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Prisão preventiva que não pode servir de antecipação de pena: a positivação de preceito básico sem resolução do problema "Ordem Pública"

Lucas Andrey Battini

Chegarão ao fim as várias prisões ilegais decretadas com base em termos genéricos e que representam, de forma mascarada, antecipação de pena.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Atualizado às 16:24

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O fenômeno da criminalidade sempre se fez presente ao logo do tempo, acompanhado do pensamento humano de tentar extirpar eventos criminosos que, de alguma forma, causavam incômodos na vida dos membros da coletividade. Este foi o ambiente propício para o nascimento de uma ciência penal, explicativa e regulamentadora de punições, que em sua fase mais primitiva, buscou explicar as penas como tentativa de amenização da cólera das divindades causada pelo fato delituoso - vingança divina1.

Com a evolução desta ciência jurídica, a vingança divina dá lugar à vingança privada, em que a punição passa a ser justificada no dever de retribuição, - sublinhe-se - dever, uma vez que esta ultrapassava o caráter de mero direito do ofendido. Nesse aspecto, surge um grande problema para época: a dizimação de pessoas e as constantes e degradantes ofensas corporais causadas pela vingança privada2.

Após severos anos de dizimação populacional e ofensas à integridade física do ser humano que surgiu a conveniência em se adotar penas efetivamente capazes de prevenir a delinquência ao invés de justificá-las retributivamente, passando-se a discutir e repensar conceitos penais considerados imutáveis.

Pode se afirmar que a evolução do Direito Penal sempre foi marcada por conflitos que funcionaram como alavancas desse desenvolvimento. Por exemplo, a evolução e a expansão da sociedade impôs à ciência penal além da imprescindibilidade de desenvolver e sistematizar seus conceitos, a necessidade de se amparar em outras ciências que pudessem auxiliá-la a traçar os parâmetros a serem seguidos, principalmente no que diz respeito às punições. Denota-se, dessa forma, que a evolução do Direito Penal efetivamente nunca parou de acontecer, porquanto esta é impulsionada pelo fenômeno delituoso que adquire novos formatos a cada dia.

Porém, apesar da evidente evolução da ciência penal, com uma ampla abertura para conceitos que possibilitaram a mudança do paradigma penal clássico, sobretudo no que respeita ao estudo da Dogmática Penal3, há que se ter cuidado com as consequências extremas e incalculáveis a que pode ser submetido, principalmente quando aplicado de forma desvirtuada e baseado em propósitos distintos daqueles que residem nos seus próprios fundamentos.

Nesse contexto, observa-se que, no cenário atual, a tentativa - muitas vezes através de uma postura incauta - de estabelecer marcos iniciais da punição, alcança até mesmo institutos diversos como é o caso da prisão preventiva, prevista no art. 311 e seguintes do Código de Processo Penal.

Isto porque, não são raros os casos em que, desvinculadas de qualquer fundamento, ou até mesmo contemporaneidade, há a decretação da custódia cautelar com base em argumentos que dizem respeito, na verdade, à tentativa de antecipar o cumprimento da pena final a ser imposta, a qual muitas vezes sequer pode chegar ao regime fechado.

Os embates não são poucos, muito menos insignificantes. O que se vê no manejo de diversos habeas corpus são na verdade notícias de que, atualmente, há a utilização da própria gravidade do crime como forma de "fazer surgir" fundamentos para custódia preventiva, não fossem suficientes as severas impetrações que dão conta de uma ordem pública travestida de caráter antecipatório da pena.

Emerge, portanto, da legislação, neste momento, o art. o §2 do art. 313, fruto da lei 13.964/19, que passa a prever que: "Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia."

Pois bem, em que pesa a significativa importância do referido §2, é preciso dizer que a inclusão daquilo que já constitui a base de qualquer estudo das ciências penais e processual penal pode não representar cessação alguma às prisões ilegais caso, ainda, aplicadores do Direito lancem mão da ordem pública como requisito genérico na demonstração da imprescindibilidade da decretação da prisão preventiva.

Evidente que aqui não se busca criticar a positivação do dispositivo em comento que, na humilde opinião do subscritor, era dispensável quando se parte da premissa da própria natureza da prisão cautelar que, de modo algum e jamais, pode representar antecipação de eventual pena a ser aplicada ao indivíduo.

O problema, todavia, reside - retome-se aqui a discussão já travada há muito tempo pela doutrina - na amplitude do conceito ordem pública que, não só pode servir para qualquer caso prático, como também, agora, para afastar o diploma legal, em é frequente o uso de tal medida para retratar suas próprias ideologias. Sob essa perspectiva, afinal, o que é ordem pública?

O que não deve ser admitido, também em hipótese alguma, é a ampliação da tutela jurídica pelo estado com a restrição das liberdades do homem, pautando as bases da moderna política criminal em práticas de tolerância zero, com o disfarce legislativo em que vira lei aquilo que já era sabido há muito tempo.

Vale salientar que o contrário também deve ter suas ressalvas, não se defende a permissão de um modelo totalmente libertário e abolicionista, que leve a supressão do aparelho penal, em ausência de credibilidade do sistema e, automaticamente, à insatisfação dos cidadãos, em total cenário de caos social.

O que se busca questionar é se com a imposição do texto legal, deixando claro, neste momento - para os esquecidos -, que a prisão preventiva, não será admitida como antecipação de pena, chegarão ao fim as várias prisões ilegais decretadas com base em termos genéricos e que representam, de forma mascarada, antecipação de pena. 

Muito provavelmente as prisões ilegais irão subsistir, dado o uso da ordem pública como elemento de (...) "manutenção e ampliação dos poderes discricionários do julgador, no viés punitivista, é claro, através de uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado4."

Constata-se, portanto, a utilização da prisão preventiva, "sob o manto genérico da ordem pública, com finalidade de prevenção de delitos, seja geral, seja especial antecipando-se a pena com vistas à demonstração de uma suposta maior eficácia perante a população e a mídia. Inegavelmente, cedendo-se ao apelo da mídia, a resposta precisa ser imediata, e a prisão processual vem sendo usada com vistas à "satisfação" de tais demandas5".

É preciso sim que o Direito Penal e Processual Penal acompanhe as mudanças sociais - principalmente por ser uma ciência atrelada aos indivíduos. É imprescindível também a compatibilização de um modelo seguro, sem que ponha em cheque as liberdades individuais e as próprias garantias conseguidas desde o início da evolução do próprio Direito Penal.

Precipuamente, todavia, é imprescindível um sistema honesto no sentido de garantir a aplicação de preceitos básicos sem que, necessariamente, exista sua positivação, até porque constituem elementos propedêuticos da ciência penal. Ou melhor: que busque extirpar conteúdos vagos e imprecisos que permitem a aplicação de institutos gravosos de forma ideológica e incauta, sem que para isso a positivação daquilo que já se sabe - inadmissão da prisão preventiva como antecipação de pena - seja necessária e permita ainda seu afastamento com maquiados de acordo com convicções pessoais.

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1 "[...] a) Primeira época. Crimen é atentado contra os deuses. Pena, meio de aplacar a cólera divina; b) Segunda época. Crimen é agressão violenta de uma tribo contra outra. Pena, vingança de sangue de tribo a tribo; c) Terceira época. Crimen é transgressão da ordem jurídica estabelecida pelo poder do estado. Pena é a reação do Estado contra a vontade individual oposta à sua." PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 84.

2 "[...] Tal pena aparece nas leis mais antigas, como o Código de Hamurabi, rei da Babilônia, século XXIII a.C., gravado em caracteres cuneiformes e encontrado nas ruinas de Susa. Por ele, se alguém tira um olho a outrem, perderá também um olho; se um osso, se lhe quebrará igualmente um osso etc. A preocupação com a justa retribuição era tal que, se um construtor construísse uma casa e esta desabasse sobre o proprietário, matando-o, aquele morreria, mas, se ruísse sobre o filho do dono do prédio, o filho do construtor perderia a vida são prescrições que se encontram nos § § 196, 197, 229 a 230". NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, v.1. 2003, p. 21.

3 "A Dogmática cumpre uma das mais importantes funções jurídicas em um Estado de Direito, a de garantir os direitos fundamentais do indivíduo frente ao poder arbitrário do Estado que, mesmo estando ajustado a certos limites, necessita de controle e da segurança. Entre outras vantagens desse proceder, a sistemática permite dar resposta a questões não pensadas até o momento, oferecendo assim maior segurança jurídica em comparação a outros métodos que não precedem sistematicamente". PLANAS, Ricardo Robles. A Identidade da Dogmática Jurídico-Penal. In: BADARÓ, Gustavo Henrique (org.). Doutrinas essenciais de direito penal e processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 

4 Disponível em: Clique aqui. Acesso em 26.jan.20.

5 SAAD, Marta; Assimilação das finalidades da pena pela prisão preventiva. Revista Eletrônica de Direito Penal, v. 1, p. 252.2013.

LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Crise de identidade da "ordem pública" como fundamento da prisão preventiva. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 26.jan.20.

NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, v.1. 2003.

PLANAS, Ricardo Robles. A Identidade da Dogmática Jurídico-Penal. In: BADARÓ, Gustavo Henrique (org.). Doutrinas essenciais de direito penal e processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

SAAD, Marta; Assimilação das finalidades da pena pela prisão preventiva. Revista Eletrônica de Direito Penal, v.1. 2013.

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*Lucas Andrey Battini é advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela UEL. Pós-Graduando em Direito Penal Econômico e Processo Penal Econômico pela PUCPR.

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