"Como as coisas realmente são" na comunicação política contemporânea
No processo político comunicativo do século XXI, marcado por crises vultosas, o excesso de informação arrasta dados explicativos em proporções grotescas que ultrapassam a barreira da certeza, da definição e da linearidade, a ponto de causar perplexidades na formação da opinião pública. Informação descomedida pode gerar desinformação.
quarta-feira, 28 de agosto de 2019
Atualizado em 27 de agosto de 2019 15:23
"A comunicação política há muito se baseia no pressuposto de que para as pessoas serem convencidas, elas precisam apenas ser informadas de 'como as coisas realmente são' ".1 A afirmação de Giansante de simples nada tem e a cada dia trafega para complexa institucionalização, principalmente quando os elementos informativos têm prospectado posições na sociedade multifacetada. O texto pretende demonstrar como "as coisas realmente são" no processo político comunicativo, abordando, em sucintas partes, três subvenções argumentativas: a ambivalência da modernidade, os objetivos plurais dos agentes globais e a proteção de direitos fundamentais.
A primeira delas sinaliza que, em tempos de constitucionalismo multinível, o atropelo da informação pode, a um só passo, acinzentar o convencimento público ou clarear arestas participativas. A sociedade atual, além de não ser indene às mudanças tecnológicas, convive com a ambiguidade inerente ao progresso civilizatório supostamente caricaturado com o bônus da autodeterminação, de um lado, e com o ônus da autoafirmação, de outro. Vive-se a era da incerteza, da segurança jurídica insegura, da temporalidade atemporal.
A capacidade de autogoverno e da escolha livre dos rumos políticos de uma comunidade fragmentada por uma enxurrada de informações, em que uma simples "curtida" opinativa pode significar uma abrangente influência decisória, por si só, já coloca em xeque a autonomia e a autorregulação da comunidade mundial. Ao mesmo passo, exprimir vontades e defender suas próprias identidades parece não ser propriamente um encargo menos oneroso.
A era do populismo digital responsável pelo isolamento retórico e pela polarização social tem demonstrado que o autogoverno tem se desintegrado e que a escolha dos representantes políticos não se mostra mais tão livre assim, senão enclausurada por direcionamentos categóricos da iteratividade expansionista da tecnologia. Na era da ambivalência, até o sentido a contrário senso faz mais consenso, sendo, talvez, menos difícil demonstrar como "as coisas realmente não são". E o primeiro fecho que se extrai é que a comunicação política na modernidade é versátil e transitória, ou seja, "as coisas são indefinidas".
Corolário da reflexividade do século XXI, o segundo subsídio argumentativo, a hiperbolização da arena política caracterizada pela variedade de escopos dos atores pertencentes à constelação pós-nacional, é o resultado da plasticidade da era da ambivalência, pois a acomodação entre sociedade civil, Estado e conglomerados econômicos promove disputas horizontais perceptíveis nas intenções que, de per si, são divergentes, mas, sob o ponto de vista do espaço estratégico, são convergentes. A cada novo retrocesso, uma nova perspectiva. E assim a autonomia se move para um compartilhamento de forças e a autorregulação se desloca para um viés regulado.
O controle dos desígnios individuais e coletivos entre os atores globais passa a ser mais evidente na elasticidade da arena. Com os espaços sendo compactados, o contingenciamento dos efeitos da soberania estatal, da expansão global mercadológica dos grupos econômicos e da participação democrática da sociedade civil passa a ser uma questão intrigante, um trilema político, na visão de Rodrik2.
Nesse sentido, a comunicação política sofre ruídos de instabilidade e sonidos depurados no cenário participativo, o que acarreta uma indução social por vezes mitigada ou até mesmo uma despersuasão ora racional ora emocional, a ponto de mesclar ideais políticos diferenciados em uma sociedade em pedaços. Em se tratando de ambições distintas, torna-se menos desgastante expor como "as coisas realmente podem ser". Esse relatado "enfoque angonal da política", retratado por Frankenberg,3 concede sustentabilidade para entender o segundo desfecho, que a sua comunicação na modernidade é simultânea e dependente, isto é, "as coisas são indeterminadas".
A terceira vertente argumentativa diz respeito à proteção dos direitos fundamentais. Os níveis de solavancos aos bens jurídicos considerados universais na sociedade complexa têm sido contínuos, assim como perseverantes as suas vulnerabilidades às variações entre avanços e retrogradações desta quadra secular. O que dizer da liberdade política quando elementos informativos são deflagrados nas mídias sociais desestabilizando processos eleitorais? As incertezas do "apelo digital" multiplicam intransigências e discursos quizilosos, desnaturando o significado do que seja verdadeiro ou falso.
A sociedade da pós-verdade, em que mensagens clamorosas emocionalmente possuem mais influências na formação da opinião pública que dados objetivos, é pressionada, em uma só "clicada", por uma avalanche de informações autênticas e outras incontáveis comunicações espúrias, que, em razão da prática rotineira e hábito regular, tem se institucionalizado na opinião pública. Nesse ritmo, ao mesmo tempo furtivo e ostensivo, os direitos fundamentais têm sofrido com a tensão progressiva de seu afastamento gradual para a periferia do sistema jurídico-constitucional.
O engajamento da informação na "pós-política afetiva" passa a contemplar a visibilidade e popularidade como legitimidade, simbolizando influência, espaço e poder, em detrimento das monolíticas práticas de massa percebidas na política tradicional.4 Nesse passo, as intolerâncias sociais emergem e os direitos fundamentais imergem na câmufla da aliciante exposição moderna, porém, não contundente e muito menos convincente a ponto de homenagear o constitucionalismo enquanto processo constitucional racionalizador do poder.
A technopolitics ou comunicação política das plataformas digitais tem involucrado democracias e desestabilizado suas bases legitimadoras sociais. Não é sem razão que Treré atina "um poderoso sinônimo de protesto digital e ativismo on-line"5, um movimento de desenvolvimento de formas extremamente sofisticadas de ação política digital, capazes de organizar e difundir conteúdos eficazes, bem como de experimentação tecnológica, hábil na inovação de práticas de comunicação política que reconfiguram a própria democracia e conduzem à transformação sociocultural.
A relação dessa progressista pauta cibernética com a proteção de direitos fundamentais pode encontrar na irreconcilable variance um início de contra-argumentação como fator calibrador da ordem constitucional. No documento federalista 78, Hamilton previa que a Corte poderia derrubar leis que estivessem em uma "variação irreconciliável" com a Constituição americana6. Contextualizando tal concepção, as arestas do que efetivamente podem vir a ser uma base principiológica de liberdades de expressão necessitam de novos arranjos, novos limitadores, procedimentos que possam reduzir a amplitude semântica e possivelmente normativa.
O ensinamento de 1788 parece se acoplar aos dias atuais e os discursos informativos da comunicação política, caso ensejem "divergências incompatíveis" com a Constituição, merecem catalisações e filtros constitucionais correspondentes para o seu controle. Para a preservação do bloco de fundamentalidade dos direitos, imperioso reconhecer como "as coisas precisam ser". E o terceiro e último arremate deste ensaio é que a comunicação política na modernidade é volúvel e efêmera, ou seja, "as coisas são inconstantes".
Portanto, no processo político comunicativo do século XXI, marcado por crises vultosas, o excesso de informação arrasta dados explicativos em proporções grotescas que ultrapassam a barreira da certeza, da definição e da linearidade, a ponto de causar perplexidades na formação da opinião pública. Informação descomedida pode gerar desinformação. Em tempos de transição paradigmática, a anfibologia circunstancial, o elastério do espaço público e o respeito aos direitos fundamentais são elementos-chave de um circuito interligado e fundamentado na maneira como "as coisas não são", "como podem ser" e "como precisam ser". O debate está aberto e o seu ponto de partida, nessas circunstâncias, inspira a reflexão de que na comunicação política contemporânea "as coisas realmente são incertas, indefinidas e inconstantes".
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1 GIANSANTE, Gianluca. Online Political Communication: how to use the web to build consensus and boost participation. Springer, 2015. p. 142. "Political communication has long been based on the assumption that for people to be convinced, they need only be told 'how things really are'."
2 RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: democracy and the future of the world economy. New York and London: W.W. Norton, 2018. p. 184
3 FRANKENBERG, Günter. A Gramática da Constituição e do Direito. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. pp. 03-04, 22-26
4 KHOSRAVINIK, Majid. "Social Media Techno-Discursive Design, Affective Communication and Contemporary Politics". In: Fudan Journal of the Humanities and Social Sciences. v. 11, issue 4, 2018. DOI (clique aqui). p. 428. Disponível aqui. Acesso em 20 ago. 2019.
5 TRERÉ, Emiliano. Hybrid Media Activism: ecologies, imaginaries, algotithms. New York and London: Routledge, 2018. p. 141.
6 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. "The Federalist 78. The Judiciary Department". In: The Federalist Papers. Edited by Ian Shapiro with essays by John Dunn, Donald L. Horowitz e Eileen Hunt Botting. New Haven and London: Yale University Press, 2009. Disponível aqui. Acesso em 20 ago. 2019. p. 397.
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*Paulo Roberto Brasil Teles de Menezes é juiz de Direito no Estado do Maranhão.