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Atividade empresarial e ordenação pública da economia: uma permanente tensão constitucional

Vitor Soliano

Não é sustentável a afirmação de que, em sociedades modernas, complexas e plurais seja possível um cenário econômico em que o Estado não mantenha relação com o "mercado".

terça-feira, 28 de abril de 2020

Atualizado às 08:11

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Dentre múltiplas simplificações que poderiam servir de ponto de partida, podemos dizer que existem duas grandes funções da atividade empresarial: a articulação do conhecimento, dos interesses, dos desejos e das necessidades ordinárias que estão difusamente espalhadas na sociedade e que, dada a sua complexidade e pluralidade, não podem ser plenamente satisfeitas através de planejamento central e; a descoberta e/ou criação de novas (formas de atender às) necessidades, desejos e interesses mediante a inovação de processos, indústrias, serviços e bens. Ou seja, a atividade empresarial está presente na normalidade e estabilidade da padaria e na disrupção do aplicativo.

As duas dimensões da atividade empresarial estão em permanente tensão e troca. De um lado, a normalidade e estabilidade de um setor pode ser perturbada pela disrupção causada por um novo agente ou uma tecnologia inovadora, situação em que uma nova configuração do setor deverá, ainda que no médio prazo, ocorrer. Por outro lado, e em complemento, a nova configuração tende, ao menos potencialmente, a multiplicar os agentes produtores e usuários da inovação, criando uma nova normalidade e estabilidade.

Ao mesmo tempo em que cria as condições para disponibilização de bens e serviços necessários, essenciais ou simplesmente desejados e faz avançar a evolução tecnológica, a atividade empresarial gera riqueza, empregos e promove o desenvolvimento, tudo isso em um ambiente de relativa incerteza. Ela é, portanto, não apenas economicamente interessante, mas socialmente indispensável.

A atividade empresarial privada, bem como a materialização das suas potenciais virtudes econômicas e sociais, contudo, não se desenvolve no vácuo normativo e institucional e não deve, segundo se passou a entender ao longo do tempo, ocorrer de forma ilimitada (se é que em algum momento ocorreu de forma ilimitada).

Aquilo que normalmente chamamos de mercado, "local" onde a atividade empresarial se desenvolve, é, sempre, resultado de uma determinada construção jurídico-política-institucional. O "mercado" é sempre estruturado e conformado por um determinado arranjo institucional específico. Ou seja, qualquer forma concreta de sistema econômico só existe na medida das relações de interdependência que mantém com os sistemas jurídico e político (e com outros sistemas sociais), relações estas que são sempre contingenciais e dependentes de trajetória. Não há, portanto, relações de interdependência puras/ideais nem é possível estruturar um "mercado" do zero.

Em síntese, não é sustentável a afirmação de que, em sociedades modernas, complexas e plurais seja possível um cenário econômico em que o Estado não mantenha relação com o "mercado".

A estruturação jurídica de um "mercado" é realizada de múltiplas formas, através de espécies normativas de diferentes "naturezas" e depende de uma diversidade de órgãos e entidades. A criação, deliberada ou espontânea, das instituições conformadoras da atividade empresarial vai desde o direito civil e a existência de um Poder Judiciário até o direito administrativo e suas entidades reguladoras e não reguladoras, passando pelas normas e instituições do direito do trabalho, do direito do consumidor e do direito tributário, dentre outras. Este texto está diretamente voltado a tratar da ordenação normativa pública da econômica.

Por ordenação pública da economia se entende, aqui, de forma geral, o que se costuma chamar de "intervenção indireta" ou regulação normativa. Trata-se de qualquer tipo de ação normativa estatal que, através da criação e aplicação de princípios e regras de comando e controle ou de indução, visa a possibilitar ou pautar o comportamento de agentes econômicos, especialmente a atividade empresarial. Estas ações normativas podem ser normas constitucionais, legais ou infralegais e podem ser criadas e aplicadas pelo processo legislativo, pelo processo judicial e, especialmente, pela administração pública direta e indireta. Não se está a tratar, portanto, da atividade empresarial, prestacional ou de fomento do Estado.

As ações normativas de ordenação pública da economia tendem a ser elaboradas em resposta a irritações provocadas a partir de outros sistemas, irritações estas que ocorrem dentro de um quadro ordenador já existente. Estas ações, contudo, devem ser pautadas pelos princípios estruturantes definidos pela ordem econômica constitucional (livre iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor e do meio ambiente, por exemplo).

Ao mesmo tempo, as ações normativas devem, a princípio, ser criadas e calibradas para o atingimento de alguma finalidade pública relevante. Estas finalidades tanto podem ser difusas quanto constitucionalmente definidas pela ordem econômica constitucional (garantir o desenvolvimento nacional e reduzir desigualdades sociais, por exemplo).

Existem fenômenos e realidades econômicas/sociais que classicamente tendem a justificar ações normativas ordenadoras.

As mais tradicionais justificativas para instituição de ordenação pública da atividade empresarial são as chamadas falhas de mercado. Monopólios, oligopólios, carteis, assimetria de informações, externalidades, bens públicos, dentre outras tendem a irritar o sistema político e jurídico a construir mecanismos destinados a evitar e/ou controlar o abuso do poder econômico ou a má alocação de recursos. Ambos têm o potencial de causar opressão ou prejuízos a indivíduos, grupos de indivíduos e a coletividade em geral.

Por outro lado, as falhas de escolha têm se tornado razão comum para produção de normas de ordenação pública da economia. Entendidas como "ações irracionais em heurística", as falhas de escolha são comportamentos humanos que, em decorrência de uma série de vieses a que estamos sujeitos, vão de encontro ao interesse do próprio agente. As ações normativas de ordenação pública da economia buscariam evitar ou compensar este tipo de comportamento.

Ainda, a ordenação pública pode se destinar ao atingimento das mais variadas finalidades constitucionalmente impostas ou democraticamente escolhidas. Estas normas podem visar a indução, direção ou controle de comportamentos para promover maior distribuição de renda e oportunidades, maior desenvolvimento econômico, a proteção do patrimônio histórico-cultural, a universalização do acesso a produtos, serviços e utilidades, dentre outras.

Por fim, as ações normativas de ordenação pública podem ser criadoras de "mercados". Ou seja, o estabelecimento de arranjos normativos podem ser verdadeiras condições de possibilidade para o aparecimento de formas de interações econômicas antes inexistentes ou impossíveis.

De forma geral, portanto, o poder ordenador se presta a salvaguardar direitos fundamentais e é este o seu principal fundamento de validade.

Entretanto, a opção por criar, modificar, extinguir e reinterpretar normas de ordenação pública da economia sempre carrega consigo riscos de causar prejuízos. Sempre há um trade-off em qualquer processo regulador/ordenador.

Primeiramente, a calibragem equivocada, excessiva ou mesmo abusiva pode comprometer os fins que se pretende alcançar com a ordenação pública da atividade empresarial. Ou seja, a estruturação inadequada de normas pode criar incentivos comportamentais que não levarão à finalidade desejada ou, mesmo, ao seu oposto.

Atrelado a isto, normas mal calibradas podem desestimular ou limitar o surgimento de novos e variados arranjos aptos a satisfazer e proteger indivíduos, grupos de indivíduos e a coletividade em geral. Neste cenário, o oferecimento de novos produtos e serviços fica inviabilizado pelos arranjos normativos bloqueadores de alternativas formas de negócios.

Igualmente, por mais que se tente antever o que acontecerá no futuro e quais serão as consequências da edição de norma ordenadora, fato é que o sistema econômico é altamente dinâmico e as tecnologias disponíveis para a formação de negócios se alteram constantemente e cada vez com mais velocidade. Desta forma, o peso regulatório de normas editadas em algum momento no passado pode bloquear inadequadamente a inovação tecnológica.

Da mesma forma, excessos de impedimentos ou, pelo menos, impedimentos descalibrados podem tornar excessivamente onerosa a entrada de novos atores em determinados mercados. Estas dificuldades (ou impossibilidades) diminuem a possibilidade de concorrência e aumentam o poder econômico dos atores já inseridos no mercado, tudo isso em potencial prejuízo ao consumidor ou usuário.

Ademais, nunca se deve afastar por completo a possibilidade de normas de ordenação pública da atividade econômica serem fruto de captura regulatória.

Por fim, é importante destacar que a atividade de ordenação normativa da economia possui limites intrínsecos. Não é possível juridificar completamente o sistema econômico. Dito de outra forma, o sistema econômico nunca operará juridicamente. Ainda que haja interdependência necessária entre os sistemas sociais, desdiferenciação total entre sistemas é socialmente prejudicial (ou mesmo impossível).

De forma geral, portanto, o poder ordenador pode acarretar na restrição indevida de direitos fundamentais e é este principal fundamento para sua limitação.

A ordenação normativa da atividade empresarial, portanto, é paradoxal. Ela cria e destrói. Limita e estimula. Condiciona e permite. Inclui e exclui. Toda criação/alteração de normas jurídicas - o que inclui não apenas edição de emendas à constituição, leis e atos infralegais, mas também a interpretação e reinterpretação destes textos - provoca o surgimento/alteração de incentivos e, assim, provoca a realocação de recursos (tempo, investimentos, mão de obra, bens, serviços...).

Se é verdade que o mercado livre possui falhas e seu funcionamento absolutamente desimpedido por normas de direito público pode gerar efeitos negativos ou, pelo menos, o não atingimento de finalidades constitucionalmente definidas ou democraticamente eleitas, sendo a ordenação pública da economia decisiva para que isso não aconteça, não é menos verdade que a ordenação pública da economia também está sujeita a falhas e o poder ordenador desimpedido pode gerar efeitos destrutivos, opressivos ou, pelo menos, o não atingimento de finalidades constitucionalmente escolhidas e democraticamente eleitas, razão pela qual o condicionamento da ordenação pública da economia é decisivo para que isso não aconteça.

Assim, a ordenação pública da economia é uma manifestação político-jurídico como qualquer outra: pode ser um instrumento legítimo ou o exercício do arbítrio.

Neste sentido, se é verdade que as Constituições contemporâneas se afastaram do paradigma liberal clássico e passaram a, expressamente, permitir ou exigir a ordenação pública da atividade econômica privada, também é verdade que permanece como núcleo da função constitucional a limitação ou, pelo menos, o condicionamento do poder político (ordenador).

Tem-se, portanto, uma tensão constitucional permanente. Não há dúvidas de que a Constituição de 1988 criou ampla margem de opções para a promoção das suas finalidades, razão pela qual o constituinte derivado, o legislador ordinário e os múltiplos órgãos e entidades responsáveis pela ordenação pública da economia possuem diversos instrumentos e caminhos à sua disposição. Entretanto, também não há dúvidas de que a Constituição de 1988 aponta para a necessária imposição de limites a qualquer mecanismo de ação estatal, inclusive a ordenação pública da economia.

E aqui pouco importa se o princípio da subsidiariedade é ou não um princípio constitucional implícito. A limitação ou condicionamento da ordenação econômica está fundada em uma das dimensões fundamentais do constitucionalismo moderno: a limitação do poder do Estado.

Ocorre que as previsões constitucionais de salvaguarda da liberdade empresarial em forma de princípios ou de regras excessivamente abstratas é insuficiente para materializar a limitação do poder ordenador. São necessários instrumentos infraconstitucionais para destrinchar e ordenar como esta limitação é implementada. Se existem ações normativas infraconstitucionais que destrincham e capacitam o poder ordenador, nada mais natural que existam ações normativas infraconstitucionais para tutelar e limitar este poder.

A "ordenação da ordenação" pode se materializar infraconstitucionalmente através de instrumentos os mais diversos. Um dos instrumentos mais essenciais é a previsão do dever geral (não apenas a opção) de um devido processo ordenador/regulatório. Procedimentos bem definidos, permeabilidade social, transparência são requisitos fundamentais para que os afetados pela futura ação normativa ordenadora saibam antecipadamente o que irá mudar e possam participar dessa mudança.

Atrelada a um procedimento administrativo anterior à emissão de normas ordenadoras está, também, a necessidade de análise de impacto da ordenação. Ou seja, é possível que os interessados, especialmente os menos tecnicamente capacitados, não consigam antecipar, ainda que minimamente, os efeitos da nova ordenação. Desta forma, a obrigação de prévia análise de impacto é um instrumento limitador do poder de ordenação indispensável.

A análise de impacto, contudo, não há de ser apenas prospectiva. A administração ordenadora deve estar sujeita ao dever de, constantemente, avaliar e reavaliar as medidas ordenadoras criadas. Faz parte de qualquer política pública - e a ordenação normativa da atividade econômica é um instrumento de política pública - a constante revisão. Uma norma ordenadora pode surgir como legítima e necessária, mas o passar do tempo pode torná-la apenas um instrumento de arbítrio e bloqueio.

Igualmente, a ordem jurídica infraconstitucional pode prever processos e mecanismos de compensação ou indenização em caso de ordenação abusiva ou especial e concretamente expropriatória. A adoção do modelo do Estado regulador demanda a renovação do instituto da desapropriação, originalmente fundado na ideia de que a tomada de propriedade e não a restrição a atividades empresariais é a mais drástica forma de "intervenção" estatal.

Por fim, é possível que a ordem infraconstitucional crie hipóteses em que a ordenação da atividade econômica seja presumivelmente abusiva ou, ao menos, que indique situações típicas em que o poder ordenador não deva restringir a atividade empresarial.

Ocorre que as possibilidades (e necessidades) de ordenação pública da economia são tão variadas e heterogêneas que o rol de hipóteses de abusos ordenadores nunca será exaustivo e, fatalmente, terá que recorrer a cláusulas gerais, conceitos indeterminados e regras com conteúdos extremamente abstratos. A dimensão negativa extremada deste fato seria o risco de se impedir qualquer tipo de ordenação pública.

Este "risco", contudo, já existe, uma vez que os princípios da livre iniciativa, da livre empresa e da livre concorrência sempre podem ser invocados como fundamento para a invalidade de normas ordenadoras. A existência de um rol de hipóteses de abuso ordenador ao menos destrincha e atribui maior concretude à proteção da atividade empresarial.

De qualquer forma, a tensão entre ordenação legítima e ordenação abusiva, tensão esta que, de alguma forma, sempre será uma tensão constitucional, nunca será plenamente desfeita em nível abstrato, mas sempre diante de conflitos concretos. Neste cenário, para que o casuísmo e o relativismo não sejam a regra, e para que não se recorra a mecanismos metodológicos subcomplexos, a doutrina e dogmática jurídicas assumem papel central na estruturação de parâmetros e padrões decisórios "destensionadores".

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*Vitor Soliano é advogado do Rego, Nolasco & Lins Advogados. Mestre em Direito Público pela UFBA. Professor da Faculdade Baiana de Direito. Cursa MBA em Concessões Parcerias Público-Privadas na FESPSP.

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