Delação premiada: punição e impunidade seletivas
A delação premiada representou um importante avanço para a investigação criminal no Brasil, mas é urgente a necessidade de seu aprimoramento.
sexta-feira, 19 de maio de 2017
Atualizado às 07:54
O instituto da delação premiada ou colaboração premiada - denominação mais palatável para a aparente deslealdade e legítimo egoísmo de um indivíduo contra seu grupo em busca de proveito pessoal que minimize as consequências de sua conduta criminosa -, é festejado como principal responsável pelo incremento do combate à impunidade no Brasil.
Ao contar com informações íntimas de um delator sobre si mesmo e sobre terceiros, os investigadores acreditam ter acesso a detalhes que investigações ordinárias seriam incapazes de alcançar.
Contudo, ao banalizar o uso do instituto, os investigadores dispensam o esgotamento da apuração contra todos os agentes do grupo criminoso pelos meios independentes, contentando-se em punir somente alguns: os que não se dispuseram a negociar, os que demoraram a negociar ou, simplesmente, os que o Ministério Púbico descartou negociar.
A resistência ao acordo de delação premiada será vencida pela prisão ou por sua simples ameaça através do exemplo da prisão de um terceiro. Nessas condições, cedo ou tarde os investigados sucumbirão, dispondo-se a falar o que sabem e o que os investigadores acham que eles sabem sobre qualquer fato que constitua crime próprio ou alheio, ocorrido em qualquer época e lugar, envolvendo qualquer pessoa, sujeita ou não às atribuições persecutórias imediatas do investigador.
Começa, então, uma espécie de "corte", um jogo desigual de sedução e poder, em que investigados oferecem temas e mais temas para despertar o interesse de investigadores sem garantia alguma de sucesso, pois o acordo será fechado se, e somente com quem, o MP quiser.
Assim, a decisão sobre quais indivíduos serão contemplados com a benevolência dos órgãos cuja atribuição é persegui-los, e em quais termos serão premiados, constitui discricionariedade quase absoluta do MP, disso resultando uma primeira divisão do grupo criminoso: uns estarão sujeitos a condenações, por exemplo, de 20 anos de reclusão em regime fechado, conforme disponha a lei, enquanto outros, coautores dos mesmíssimos crimes, ficarão confinados em suas residências por um, dois, ou quatro anos, com ou sem tornozeleira eletrônica, conforme livremente acordado.
Parece evidente, portanto, que o instituto é vulnerável e está sujeito a graves distorções, sobretudo porque, a pretexto de combater a impunidade, perseguindo implacavelmente alguns, o MP promoverá a impunidade de outros, sem fundamentação e critérios legais e objetivos.
De fato, não é fácil justificar o casuísmo da celebração de acordos com determinados servidores públicos desleais ao dever funcional, operadores financeiros, empresários ou políticos desonestos e, ao mesmo tempo, deixar de fazê-lo com outros tantos servidores, operadores, empresários ou políticos da mesma estirpe, igualmente dispostos e habilitados a colaborar.
Não se diga que os acordos estejam sujeitos a controle pela autoridade judiciária competente, pois ao juiz serão submetidos apenas os acordos que porventura avançarem se o MP se dispuser a realizá-los. Rechaçada pelo órgão ministerial uma proposta de iniciativa do candidato a delator, o acordo simplesmente não irá adiante e das tratativas não terá conhecimento o Poder Judiciário.
A posição do investigado é tão frágil que, após meses de negociação, depois de oferecer informações sensíveis para seduzir o MP, as negociações podem ser unilateralmente rompidas, restando ao proponente delator rejeitado espiar décadas de pena privativa de liberdade, destituído dos segredos revelados ao seu acusador e que, agora, de algum modo poderão prejudicá-lo.
O instituto falha, portanto, com a ausência de critério objetivo e dever de fundamentar a opção de fazer acordo com diversos dos vários investigados - não só com a primeira empresa, como ocorre na leniência -; falha com a ausência de critérios objetivos para estabelecimento das bases em que a premiação substituirá a pena legalmente cominada aos crimes apurados; falha, ainda, com a falta de documentação e garantia de sigilo das informações sensíveis oferecidas em informais reuniões de negociação com os mesmos responsáveis pela acusação em juízo; falha com a disparidade de armas; com a falta de um mediador e com a vulnerabilidade pelo rompimento unilateral das negociações após a revelação de informações sensíveis.
Admita-se que a delação premiada representou um importante avanço para a investigação criminal no Brasil, mas é urgente a necessidade de seu aprimoramento antes que o discurso despótico e populista de salvação da pátria assuma de vez os abusos cometidos em nome do combate à impunidade, descambando para práticas totalitárias irreversíveis, com distorção dos princípios que inspiraram a criação do instituto ou mitigação de outros tantos princípios que deveriam limitá-lo.
Se nada for feito a respeito, a maior razão de ser do instituto da delação premiada, o combate à impunidade, será sua mais grave distorção e uma nova forma de injustiça seletiva no Brasil.
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*Maurício de Oliveira Campos Júnior é advogado criminalista.