas operadoras obtiveram dos órgãos gestores a permissão para redução da frota e frequência de linhas, na ordem de 25%, ou seja, de plano percebe-se uma pseudo adequação dos serviços à demanda existente, travestindo tais medidas de "manutenção do reequilíbrio econômico-financeiro".
O que se sabe é que a demanda atual não é suficiente para cobrir os custos do serviço em operação.
É certo que ocorrência de álea extraordinária, nos contratos de concessão, obriga a Administração a compensar o contratado pelos encargos adicionais que venha a sofrer. Neste esteio, em recente decisão monocrática, de 28.04.20, do ministro presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, nos autos do processo de suspensão de liminar e de sentença 2696-RJ (2020/0091341-2), restou consolidado o entendimento de que a continuidade do serviço público de transporte depende da capacidade da empresa concessionária de reorganizar de forma eficaz a operação, de modo que restaram suspensos os feitos de liminar que teria determinada a prestação dos serviços em sua integralidade.
A Advocacia Geral da União, por sua vez, exarou tese sobre o reequilíbrio de contratos de concessão por motivo de força maior/covid-19. O parecer 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU destacou que a pandemia do novo coronavírus configura força maior ou caso fortuito, caracterizando álea extraordinária para fins de aplicação da teoria da imprevisão a justificar o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes.
Por outro lado, por mais claro que seja o direito a resguardar os concessionários, tem-se uma assustadora escassez de análise jurídica quanto ao meio legal de socorro aos permissionários do serviço público de transporte coletivo.
A outorga de serviços públicos por particulares, seja por concessão ou permissão, deve-se levar em conta a supremacia do interesse público. Nesta linha, considera-se que, o que diferencia a concessão da permissão, resumidamente, é a presença de direitos e obrigações bem delineados, além da segurança jurídica assegurada por uma vigência contratual, enquanto que a permissão mostra-se precária, podendo ser extinta a qualquer tempo.
Entretanto, na grande maioria dos estados, o serviço público de transporte coletivo, operado por concessão ou permissão, caminha lado a lado. Em ambos, tem-se a imposição Direitos e Obrigações e, para ambos, há o dever de cumprimento de horários, oferta de linhas, renovação periódica da frota, dentre outros, submetendo-os à fiscalização e imposição de sanções por qualquer descumprimento das ordens emanadas do poder público, sem que seja dado, ao permissionário, tido como "precário", o direito de executar, ou não os serviços.
Portanto, a visão simplista da inexistência de direito ao reequilíbrio econômico para os permissionários, parece não ser aplicável diante do cenário atual. A Administração determina a execução dos serviços sem levar em consideração a queda de demanda ocasionada pela pandemia, sendo flagrante que a contraprestação tarifária arrecadada pela demanda de passageiros não é suficiente à cobertura dos custos da operação, frise-se, imposta unilateralmente pelo ente estatal. Como se não bastasse, o "precário" vê-se submetido às sanções que, distantes do caráter educativo que devem ter, representam verdadeiro agravamento do déficit financeiro ante à imposição de multas recorrentes.
O desembargador Federal do TRF 4º Região, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, em publicação na Revista de Doutrina TRF4 - edição 20 de 29.10.072, ao tratar do reequilíbrio consignou que "o reconhecimento do direito ao equilíbrio financeiro - o primeiro direito original do co-contratante com o Poder Público, segundo Péquignot (Théorie Générale du Contrat Administratif, Paris, 1945, p. 430) - surgiu como contrapartida ao poder-dever de alteração unilateral do contrato administrativo, mas vale também para os casos em que, impedido de invocar a exceção de contrato não cumprido, o particular contratado se vê obrigado a suportar o cumprimento irregular do ajuste ou a mora da Administração contratante".
Em outros países, a importância do caso toma outras proporções, a exemplo do Departamento Federal de Transporte e Administração de Trânsito dos Estados Unidos (FTA) que liberou um fundo de financiamento federal de US$25 bilhões para manter o transporte público coletivo em funcionamento durante a pandemia da covid-19.
No Brasil, serve de exemplo a prefeitura de Pouso Alegre/MG, que estabeleceu um subsídio mensal de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), por 03 (três) meses, a fim de minimizar os impactos financeiros da prestação do ser, de viço de transporte coletivo. A realidade mostra-se bem diferente na grande maioria dos estados que, no afã de manter a oferta de serviço, imputa obrigações inexequíveis sem a devida contraprestação.
A capital paulistana resolveu assumir os riscos decorrentes da pandemia, tratando de solucionar parte do desequilíbrio econômico ocasionado pela álea extraordinária, quando, por sua vez, editou a lei 17.335, de 27.3.20, regulamentada pelo decreto 59.321, de 01.04.20 que dispõe, dentre outros, sobre autorização de medidas excepcionais no âmbito dos contratos administrativos. Para o setor de transporte coletivo, o executivo municipal, sensível à frustração da expectativa da demanda e seus impactos na receita dos operadores, autoriza o pagamento de subvenções econômicas aos concessionários por até 4 meses, visando a evitar a demissão dos trabalhadores.
À Administração Pública, é preciso entender que a segurança jurídica da operação do serviço essencial, deve resguardar tanto concessionário como permissionário, uma vez que a recomposição da equação financeira, em ambos os casos, não visa apenas a seguridade das condições contratadas para o futuro (no caso das concessões) mas, sobretudo, no caso atual, tem por objetivo resguardar o interesse coletivo que demanda pelos serviços hoje, não restando dúvidas que a onerosidade excessiva imposta aos permissionários, igualmente, deve ser (re)equilibrada.
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1 Disponível em: Clique aqui - acesso em 29.04.20 - 22h00
2 Disponível em: Clique aqui - acesso em 28.04.20 - 19h30
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*Gabriel Oliveira é advogado do escritório Coelho e Dalle Advogados.