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Revestido de ideais que comprometem a universalidade e a igualdade, asseguradas pela Constituição, SUS sofre desmanche

Para fomentar a atividade da saúde privada, o Estado deixa de arrecadar 30 bilhões ao ano, o que colabora com o subfinanciamento do SUS, comprometendo sua finalidade essencial, que é a promoção da saúde.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Atualizado em 26 de setembro de 2019 09:26

Prestes a completar 29 anos, o Sistema Único de Saúde (SUS), está longe de atingir a sua maturidade. Interesses obscuros e gestão equivocada dificultam a compreensão de como o SUS deveria funcionar.

Criado pela CF de 1988 e regulamentado pela lei 8.080/90, o SUS é a organização administrativa do Estado, estruturada com base nos princípios e diretrizes estabelecidos pela CF visando a garantia do direito à saúde, ou seja, voltada à promoção, proteção e recuperação da saúde no Brasil.

O Sistema Único de Saúde, embora seja uma referência internacional em se tratando de política pública, está ameaçado pelo subfinanciamento e pela negligência dos gestores em respeitar a garantia constitucional dos cidadãos de acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.

Existe, ainda, um pensamento equivocado que separa o SUS dos planos de saúde. Os planos privados são componentes do sistema nacional de saúde e, assim, devem estar condicionados a uma política pública capaz de tratar o sistema de saúde como um todo. Caso contrário, continuaremos reforçando a ideia de que o SUS foi feito para pobres, o que fortalece a política de favorecimento dos planos de saúde e ignora o fato de que a saúde suplementar possui uma contribuição inexpressiva para as determinantes de saúde1, além de perdurarem no mercado algumas operadoras mal administradas e que prestam serviços de má qualidade.t

Nesse sentido, para que a saúde suplementar seja parte relevante no sistema de saúde brasileiro, é necessário aproximar a sua atuação dos princípios constitucionais, de modo que garantam efetivamente a promoção, prevenção e recuperação da saúde de seus beneficiários.

Para tanto, cabe à ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, desempenhar um papel essencial na regulação do setor, a fim de impedir que as operadoras cometam reiterados abusos contra seus consumidores.

Ao fomentar a atividade das operadoras, incentivando o crescimento do setor privado, o Estado deixa de arrecadar valores altíssimos. Apenas em 2018, estima-se que o Estado concedeu aos planos de saúde incentivo fiscal de aproximadamente 30 bilhões de reais, a título de isenção fiscal e renúncia tributária. 

Estranhamente, a contrapartida social dos planos privados - que deveriam caminhar de mãos dadas com o SUS - é a oneração do judiciário com pilhas de processos por mau atendimento e abusos. Só no primeiro semestre de 2019, o TJ/SP julgou mais de 17,5 mil ações judiciais contra as operadoras.

Para termos ideia da discrepância em números, em 2018, o faturamento do setor privado da saúde, que atende pouco mais de 22% da população, foi de quase 198 bilhões de reais, enquanto que o orçamento federal destinado à saúde pública foi de 139 bilhões.

Em 2017, ao defender a dissertação de mestrado, sugeri sete melhorias que a ANS deveria promover em sua atividade regulatória para diminuir a judicialização: i) A atuação da ANS deve promover, efetivamente, a proteção e defesa do consumidor; ii) Melhoria na regulamentação acerca das coberturas pelos planos de saúde; iii) Regulamentação dos reajustes nos contratos coletivos; iv) Revisão da regulamentação de reajustes por faixa etária; v) Regulamentação da rescisão nos contratos coletivos; vi) Revisão da regulamentação acerca da manutenção do consumidor aposentado no plano de saúde empresarial; e vii) Regulamentação do descredenciamento da rede de prestadores de serviço. Dois anos depois, a regulamentação não avançou em nenhum desses pontos.

Somado a tudo isso, o SUS perdeu, neste ano, R$ 9,5 bilhões na sua fatia do orçamento federal, de acordo com as restrições impostas pela emenda constitucional 95. Hospitais públicos atuam de forma precária, muitas vezes, desguarnecidos de leitos, profissionais de saúde e medicamentos.

As taxas de mortalidade infantil tendem a aumentar até 2030, de acordo com estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e, ainda, segundo auditoria recente do TCU, os diagnósticos de câncer levam até 200 dias para serem estabelecidos no SUS, o que pode implicar em óbitos precoces, tratamentos mais custosos e penosos pelo avanço da doença.  

O Estado ignora as premissas do SUS, estabelecidas em nossa Constituição: universalidade (direito de todos, sem discriminação), integralidade (atuação em diversas áreas como prevenção, tratamento e reabilitação) e igualdade (atendimento de cada paciente de acordo com suas necessidades específicas) no serviço público.

A falta de uma atenção maior para áreas prioritárias, como a saúde, permite que a doença da má gestão se alastre, cause estragos sociais e contamine a Constituição.  

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1 - Lei 8.080/90: Art. 3o. Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do país, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

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*Rafael Robba é advogado, sócio do Vilhena Silva Advogados, mestre em Saúde Coletiva.

 

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