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Promoção de direitos sociais em tempos de crise econômica

Gustavo Delvaux Parma e Leonardo Fernandes de Sá

O caso do passe livre intermunicipal no Estado do Rio de Janeiro e a reserva do possível

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Atualizado em 9 de outubro de 2019 18:11

Sob os auspícios da Constituição de 1988, uma série de direitos sociais vieram a ser garantidos no ordenamento jurídico e um longo processo para garantir a sua real efetividade tomou início. Diversos estudos doutrinários discorreram sobre este ampliado rol de direitos cuja extensividade e abrangência são consideradas inéditas na trajetória constitucional brasileira. Neste contexto, observa-se a importância do Poder Público como real materializador destas garantias sociais. Todavia, este é um processo complexo, em que ao mesmo tempo há uma pluralidade de demandas, vindas dos mais diversos setores da sociedade, para que a efetivação destes direitos ocorra em um contínuo processo de ampliação deste rol e, de outro lado, a necessidade de conciliar esta sistemática com as condições fáticas e recursos disponíveis - dentro daquilo que a doutrina chama de reserva do possível.

Portanto, a reserva do possível nada mais é do que um limite imposto pelo próprio conceito de escassez econômica. Em outras palavras, ainda que se queira uma solução imediatista para todos os problemas de origem material, as próprias condições econômicas obrigam o Poder Público, em sua esfera administrativa, a se organizar de maneira a, com os recursos disponíveis, trazer as soluções que sejam compatíveis com a realidade social político-econômica em que o Estado se encontre, ainda que estas - ou a ausência destas - não sejam as mais ideais ou populares.

A partir desta dicotomia, encontra-se uma das questões mais problemáticas dentro do debate democrático, que é justamente como conciliar as mais diversas demandas populares com as condições econômicas que não permitem a implementação de toda a principiologia presente na hermenêutica constitucional.

Nesse interim, a análise econômica do direito pode ser entendida como importante ferramenta de promoção e administração de políticas públicas, justamente por, em um esforço metodológico, tentar compreender e prever o comportamento de participantes de um determinado sistema econômico regulado pela legislação. Sua utilidade dar-se-á na melhoria legislativa, não só formalmente como em seu mérito, por pontuar em leis existentes ou que venham a ser propostas, consequências não-intencionais e indesejáveis, sob o ponto de vista da eficiência econômica1.

Logo, a metodologia da análise econômica do direito pode ser um instrumento eficaz para que se compatibilize a promoção e efetivação de direitos sociais com a questão da reserva do possível, compreendendo o dilema da escassez econômica versus a consolidação de anseios sociais. Ou seja, o devido planejamento da máquina pública é fundamental para se pensar a sua atuação dentro da realidade e, consequentemente, para o seu devido funcionamento no longo prazo.

Recentemente, tal situação de tensão entre a ampliação dos direitos sociais e o cenário fático econômico ficou exposta com o veto do governador Luiz Fernando Pezão feito no dia 27 de setembro deste ano - e sua posterior derrubada no dia 9 de dezembro - ao projeto de lei 4.021-A/18 aprovado em segunda discussão pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em 28 de agosto, que previa a ampliação do rol de contemplados pela gratuidade dos serviços de transporte intermunicipal de passageiros nos ônibus do Estado do Rio de Janeiro. Segundo este projeto, que ficou conhecido como "passe livre intermunicipal", estudantes de ensino técnico de nível médio, integrado, concomitante e subsequente, bem como estudantes de ensino superior das redes privada e pública, passariam a receber o benefício, além de outras categorias estudantis que já constavam como beneficiárias2.

Nas razões do veto, o governador do Rio de Janeiro, entre outras considerações, acusou o fato de que o projeto de lei não previa a fonte de custeio desta gratuidade e, segundo ele, isto feriria o artigo 112, § 2º, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que determina a vedação de propostas que visem conceder gratuidade em serviços públicos prestados de forma indireta sem indicar a fonte de recursos para implementação de tal onerosidade aos cofres públicos estaduais. Não somente, o governador também alegou que a lei complementar 159/17 - popularmente conhecida como "plano de recuperação fiscal" - vedaria a criação de "despesa obrigatória de caráter continuado" em seu artigo 8º, inciso VII e, portanto, o projeto de lei desrespeitaria esta vedação e seria causa para a extinção ilegal do regime de recuperação fiscal negociado com a União3.

Resta argumentar a racionalidade econômica por trás do artigo 112, § 2º da CE/RJ ao vincular as despesas de eventual gratuidade a uma fonte de recursos clara e transparente. Pode-se também inferir a importância de tal dispositivo legal para a manutenção da responsabilidade fiscal do Estado do Rio, na medida em que, se a legislação fosse seguida à risca pela assembleia legislativa fluminense, eventuais rombos orçamentários seriam mais facilmente prevenidos, com maior controle do gasto público e consequentemente maior capacidade de formular políticas públicas eficazes e sustentáveis à longo prazo. O caso descrito serve para ilustrar o discutido anteriormente. Em uma situação de recessão econômica e sob um regime de recuperação fiscal, a questão da reserva do possível torna-se ainda mais sensível, visto que o orçamento do Estado do Rio de Janeiro acaba por engessar-se, limitando-se em um período de grave crise orçamentária, onde o que se espera é a responsabilidade fiscal e a alocação responsável de recursos.

Não se trata de negar toda e qualquer ampliação de direitos, pois demandas sociais como as do passe livre intermunicipal são legítimas e fundamentais para a democracia, mas sim de realizar um planejamento funcional justamente para que se garanta a viabilidade da atuação do poder estadual. No contexto atual, questões como a aferição da exequibilidade de políticas públicas - amparada pela análise econômica do direito - tais como aquela que foi aprovada na ALERJ servem para garantir a efetivação material de direitos consagrados na Constituição de 1988, pois uma gestão irresponsável, orçamentária e fiscalmente, não é capaz de cumprir o proposto no pacto federativo, mesmo munida das melhores intenções.

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1 POSNER, Richard A. "Values and Consequences: An Introduction to Economic Analysis of Law". Coase-Sandor Institute for Law & Economics Working Paper No. 53, 1998, p.2.

2 ALERJ, projeto de lei 4.021-A/18.

3 DIARIO OFICIAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, Página 1 da Poder Executivo do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro (DOERJ) de 27 de setembro de 2018

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*Gustavo Delvaux Parma é graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ-FND) e pesquisador do Laboratório de Estudos Institucionais (LETACI-PPGD UFRJ)

*Leonardo Fernandes de Sá é graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ-FND), pesquisador do Laboratório de Estudos Institucionais (LETACI-PPGD UFRJ), e estagiário de Direito no Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

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