Direitos fundamentais: mutação dos princípios da liberdade e da igualdade
A liberdade, no Estado democrático de direito reside no fato de os membros desse Estado serem autores e destinatários da norma jurídica, de serem sujeitos de deveres e de direitos conformados a partir da participação dos cidadãos.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019
Atualizado em 20 de fevereiro de 2019 10:04
I - Introdução:
É importante destacar que o presente trabalho não tem por pretensão esgotar qualquer aspecto do tema "direitos humanos", ou pelo menos, realizar apontamentos técnicos, respondendo as grandes questões concernentes ao tema proposto.
A abordagem que se fará terá como paradigma técnico-jurídico os apontamentos feitos pelo ilustre Mauro Cappelletti em sua obra "acesso a Justiça", traduzida pela eminente ministra do STF Drª Ellen Gracie.
Logo, é de se dizer que o objetivo deste artigo, é: absorvido o pensamento exposto por Cappelletti; utilizando-se de sua visão como lente para análise do tema (mesmo consideradas relevantes as críticas feitas a exposição historicista do autor) será analisar, de forma crítica, o atual paradigma de liberdade e igualdade, respaldados por uma nova leitura destes princípios constitucionais.
É importante destacar que Cappelletti não foi o primeiro a tratar sobre os direitos fundamentais como elementos fragmentados, ou melhor, como fato-social absolutamente dissociado, destacado e de fácil percepção no contexto social1. Todavia, é absolutamente clara sua noção historicista acerca da evolução do processo jurisdicional. Se é que o termo evolução é o mais adequado para caracterizar o desenrolar histórico.
Todavia, de maneira didática utilizar-se-à, repita-se, como lente, de sua obra. O desenvolvimento dos temas alcançarão outras doutrinas, outras percepções e conteúdos. Entretanto, para fins didáticos manter-se-à como marco teórico as descrições de Cappelletti.
Logo, a importância da obra em comento, como paradigma, se dá principalmente em razão de ser seu objeto de análise: a implementação da garantia de liberdade e de igualdade - direitos fundamentais dos homens - projetados no acesso ao processo jurisdicional e as garantias materiais constitucionais.
Este trabalho será dividido em três partes: 1 - princípio da liberdade no curso da história; 2 - o princípio da igualdade: desenrolar histórico e 3 - os princípios da liberdade e da igualdade, hoje.
Feitas estas considerações passa-se a exposição.
1 - Princípio da liberdade no curso da história.
É elucidante ressaltar que todas as formas de governo se legitimam através do direito, de uma Constituição - escrita ou não -, e que nesta se estabelecem regras e princípios que servirão de garantias e deveres aos indivíduos e ao próprio Estado.
Neste sentido, da leitura feita de Cappelletti, cabe apontar que à medida que foram rompidos os paradigmas de determinada época, surgiram novos conteúdos para os princípios da liberdade.
Desde a revolução francesa, com os ideais iluministas, a liberdade, como princípio norteador do ordenamento jurídico, fora objeto de contínua transformação substancial. Ou seja, o conteúdo de tal preceito normativo vem se desenvolvendo, se aprimorando, desde que se entendeu a importância desta norma como valor para a completa realização do cidadão e da sociedade.
Num recorte histórico-sociológico tem-se, inicialmente, o Estado liberal - vislumbrado a partir da segunda metade do século XIX - àquele pautado pelo formalismo jurídico sem garantias efetivas de acesso à Justiça, marcado pelas limitações advindas de uma legalidade aprovada e discutida por uma "melhor sociedade" (OLIVEIRA, 2003, p.37) que visava manter seu status quo de detentores da propriedade privada.
Neste Estado, a liberdade era abstrata, considerada como o direito de fazer tudo o que não fosse proibido por um mínimo de leis. Todos tinham liberdade de processar, porém poucos podiam se manter no processo. Tal sistema jurídico cooperava para a manutenção da exploração do homem pelo homem e com a concentração de riquezas.2
Esmagada pela realidade liberal, a sociedade responde dando forma a um novo sistema político - jurídico de organização: o Estado de bem estar social. Nesses tempos o Estado se revela como o grande pai. Surgem os direitos de segunda geração, os chamados direitos sociais.
Tenta-se amenizar os problemas sociais causados pela concentração de riqueza. Num lado do mundo - especificamente nos Estados Unidos - uma "segunda onda" surge tornando o processo acessível a todos. Pois, além de tentar3 garantir os direitos sociais, precisava-se de um real acesso à Justiça. Nesse período o Estado investe na advocacia financiando assistência jurídica para àqueles que necessitavam.
Contudo, do outro lado do mundo - exatamente na Europa - as manifestações garantistas resultam desde o socialismo até a social democracia italiana, alemã entre outras. É nesse embaraçoso contexto histórico, não diferente do acima apontado, que a organização política configurava um paradigma que pressupunha a materialização dos direitos individuais anteriormente formais.
A liberdade, neste sentido, não mais será reconhecida como a possibilidade de fazer tudo o que a lei não proíbe, antes será a garantia de um mínimo reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento social ou econômico do lado mais fraco.4
Com o final da segunda guerra mundial, o Estado social inicia seu declínio. A sociedade, vendo os abusos ocorridos nesta, começa a questionar a atuação e intervenção do Estado nas esferas íntimas do indivíduo. Tal lição fora extraída dos campos de concentração, das bombas nucleares.
A sociedade não é mais a mesma. A complexidade das relações internacionais marca esse tempo. A indústria evoluiu, o saber é superado dia a dia. As expectativas dos homens face ao Estado se transformam. Não apenas o indivíduo em sua singularidade ou sua realização na coletividade interessa, novos assuntos entram na pauta do dia: meio ambiente, direito do consumidor, biodireito, entre outros. Os titulares desses direitos não podem ser definidos e determinados unitariamente na comunidade. E o Estado não pode ser responsabilizado sozinho pelos danos causados aos entes sociais.
Nesse momento, entidades importantes na definição desse novo paradigma surgem: o MP, as ONG's, entre outras, vêm refletir as necessidades e aspirações da sociedade civil.
É nesse ponto da história que se torna possível repensar o direito enquanto meio legitimador da vontade soberana do povo. A liberdade avança para mais além dos interesses do homem-social e alcança o homem-humano que revestido da única característica que o torna sensível - sua própria humanidade - desenha um novo conceito de liberdade:
é remontada como direitos que expressam e possibilitam uma comunidade de princípios, integrada por membros que reciprocamente se reconhecem livres e iguais, co-autores das leis que regem sua vida comum. Esses direitos fundamentais adquirem uma conotação de forte cunho procedimental que cobra de imediato a cidadania, o direito de participação, ainda que institucionalmente mediatizada, no debate público constitutivo e conformador da soberania democrática [...] (CATONNI, 2004, P.37).
Logo, pode-se compreender que a liberdade é possível e se realiza através da participação dos cidadãos no contínuo debate. Neste sentido, é vencida a velha ideia de liberdade meramente material, esse princípio reveste-se de instrumentalidade e avança para além do direito de ir, vir, associar-se, desdobrando-se e atingindo todos âmbitos socais, porque se implementa na própria construção do debate. Seu conteúdo maximizado visa o acesso, o direito de participação, de expressão.
É a partir desse entendimento que se torna possível conceber o Estado democrático de direito. Neste sentido, é bastante relevante compreender, antes de qualquer tentativa de conceituar o referido Estado, que este é suprassução5 do Estado social, que, por sua vez, foi a negação do Estado liberal e assim como este foi à negação do Estado absolutista e assim por diante.
O Estado democrático de direito é àquele que preza pelo pleno acesso de seus pares ao processo que por isso tem como fundamento à liberdade, isonomia e a cidadania participativa.
Logo, é o Estado democrático de direito, àquele que visa a plena realização de seus membros, reconhecendo-os, concomitantemente, como autores e destinatários da norma jurídica e de todos seus atos.
Infere-se da leitura de Cappelletti - agregada a outros pensadores historicistas6 - que as circunstâncias desta evolução do conteúdo do princípio da liberdade e como ocorreu alcançou todos os âmbitos estatais, por exemplo: no Judiciário (a ideia de construção da decisão judicial pelas partes - através das garantias de ampla defesa, contraditório, dos recursos - a possibilidade a ação popular e de ação civil pública, a inserção do instituto "amicus curie", etc); já no Poder Legislativo (a possibilidade de propositura, pela sociedade, de projetos de lei, a instituição de referendo e plebiscito, etc); no Poder Executivo (a abertura da controladoria da União para consultas públicas, a aprovação da lei de processo administrativo, etc).
Enfim, enfatiza-se, portanto, que a liberdade, no Estado democrático de direito reside no fato de os membros desse Estado serem autores e destinatários da norma jurídica, de serem sujeitos de deveres e de direitos conformados a partir da participação dos cidadãos. No âmbito privado a aplicação do princípio da liberdade, sob esta nova perspectiva, trouxe a exaltação do argumento para as relações sociais, não só pela valorização do poder negocial, todavia incentivando-o. Exemplo desta realidade se dá nas questões trabalhistas com o reconhecimento das convenções coletivas de trabalho e acordos coletivos de trabalho e no âmbito empresarial seria a ampliação e difusão de meios alternativos de solução de conflitos, como exemplo o fomento a conciliação e a modesta, mas real expansão da utilização da arbitragem.
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1 O jurista Karel Vasak em 1979 foi quem, pela primeira vez utilizou a expressão "gerações de direitos", disseminando, desde então essa concepção (LIMA, 2003).
2 Tal momento histórico é também denominado como o período de acesso formal à Justiça. Apesar de ser adepta da "HISTÓRIA NOVA" (movimento historiográfico que não vincula datas aos fatos, por entender que não há como, a todo tempo, conectar tais elementos, em razão de ser dinâmica e corrente os acontecimentos no mundo) pode-se dizer que esse período vai do final da Revolução Francesa até, mais ou menos 1920. Reitero que há uma complexidade nos acontecimentos que ocorrem no mundo. Inclusive, há quem diga, que materialmente, o Brasil não conseguiu vencer, ainda, a segunda geração (onda ou dimensão) de direitos constitucionais (direitos sociais). Não obstante na realidade, já tenha sido constitucionalizado os direitos de 3ª e 4ª geração (os direitos difusos).
3 Digo tentar porque LIMA, 2003; refere-se desta maneira ao movimento ocorrido nos Estados Unidos da América, neste período, principalmente pelo fato de que, naquele país, a CF não tratava das matérias concernentes aos direitos sociais, antes são os diplomas Estaduais que se ocupavam de instituir e tutelar de tais garantias. O referido autor, não fez qualquer menção ao desenvolvimento das garantias sociais, hoje, nos EUA.
4 Esse segundo momento trata de 1920 a 1945.
5 Suprassução - também conhecida como síntese - é o terceiro momento do movimento dialético; quais sejam: tese, antítese e suprassução. Esse terceiro movimento, não necessariamente caracteriza a evolução dos que o antecederam, ele é, simplesmente, um novo momento.
6 Por todos Norberto Bobbio, A era dos direitos.
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*Virgínia Amaral Torre é advogada.