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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
As últimas colunas foram dedicadas a explicar o processo de concepção, apresentação, debate e deliberação do projeto de novo estatuto do São Paulo Futebol Clube ("SPFC"). O processo chegou ao fim no último dia 3 de dezembro. Nessa data, 84% dos associados presentes à assembleia geral votaram a favor da reforma estatutária. Os números finais foram os seguintes: 621 votos a favor, 117 contra, 1 voto em branco e 1 voto nulo. A partir de agora, os administradores do SPFC deverão materializar os propósitos e os anseios dos são-paulinos, sobretudo no que se refere ao moderno e paradigmático modelo de governança previsto no novo estatuto. O êxito na implementação do novo modelo não beneficiará apenas o clube. Aliás, o SPFC deve ser encarado, neste momento, como um "projeto piloto" do futebol brasileiro. Se for bem-sucedido, deverá se expandir para outros times. Caso contrário, contribuirá para afundar o futebol num esquema obsoleto e que facilita a apropriação da coisa social por interesses privados e pessoais de alguns poucos agentes que dominam as relações clubísticas. Por esses motivos, a responsabilidade do SPFC e de seus administradores extrapola os muros do Morumbi. Sobre eles pesa, sim, a responsabilidade - e o dever - de inaugurar uma nova fase na forma como a sociedade encara e valoriza a atividade futebolística. O futebol é um bem cultural e econômico, que deve ser levado a sério. Porém, a sociedade não o valorizará e não o reconhecerá enquanto os próprios comandantes do esporte o tratarem como um subproduto. Aí se confirma, portanto, a importância histórica do novo estatuto do SPFC, que se transcreve, integralmente, a seguir. Confira na íntegra o estatuto São Paulo Futebol Clube.
A Livraria da Vila promoveu, no sábado, 26/11/16, uma incrível conversa com a participação de Casagrande, Juca Kfouri, José Trajano, Marcelo Rubens Paiva e Gilvan Ribeiro. O que a tornou incrível não foi a reunião dessas pessoas, pois, como são amigas de longa data, se encontram, aparentemente, com frequência; mas, a inédita abertura ao público, que pôde acompanhar e interagir com os prosadores. O tema era a relação de amor entre Sócrates e Casagrande, uma das mais bem-sucedidas duplas de ataque que o futebol brasileiro produziu. Influenciado pelo encontro, resolvi narrar três curtas passagens, duas que presenciei e uma que ouvi. Elas envolvem os dois jogadores e o jornalista Juca Kfouri. Sócrates A história se passa em 2009. Um dia da semana, acho que terça-feira. Quase meia-noite. Toca o telefone de casa e eu corro para atender, aflito para não acordar Olivia, que nascera havia poucos meses. Do outro lado da linha ecoou a voz do jornalista Victor Birner. "Topa ir tomar algo na Vila"? "Está louco, amanhã tenho uma reunião às 8h30. E a Olivia, você sabe bem, é o padrinho dela, não me deixa dormir há meses. Estou destruído". "Pena, o Sócrates, o Juca, o Chico Sá e mais uma turma do Programa vão comigo". "Onde mesmo você disse que nos encontramos? Chegarei em 15 minutos". Nesse dia, ou melhor, nessa madrugada, enfim, conheci o capitão da seleção de 82. Lá pelas 4h00, tomei coragem e resolvi fazer uma pergunta sobre um tema que me perturba até hoje: Sarriá. Sim, porque, se eu tivesse poder divino para reverter um acontecimento histórico - ou poético - não seria Troia ou Waterloo. Minha escolha recairia sobre Sarriá. Nenhum feito heroico se igualaria ao da pessoa que tivesse marcado o terceiro gol do Brasil, não o da vitória, mas de um simples empate, daquele time que, do ponto de vista plástico, artístico, é insuperável na história do futebol. "Sócrates, desculpe-me pela pergunta, talvez impertinente a essa hora da madrugada, mas não tenho como evitar: o que representa Sarriá para você"? Nesse momento, ele levava um copo com cerveja à boca. Mas interrompeu abruptamente o movimento e fixou o olhar, durante, não sei, um ou dois minutos - essa foi a minha sensação, tamanha a agonia que tive com o seu silêncio -, até que ele se virou para mim e disse: "ainda hoje passo noites sem dormir pensando naquela tarde. Nunca me livrarei desse pesadelo". Nenhuma palavra precisa ser acrescentada para evidenciar o seu caráter, a sua grandeza. Casagrande A fala de Casagrande, a respeito de Sócrates, no colóquio protagonizado pela mencionada livraria, é fascinante: "Sócrates é gênio. Eu sou o complemento do gênio". "Eu me satisfazia com essa posição. E me orgulho dela. Quantas pessoas foram complemento de um gênio"? "Acho que fui um grande jogador, o melhor companheiro que ele teve". "Jogar ao seu lado era muito difícil. Ele era muito inteligente. Quando a bola se dirigia a ele, três ou quatro possibilidades de jogadas passavam por sua cabeça. Eu precisava adivinhar o que se passava na cabeça dele e o que ele iria aprontar. E sempre aprontava. Era muito tenso. Eu perdia quatro quilos por jogo". Essa revelação não expressava falsa modéstia. Ecoava, ao contrário, em tom sincero, uma sinceridade desconcertante. Típica do herói que se curva diante de Zeus. A importância de Casagrande extrapola os gols e as atuações que encantaram torcedores do Corinthians, do São Paulo, do Torino, do Flamengo ou da seleção brasileira. O futebol foi - e é - mero instrumento. Suas corajosas posições à época das Diretas Já, a coliderança da Democracia Corintiana, a coerência em campo e a sua batalha de vida contra a dependência química, que se tornou pública e passou a ser um lema, com o propósito de ajudar pessoas que sofrem de patologias similares, revelam o caráter desse herói. Um herói humano. Por isso, sujeito às glórias e aos reveses da vida. Juca Kfouri Quando o livro Futebol, Mercado e Estado ficou pronto, resolvemos apresentá-lo ao Jornalista Juca Kfouri. O coautor, José Francisco Manssur, o conhecia. Cuidou, por isso, de enviar uma cópia do manuscrito e marcar um almoço. No horário marcado, eu abri a porta do restaurante. Juca lá estava, sentado ao bar. Manssur atrasou-se. Tenso, apresentei-me. A tensão tinha motivo. Afinal, como acabaria, ou melhor, como iniciaria a conversa em que apresentaríamos e defenderíamos, para uma pessoa que guiava o carro para Joaquim Câmara Ferreira (conhecido por "Velho" ou "Toledo"), comandante da ALN após a morte de Marighella, e que se mantém - como poucos - coerente em relações aos seus princípios e às suas opções humanísticas e políticas, que a solução do futebol era o mercado? Não um mercado selvagem, desregulado e descontrolado, é verdade. Porém, um mercado que deveria ser criado por meio da atuação legislativa do Estado, com o propósito de preservar o futebol como elemento essencial da cultura brasileira, e, ao mesmo tempo, fixar as bases de um novo modelo de governação e de propriedade dos ativos futebolísticos, rompendo com o anacrônico sistema vigente desde o século XIX. E que, ainda, previa a criação de um sistema de financiamento privado de futuras sociedades anônimas do futebol e de um instrumento de formação e educação de crianças matriculadas em escolas públicas. Mesmo assim, o mercado. A conversa deveria ser curta, por conta de compromissos profissionais do nosso interlocutor. Ao menos foi o que ele anunciou, certamente para se livrar, educadamente, de nossa pretensiosa prosa. Pois bem. Após mais de duas horas de conversa e duas - ou três, não me lembro - garrafas de vinho, Juca se virou para Manssur e disse: "Manssur ... acho que é isso: a solução é o mercado". Se qualquer pessoa atribuir essa frase ao Juca, será imediatamente tachada de mentirosa ou insana. Risco que eu aceito correr. Sócrates, Casagrande e Juca Kfouri integram a lista dos heróis de nosso futebol. Cada um com a sua história, com a sua trajetória, com as suas lutas (e um deles sem ter chutado uma bola profissionalmente). Heróis que dedicaram - ou dedicam - suas vidas a causas humanistas e que perceberam, como poucos, que o futebol é muito mais do que um esporte; é o elemento da nossa cultura, talvez o único, que pode produzir uma verdadeira transformação social.
Apresentei, nas quatro edições anteriores desta coluna, as proposições do projeto de novo estatuto do São Paulo Futebol Clube ("SPFC"). O projeto foi submetido aos associados, que puderam se manifestar, mediante a formulação de emendas. Centenas delas foram formuladas e, novamente, debatidas e consideradas pela Comissão Sistematizadora. Da continuidade do trabalho da Comissão surgiu uma segunda proposta, ajustada, portanto, em função das emendas. Esta segunda proposta foi submetida ao Conselho Deliberativo, no dia 16 de novembro, que a aprovou por unanimidade. O processo se encerrará no dia 3 de dezembro, por ocasião da Assembleia Geral de Associados do SPFC. Nesta oportunidade, os associados dirão sim, ou não, ao novo estatuto. A vontade da Assembleia é soberana. Sua decisão implicará a manutenção do modelo atual ou a adoção de uma estrutura que será, provavelmente, a mais moderna do Brasil. O texto do novo estatuto traz algumas novidades em relação ao que dispunha a primeira versão. Relembremos e vejamos como ficaram os principais aspectos relacionados à governação. O SPFC terá um Conselho Fiscal, composto por 5 membros. Todos deverão ser associados que não integrem qualquer outro órgão do SPFC. Ele também terá um Conselho de Administração, com 9 membros, sendo 3 indicados pelo Conselho Deliberativo, dentre os seus integrantes, 1 pelo Conselho Consultivo, dentre os seus integrantes, e 3 pelo Diretor Presidente (também denominado Presidente Eleito). Os outros 2 membros são, necessariamente, o Diretor Presidente e o Diretor Vice-Presidente do SPFC. Todos os 3 membros indicados pelo Diretor Presidente serão independentes, remunerados e escolhidos no mercado, dentre pessoas que tenham experiência e qualificações para o exercício do cargo. A indicação deverá ser confirmada pelo Conselho de Administração. A Diretoria passará a ter uma nova formação. Ela se desmembrará em Diretoria Eleita e Diretoria Executiva. A Diretoria Eleita será formada por Presidente e Vice, eleitos em chapa. O mandato será de 3 anos. Não se permitirá a reeleição do Presidente. O Presidente Eleito poderá ser remunerado, desde que se dedique com exclusividade à função. A remuneração não poderá ultrapassar certo limite, previsto no próprio estatuto. A Diretoria Executiva será formada por 3 a 9 membros, todos profissionais, com notório conhecimento em suas áreas de atuação, indicados pelo Presidente Eleito. A indicação e a remuneração dos diretores executivos deverão ser aprovadas pelo Conselho de Administração. Cria-se, assim, um instrumento de controle da indicação dos membros da Diretoria Executiva. Aliás, todas as indicações pessoais do Presidente Eleito, incluindo os nomes para o Conselho de Administração, sujeitam-se à confirmação do órgão colegiado. A novo texto do projeto de estatuto também sofisticou o sistema de controle de condutas. Vejamos alguns instrumentos. O orçamento elaborado pelo Presidente Eleito deverá ser submetido ao Conselho de Administração e, somete após o seu parecer, encaminhado para o Conselho Deliberativo. Caso o Presidente não o apresente no prazo previsto no estatuto, será imediatamente afastado para apuração de responsabilidade. A inobservância do orçamento passou a ser considerada uma falta grave. Se exceder em 5% o montante aprovado, também será motivo para início de procedimento de apuração de responsabilidade. As contas anuais e outros documentos, previstos no art. 133 da lei 6.404/76, deverão ser preparados conforme os preceitos da legislação vigente e os princípios de contabilidade geralmente aceitos, e observarão métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo. Ademais, serão auditados por empresa registrada na CVM. Finalmente, além da fixação de um prazo de 12 meses para realização de estudo para separação do futebol das demais atividades, ofereceu-se a mesma solução para realização de estudo e apresentação de proposta para eleição direta do Diretor Presidente e do Vice, por meio de Assembleia Geral de Associados e, eventualmente, da participação de sócios torcedores. Esta proposta, se viável e aprovada, mudará o órgão responsável pela eleição da Diretoria que é, atualmente, o Conselho Deliberativo. Esses são, enfim, alguns aspectos que refletem o novo modelo de governação que se pretende implementar no SPFC e que será votado no dia 03 de dezembro de 2016.
Após a apresentação das proposições de separação do futebol das demais atividades clubísticas (Parte I), de criação do Conselho de Administração (Parte II) e da disciplina concebida para a diretoria (Parte III), o texto desta coluna aborda as formas de fiscalização, controle e responsabilização da administração do São Paulo Futebol Clube ("SPFC"). Conselho Fiscal O modelo proposto na reforma desloca o poder de fiscalização do Conselho Deliberativo para o associado. Esse movimento tem dois propósitos: efetividade dos instrumentos fiscalizatórios e despolitização da composição do órgão. O Conselho Fiscal será composto por cinco membros titulares eleitos pelo Conselho Deliberativo dentre, necessariamente, associados que não integram órgãos de administração, deliberação ou consultivo do SPFC. Qualquer associado poderá se candidatar. A fiscalização, porém, exige conhecimento técnico. Por isso, somente poderão ser eleitos associados que (i) gozem de reputação ilibada, (ii) sejam diplomados em curso de nível universitário nas cadeiras de administração, economia, ciências contábeis, direito ou engenharia, ou que tenham exercido, por prazo mínimo de 3 (três) anos, cargo de conselheiro de administração ou de conselheiro fiscal de sociedade empresária de porte compatível com o do SPFC, ou (iii) não tenham ocupado cargo no Conselho de Administração, na Diretoria Eleita, na Diretoria Social ou na Diretoria Executiva, no mandato anterior. A fim de evitar conflitos de interesse, veda-se o ingresso no órgão de pessoa que for cônjuge ou companheira, ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 4o grau, de membro dos órgãos de administração. O Conselho Fiscal é um órgão colegiado, que delibera por maioria. Sua competência, dentre outras matérias, envolve: a) eleger o seu Presidente e o seu Vice-Presidente; b) fiscalizar, por qualquer de seus membros, os atos praticados pelo Conselho de Administração, pela Diretoria Eleita, pela Diretoria Social e pela Diretoria Executiva, e verificar o cumprimento dos seus deveres legais e estatutários; c) opinar sobre o relatório anual da Administração do SPFC, fazendo constar do seu parecer as informações complementares que julgar necessárias ou úteis à deliberação do Conselho Deliberativo; d) denunciar, de maneira fundamentada, por qualquer de seus membros, a qualquer órgão de Administração, e, se qualquer um destes não tomar as providências necessárias para a proteção dos interesses do SPFC, ao Conselho Deliberativo, os erros, fraudes ou crimes que descobrirem, e sugerir providências úteis ao SPFC; e) analisar, mensalmente, o balancete e demais demonstrações financeiras elaboradas periodicamente pela Administração; f) examinar as demonstrações financeiras do exercício social e sobre elas opinar; g) elaborar o seu Regimento Interno; e h) apresentar relatórios de suas atividades nas reuniões do Conselho Deliberativo, nos termos da letra "c" do artigo 62. Importante ressaltar que, apesar de se tratar de órgão que delibera em colégio, qualquer conselheiro tem competência fiscalizatória independente, podendo praticar qualquer ato necessário ao cumprimento de seu dever. O membro também poderá solicitar os esclarecimentos ou informações que julgar necessários relacionados a atos realizados pela administração a qualquer auditor independente que esteja prestando serviço ao SPFC. O estatuto estabelece que os conselheiros deverão se reunir, ordinariamente, ao menos uma vez por mês. Além destas reuniões ordinárias, o órgão poderá reunir-se extraordinariamente, sempre que necessário. Orçamento A peça orçamentaria, o orçamento e o sistema de aprovação e de execução devem se realizar com observância de um ritual relativamente simples, porém, sofisticado. O Presidente da Diretoria, em conjunto com a Diretoria Executiva, deverá elaborar, anualmente, uma proposta orçamentária, para o exercício social seguinte. A proposta orçamentária será una e anual. Mas deverá ser elaborada separadamente por atividade econômica e por modalidade esportiva, de modo distinto das atividades recreativas e sociais. Ela será encaminhada pelo Presidente da Diretoria ao Conselho de Administração, no mês de novembro, em dia fixado pelo próprio Conselho de Administração. Após debate e análise, o Conselho de Administração remeterá a proposta orçamentária ao Conselho Deliberativo, com o seu parecer, até o dia 05 de dezembro. O Conselho Deliberativo, então, submeterá a proposta a debate e votação. A peça aprovada por este órgão se converterá no orçamento do SPFC, para o ano seguinte, o qual somente poderá ser modificado, qualquer que seja a modificação, mediante deliberação do próprio Conselho Deliberativo. Caso o Presidente Eleito não apresente a proposta orçamentária ao Conselho de Administração no prazo fixado no estatuto, ele será imediatamente afastado, para averiguação dos motivos e apuração de responsabilidade. A Diretoria Eleita, em conjunto com a Diretoria Executiva, deverá cumprir o orçamento exatamente conforme aprovado pelo Conselho Deliberativo. Não haverá espaço para improvisos ou jeitinhos. A peça passa a ser, portanto, "sagrada". Inclusive, caso se verifique que a Diretoria excedeu em 5% ou mais o orçamento aprovado, será instaurado um procedimento para apuração de responsabilidade. Este excedente, para fins de responsabilização, se aplicará e deverá ser verificado por área, atividade e no agregado. A responsabilidade, se o caso, será apurada individualmente. Demonstrações Financeiras O Presidente Eleito, em conjunto com a Diretoria Executiva, deverá elaborar, anualmente, para conhecimento de todos os associados e sujeição ao Conselho de Administração e deliberação do Conselho Deliberativo, os seguintes documentos: (i) relatório sobre as atividades sociais e os principais fatos do exercício social; (ii) balanço patrimonial; (iii) demonstração dos excedentes ou défices do exercício; (iv) demonstração dos resultados do exercício; (v) demonstração das origens e aplicações dos recursos; e (vi) demonstração das mutações do patrimônio social. Todos os documentos deverão ser disponibilizados no sítio eletrônico do SPFC. A formulação deverá observar os preceitos da legislação vigente e os princípios de contabilidade geralmente aceitos. Responsabilidade A proposta inova ao arquitetar um modelo de responsabilização compatível com a importância do exercício da função de administrador de uma entidade do porte do SPFC. Determina-se, assim, que será vedada a prática de qualquer ato ou negócio sem observância do estatuto. A vedação se aplicará especialmente a atos que envolver ou implicar obrigação ou dever relativo a negócios estranhos aos propósitos do SPFC ou que não observar as atribuições e os poderes atribuídos na forma do estatuto. Além disso, os membros da administração deverão exercer suas funções no exclusivo interesse do SPFC. Para concluir, o estatuto estabelece que cada administrador será pessoalmente responsável pelos atos praticados, dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou do estatuto. Essas são algumas das propostas que, aparentemente, inaugurarão uma nova fase na forma de governação e gestão do futebol no Brasil.
Como se vem afirmando nessa sequência de textos sobre o tema, a proposta de reforma do estatuto do São Paulo Futebol Clube (SPFC) projeta um modelo de governança que pode inaugurar uma nova fase na forma de gestão dos clubes no Brasil. Após a apresentação das proposições de separação do futebol das demais atividades clubísticas (Parte I) e de criação do Conselho de Administração (Parte II), no texto de hoje se apresenta a disciplina concebida para a Diretoria. Neste sentido, a proposta prevê o desmembramento da Diretoria em Diretoria Eleita e Diretoria Executiva. A Diretoria Eleita, escolhida quadrienalmente pelo Conselho Deliberativo dentre os seus membros, será composta pelo Presidente e pelo Vice-Presidente. Os mandatos dos Diretores Eleitos serão de 4 anos, sendo proibida a reeleição. O presidente também não poderá ser eleito para o cargo de vice-presidente no mandato subsequente. Mas o vice-presidente poderá se candidatar para o cargo de presidente. A posse da Diretoria Eleita se deslocará de abril, como ocorre atualmente, para o dia 1o de janeiro, permitindo a ela programar a temporada futebolística desde o início do ano. Outra novidade é a possibilidade de o presidente eleito ser remunerado. A remuneração, no entanto, somente poderá ser praticada se ele se dedicar exclusivamente ao exercício das suas funções no SPFC. Ou seja, não será remunerado o Presidente que mantiver suas atividades profissionais paralelas. A remuneração deverá ser aprovada pelo Conselho de Administração, mas não será, em qualquer hipótese, superior a 70% (setenta por cento) do teto do funcionalismo público federal. O vice-presidente Eleito não será remunerado. Dentre as competências do presidente eleito, relacionam-se: a) Nomear e destituir os membros da Diretoria Social; b) Nomear e destituir os membros da Diretoria Executiva, e definir suas atribuições; c) Representar o SPFC, em juízo ou fora dele; d) Comunicar, dentro de 30 (trinta) dias contados de sua posse, aos Associados, a composição da Diretoria Social e da Diretoria Executiva e, no caso desta, divulgar suas atribuições. A comunicação deverá ser formulada por meio do sítio eletrônico do SPFC; e) Cumprir e fazer com que a Diretoria Social e a Diretoria Executiva cumpram o Estatuto; f) Assinar, sempre em conjunto com o Diretor Executivo que tiver atribuição financeira, documentos, contratos, cheques, títulos e obrigações, de qualquer natureza, em nome do SPFC; g) Outorgar poderes, em conjunto com o Diretor Executivo que tiver atribuição financeira, para empregados assinarem procurações, de qualquer natureza, para prática de atos que sejam da competência da Diretoria Eleita ou da Diretoria Executiva; h) Autorizar, por escrito e em ordem cronológica, atos administrativos; i) Nomear o chefe da delegação de qualquer atividade desempenhada, social ou profissionalmente, pelo SPFC; e j) Praticar todos os atos que lhe forem atribuídos pelo Estatuto ou pela legislação vigente. Para melhor organizar as atividades internas e sociais do SPFC, o presidente eleito poderá indicar, dentre os Associados do SPFC, inclusive membros do Conselho Deliberativo ou do Conselho Consultivo, Diretores Sociais, que o auxiliarão exclusivamente na administração daquelas atividades. Estes Diretores não serão remunerados e não poderão interferir no funcionamento e nos trabalhos da Diretoria Executiva. Como apontado acima, além da Diretoria Eleita e, eventualmente, da Diretoria Social, o SPFC terá, necessariamente, uma Diretoria Executiva, indicada pelo presidente eleito. Ela será formada por 3 (três) a 9 (nove) membros, que sejam profissionais com dedicação exclusiva ao exercício das funções para as quais forem indicados. Os Diretores Executivos serão remunerados e deverão ter notório conhecimento em suas áreas de atuação. A remuneração será fixada de acordo com padrões de mercado, levando-se em conta a experiência do profissional e as funções que exercerá no SPFC. Competirá ao Conselho de Administração aprovar o pacote remuneratório de cada integrante da Diretoria Executiva. O Estatuto estabelece, ademais, um princípio que norteará a conduta de qualquer Diretor: o dever de exercer suas funções no exclusivo interesse do SPFC. Para concluir, será vedado e considerado nulo qualquer ato ou negócio praticado por qualquer membro da Diretoria, inclusive por membros da Diretoria Social ou da Diretoria Executiva, sem observância do Estatuto, especialmente que envolver ou implicar obrigação ou dever relativo a negócios estranhos aos propósitos do SPFC ou que não observe as atribuições e os poderes atribuídos ao Diretor, na forma do Estatuto. Aliás, os diretores serão pessoalmente responsáveis, inclusive perante o SPFC, pelos atos praticados, dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou do Estatuto.
A proposta de reforma do estatuto do São Paulo Futebol Clube (SPFC), de que se começou a tratar na coluna da semana passada (19/10/16), projeta um modelo de governança que pode inaugurar uma nova fase na forma de gerir os clubes no Brasil. Como se verá adiante, o modelo incorpora certas estruturas adotadas pelas sociedades empresárias, sem, contudo, desconsiderar a natureza jurídica das associações civis e a complexidade de suas relações internas. As proposições levam em conta, portanto, práticas reconhecidas e adotadas no mercado, e, ao mesmo tempo, consideram as estruturas orgânicas existentes no SPFC e suas funções históricas. Assume-se, assim, a premissa de que uma absoluta adaptação aos padrões das sociedades empresárias se operará apenas quando se separar a empresa futebolística das demais atividades praticadas pelo clube, e esses padrões se aplicarão à sociedade anônima do futebol, criada e controlada pelo próprio clube. Enquanto isso, a associação civil, atual proprietária dos ativos destinados à prática do futebol, deve ser governada com base em uma série de técnicas que afastem a possibilidade de surgimento de administradores plenipotenciários e que dominem, sem formas legitimas de controle, as relações internas e as decisões a respeito da alocação de recursos e de assunção de obrigações. Esse modelo de governo do clube, ademais, deve prevalecer e se consolidar após a eventual separação, para lidar adequadamente com as situações que sempre existirão no plano do clube (e que será, neste caso, o controlador da empresa do futebol). O Conselho de Administração, cuja criação é sugerida na reforma, tem, neste sentido, uma função essencial. Sua composição tem como propósito prover uma adequada representatividade dos interesses do SPFC e, ao mesmo tempo, garantir a governabilidade e a preservação das funções executivas da Diretoria. Dos 9 membros que o integrarão, caso a proposta seja aprovada, 2 serão indicados pelo Conselho Deliberativo, dentre os conselheiros deste órgão, 1 pelo Conselho Consultivo, dentre os conselheiros natos deste órgão, e 4 pelo Presidente Eleito, sendo que 3 deles devem ser independentes. Os dois outros membros serão, necessariamente, o Presidente e o Vice-Presidente Eleitos. O presidente eleito presidirá o órgão, cumulando, portanto, presidências. Note-se que a exigência de 1/3 de membros independentes é uma novidade no ambiente do futebol. Será considerado independente, aliás, o conselheiro que: "(i) não ocupar qualquer cargo permanente, de qualquer natureza, inclusive eletivo, no SPFC; (ii) não tenha ocupado, nos 4 (quatro) anos anteriores, qualquer cargo permanente, de qualquer natureza, inclusive eletivo, no SPFC; (iii) não preste serviço remunerado, não seja fornecedor de produtos ou serviços, não receba qualquer contrapartida, de qualquer natureza, do SPFC, e não tenha realizado essas atividades nos 4 (quatro) anos anteriores; (iv) não seja sócio controlador de sociedade empresária que se enquadre no inciso (iii) deste parágrafo; (v) não seja cônjuge ou companheira, ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 4o grau, de membro do Conselho Deliberativo, do Conselho Fiscal, do Conselho de Administração, da Diretoria Eleita, da Diretoria Social ou da Diretoria Executiva, ou das pessoas indicadas nos incisos anteriores". Os conselheiros independentes deverão gozar de reputação ilibada e ter notório conhecimento em áreas que sejam relevantes para o SPFC, ou ter atuado como diretor ou conselheiro de sociedade empresária de porte no mínimo semelhante ao do próprio SPFC. O Conselho de Administração deverá reunir-se ordinariamente uma vez por mês e, de modo extraordinário, sempre que convocado por seu Presidente ou por pelo menos 5 conselheiros. Pretende-se, com a fixação dessa periodicidade, impor um ritmo de trabalho e um acompanhamento permanente dos temas essenciais do SPFC. O texto propositivo imputa ao órgão as seguintes competências: a) Fiscalizar a gestão da Diretoria Eleita, da Diretoria Social e da Diretoria Executiva; b) Aprovar a remuneração, se e quando o caso, de membros do Conselho Fiscal, do Conselho de Administração, do Presidente Eleito e/ou da Diretoria Executiva; c) Examinar, mediante solicitação, livros, papéis, contratos e documentos do SPFC, bem como solicitar informações a respeito de contratos em negociação; d) Manifestar-se, emitindo parecer fundamentado, previamente à submissão ao Conselho Deliberativo, sobre as contas e as demonstrações financeiras anuais do SPFC; e) Escolher e destituir os Auditores Independentes; f) Autorizar a prática de atos gratuitos, independentemente da motivação, inclusive a cessão do estádio ou outras dependências sociais, esportivas ou propriedades do SPFC; g) Aprovar a concessão de quaisquer garantias, de qualquer natureza, de qualquer valor, exceto de natureza judicial, cuja competência será exclusiva da Diretoria Eleita; h) Aprovar a proposta orçamentária anual elaborada pela Diretoria Eleita, e submetê-la para aprovação final do Conselho Deliberativo; i) Opinar, previamente à deliberação pelo Conselho Deliberativo, sobre propostas de separação societária do futebol profissional, bem como sobre a constituição de sociedade empresária, para qualquer finalidade; j) Aprovar a celebração de qualquer contrato, provisório ou definitivo, de montante total superior a 1.500 (mil e quinhentas) Contribuições Associativas, exceto relacionado às contratações de atletas e comissão técnica, observado o disposto nos parágrafos 1o e 2o deste artigo 106; k) Aprovar a celebração de qualquer contrato, provisório ou definitivo, cujo prazo seja superior ao prazo remanescente do mandato da Diretoria Eleita, exceto relacionado às contratações de atletas e comissão técnica, observado o disposto nos parágrafos 1o e 2o deste artigo 106; l) Aprovar a celebração de qualquer contrato, de qualquer natureza, de qualquer valor, que implique o pagamento de comissão, gratificação ou qualquer remuneração, a qualquer intermediário, exceto nos casos expressamente previstos nos parágrafos 1o e 2o deste artigo 106; m) Aprovar a celebração de qualquer contrato, de qualquer natureza, de qualquer valor, a ser celebrado com qualquer pessoa que integre o Conselho Deliberativo, o Conselho Consultivo, o Conselho Fiscal, o Conselho de Administração, a Diretoria Eleita, a Diretoria Social ou a Diretoria Executiva, ou que seja um Associado do SPFC; n) Aprovar a celebração de qualquer contrato, de qualquer natureza, de qualquer valor, a ser celebrado com qualquer pessoa que seja cônjuge ou companheira, ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 4o grau, das pessoas mencionadas no inciso anterior; o) Aprovar a celebração de qualquer contrato com sociedade empresária na qual as pessoas indicadas nas alíneas (m) e/ou (n) sejam controladoras; p) Aprovar a proposta de contratação, pela Diretoria Eleita, de qualquer espécie de apólice de seguro ou de garantia, incluindo seguro para exercício dos cargos de Diretoria Eleita ou Executiva, Conselho de Administração e Conselho Fiscal; e q) Criar comitês executivos do Conselho de Administração, compostos por até 3 (três) membros, para acompanhar o cumprimento pela Diretoria Eleita de suas atribuições. Desloca-se, assim, ao órgão colegiado, uma série de matérias que, num modelo sem a sua existência, se atribuía à decisão isolada do Presidente. Ou, então, que se submetia à deliberação do Conselho Deliberativo, um órgão com feições mais políticas do que administrativas. Para concluir, as deliberações do órgão serão tomadas pela maioria de votos dos membros presentes. Além da criação do Conselho de Administração, a proposta de reforma também inova em relação à composição e às funções da Diretoria, inclusive pela determinação de cargos executivos remunerados, que serão ocupados por profissionais reputados, que se dediquem com exclusividade à direção dos temas do SPFC. Sobre essa estrutura se discorrerá na coluna da próxima semana.
A solução para os problemas do futebol é o mercado. Não um mercado selvagem, desregulado, libertário. Mas um ambiente concebido para aproximar os instrumentos de financiamento da empresa econômica de uma atividade - o futebol - que se confunde com a própria formação cultural do brasileiro. Esse ambiente não se formará sem a observância e a preservação de valores caros tanto aos agentes futebolísticos como aos de mercado. Aí reside o segredo, portanto: o encontro de culturas, ou de segmentos que, em uma perspectiva realmente democrática, já teriam se envolvido e se relacionado (provavelmente) há muito tempo. Os clubes, para que atraiam o que o mercado pode lhes oferecer, devem rever o modelo de propriedade do futebol, separando-o das demais atividades clubísticas, e estruturar um modelo de governança compassado com as necessidades e (legítimas) exigências dos provedores de capital. Os agentes de mercado, de seu turno, devem se sujeitar a uma regulação que, apesar de não controlar fluxos de entrada e saída, protege um bem com o qual o cidadão-torcedor estabelece uma relação que transcende racionalizações. Esse modelo ideal ainda está longe de ser atingido. Não existe um time brasileiro que o tenha adotado em sua plenitude. Longe disso, aliás: as experiências tentadas se protagonizaram especialmente pelo discurso, e não pelo efetivo movimento transformacional. O motivo é - ou deveria - ser evidente: enquanto não se operar a separação do associativismo político da empresa econômica futebolística, qualquer reforma organizacional não irá além de um maior ou menor controle sobre processos essencialmente amadores e delimitados por um estatuto concebido para pacificar relações associativas.Por isso, aliás, que o mercado também não se deu conta da potencialidade da atividade futebolística. Ou, se deu, não se deixou seduzir pelo seu canto de sereia. Uma recente iniciativa, porém, pode inaugurar uma nova fase do futebol brasileiro. O São Paulo Futebol Clube ("SPFC") nomeou uma Comissão de Associados ("Comissão"), formada por 9 membros, para propor uma reforma de seu marco estatutário. Após uma rodada inicial de sugestões por parte dos próprios associados, a Comissão produziu um trabalho sistematizado, e o devolveu, para nova consulta, aos associados e membros de órgãos sociais. Quando essa segunda fase de consultas terminar, a Comissão irá produzir o texto final, que deverá ser votado, em caráter definitivo, pela Assembleia Geral, em dezembro de 2016. A aprovação do texto poderá revelar-se paradigmática sobretudo por: (i) determinar que se realize, dentro de determinado prazo, um estudo de viabilidade econômica da separação do futebol das demais atividades do clube; e (ii) prever um modelo de governação realmente evoluído em relação ao que se pratica localmente. Na presente Coluna se abordará a proposta de separação (e, no texto da próxima semana, a governança). De acordo com a proposta de reforma, o presidente do SPFC deverá realizar, no prazo de 12 meses, um estudo de viabilidade econômica da separação do futebol das demais atividades do clube. Participarão do estudo especialistas com notável conhecimento dos temas envolvidos. A contratação dessas pessoas se sujeitará à aprovação do Conselho de Administração do SPFC (um órgão criado pela reforma estatutária em curso, e sobre o qual se discorrerá na próxima semana).   O Conselho de Administração criará um Comitê Especial de Acompanhamento do Estudo de Separação, composto por 3 membros. Um deles poderá acompanhar os trabalhos dos especialistas, sem interferir no poder e na autonomia do Presidente do SPFC.Espera-se que esse membro acompanhante elabore relatórios mensais ao Conselho de Administração, reportando suas atividades e emitindo opiniões, para apreciação dos demais membros, aproximando o órgão colegiado da diretoria. Concluído o estudo, o presidente emitirá opinião, recomendando ou não, a separação. A opinião, acompanhada do estudo completo, será então encaminhada ao Conselho de Administração.O Conselho de Administração também emitirá uma opinião, podendo, inclusive, divergir daquela formulada pelo presidente. Na sequência, ambas as opiniões serão remetidas, simultaneamente, ao Conselho Deliberativo e ao Conselho Consultivo.  O Conselho Consultivo se manifestará previamente, compondo um conjunto de 3 opiniões, que servirá de referência para o Conselho Deliberativo, que irá, enfim, deliberar a respeito do mérito, recomendando ou não a separação. No caso de recomendação, passa-se ao derradeiro escrutínio, da Assembleia Geral de Associados, que deliberará, em caráter definitivo, sobre o tema. A deliberação será tomada pela maioria dos Associados presentes à Assembleia Geral. Esse procedimento é necessário por um motivo estrutural: considerando a inexistência de uma via de direito específica destinada a regular a passagem do modelo amador ao profissional, os mecanismos disponíveis aos clubes são os mesmos utilizados por qualquer empresa. As empresas, porém, sujeitam-se a regimes ordinários, distintos daqueles extraordinários aplicáveis ao futebol, que é tratado de modo especial e subvencionado pelo Estado. Daí a necessidade de se confirmar, por meio de um estudo de viabilidade, sobretudo enquanto o novo marco regulatório do futebol não seja votado e entre em vigor, a sustentabilidade da separação. No caso do SPFC, aliás, a proposta de estatuto aborda essa realidade, e estabelece que, se o Conselho Deliberativo não convocar a Assembleia Geral, em decorrência da reprovação do estudo, ou se a Assembleia Geral reprovar a separação, o processo deva ser renovado na hipótese de promulgação de uma nova lei que crie um tipo ou uma forma societária visando justamente à separação do futebol profissional das demais atividades dos clubes associativos. Enfim, o caminho proposto na reforma estatutária do SPFC, se aprovado pela Assembleia Geral, e, posteriormente, se confirmada a viabilidade separatória, poderá inaugurar uma nova - e necessária - fase, que implicará possível libertação de um modelo arcaico e impeditivo do acesso a meios de financiamento para o desenvolvimento social e econômico do futebol no Brasil.
No ano 2000, a BM&FBovespa criou o Novo Mercado, composto de níveis diferenciados de listagem de ações de companhias abertas. Estes níveis diferenciados estabeleceram, por meio da autorregulação, padrões mais elevados de governação societária em relação aos exigidos pela legislação. Naquele momento, o ceticismo com a iniciativa era enorme. Por vários motivos, entre eles, as incertezas políticas e a apatia do mercado de capitais. A primeira oferta ocorreu apenas em 2002, protagonizada pela CCR S.A. - Companhia de Concessões Rodoviárias. A partir desse marco, no entanto, os agentes econômicos passaram a valorizar o ambiente e a priorizá-lo em novas emissões. Atualmente, não se realiza uma nova emissão fora de um dos níveis de listagem, de modo que o segmento chamado de tradicional tornou-se um hospedeiro de companhias "antigas" ou tradicionais, apenas. Além do Novo Mercado, a BM&FBovespa lançou, em 2006, outra importante iniciativa, que, porém, ainda não atingiu a magnitude esperada: o Bovespa Mais. Seu propósito é contribuir para o desenvolvimento do mercado, atraindo companhias que pretendam acessá-lo de forma gradual. Destina-se, sobretudo, às pequenas e médias companhias, que realizam captações menores, adequadas ao seu estado de amadurecimento. Por esses motivos, as companhias se submetem a normas simplificadas, compatíveis com as suas pretensões de captação e com os seus momentos empresariais. Os custos que são impostos a elas também são diferenciados. Por exemplo, beneficiam-se de isenção de registro e desconto gradual na taxa e manutenção de listagem. Em contrapartida, assumem compromissos de adotar padrões diferenciados de transparência e governança. A experiência e o sucesso do Novo Mercado, de um lado, e a arquitetura do Bovespa Mais, de outro, podem contribuir para formação de um nível especial de listagem destinado ao futebol. É com esse propósito, aliás, que o PL 5.082/16, de autoria do deputado Federal Otavio Leite (PSDB/RJ), estabelece, em seu art. 47, que: "Art. 47. Caso alguma entidade administradora de mercado organizado de valores mobiliários crie um segmento especial de listagem para a SAF, prevendo práticas diferenciadas de governança corporativa, a administração pública direta ou indireta somente poderá subscrever ações ou valores mobiliários conversíveis em ações de SAF que aderir ao segmento especial. Parágrafo único. Qualquer contrato celebrado entre a administração pública indireta e a SAF, especialmente de empréstimo ou financiamento, deverá conter cláusula que obrigue a SAF a, no caso de obtenção de registro de emissor de valores mobiliários perante a CVM, aderir a segmento especial de listagem para a SAF, instituído por entidade administradora de mercado organizado de valores mobiliários, prevendo práticas diferenciadas de governança corporativa". O texto não privilegia qualquer entidade administradora de mercado organizado de valores mobiliários. Mas é evidente que, pela sua posição de liderança e, mais do que isso, pela sua história na construção do mercado brasileiro, a BM&FBovespa poderia manter essa escrita e, de modo inovador, estudar a criação de um ambiente para atração e emissão de Sociedades Anônimas do Futebol, constituídas pelos clubes: o BovespaFut. O BovespaFut seria, portanto, um segmento especial, com normas complementares de transparência e governança, em relação àquelas constantes de lei, dos demais segmentos existentes e dos estatutos das Sociedades Anônimas do Futebol. A iniciativa, sobretudo por parte de uma entidade que é, ela também, uma companhia com fins lucrativos, haveria de ter um propósito econômico; uma motivação para que seus acionistas e administradores apoiassem a proposta. Ou seja, não se pode esperar que ela pratique atos altruístas. Aliás, eles não combinam com o atual estágio do futebol. Mas poderia se imaginar que a BM&FBovespa, diante da oportunidade e da grandiosidade do mercado do futebol, participasse do processo transformacional. Para que um segmento como o BovespaFut funcione, ele deve ter aderência, volume, emissores. Talvez não logo após a sua criação, a exemplo do que ocorreu com o Novo Mercado. Mas haverá de atrair casos de sucesso, para início da construção de um novo ambiente, de outro Novo Mercado, de um novo capítulo na história do futebol brasileiro. Aí se revelam, portanto, motivos para que o Congresso Nacional crie a Sociedade Anônima do Futebol, na forma do PL 5.082/16, que será o veículo adequado para organização do esporte e para o seu financiamento, especialmente por meio de emissões no mercado. E, quem sabe, de emissões em níveis diferenciados, como o BovespaFut.
quarta-feira, 28 de setembro de 2016

O sonho de Tite (ou o salvamento do futebol)

Tite tinha um sonho. Seu sonho bateu em sua porta e ele foi atrás de sua realização. Para trás deixou, no entanto, a esperança coletiva de uma nova ordem do futebol brasileiro. Algo que sua competência, na condução do time nacional, não poderá produzir. A negativa ao convite para conduzir a seleção talvez tivesse sido o golpe de misericórdia em um modelo que não encontra qualquer motivo para continuar existindo. Está desgastado, ultrapassado e não representa dignamente o seu símbolo. Tite poderia, lá na frente, retornar como herói, aclamado pelo povo. Ou não. E aí está o dilema do futebol brasileiro. Num cenário menos poético, o comando se recomporia e encontraria uma alternativa para se manter onde sempre esteve: no poder. E o sonho do treinador teria se aprisionado em suas próprias ideias. Ou na esperança das pessoas que identificam nele um salvador. Nada além disso. O futebol brasileiro parece que sempre se conduziu de modo individualista. Cada um por si. Inclusive dentro de campo, como apontou com precisão o jornalista Paulo Calçade, em artigo publicado na edição de 26/9/16, do Estadão. Cada agente luta por seus objetivos, por seus sonhos. Para tornar-se herói ou se viabilizar politicamente. Ou simplesmente por (legítimos) motivos financeiros. Aqueles que tinham ao menos um verniz de ideal, com raras exceções, viram a página, sem muita hesitação, diante de uma proposta irrecusável. Essa postura, aliás, vem de cima. De quem administrou - e administra - o futebol. De quem dita, portanto, as regras do jogo. É uma característica do sistema. Imaginar que um jogador ou um treinador possa, isoladamente, combater e transformar essa realidade é ingenuidade. Nem mesmo uma pequena coletividade tem sido exitosa nesses propósitos. O bom senso atesta essa afirmação. Sua força inicial foi rapidamente neutralizada pelo status quo. Além disso, o movimento sentiu na própria pele os efeitos de um modelo que impede a gestação de mudanças, sejam elas protagonizadas pelos clubes ou por iniciativas genuinamente republicanas: a falta de financiamento. Sem fontes de financiamento, não há empresa. Se não há empresa, definham os empregos, a arrecadação de tributos, o desenvolvimento econômico. A consequência é a contenção do avanço social. Essa lógica se aplica ao futebol. Sem meios de financiar-se, não se pode investir na educação e na formação de jogadores. Não se tem condição para reforçar as marcas dos times, suas estruturas e os seus produtos. Os times brasileiros, diante dessa realidade, não competem com os mesmos instrumentos de seus pares, distribuídos globalmente. E, pior, afundam, aí sim, coletivamente. O excesso de individualismo leva, portanto, o futebol brasileiro a um quase suicídio coletivo. Guarani e Portuguesa já tomaram esse rumo. O Vasco tem flertado com a desgraça a cada dois anos. O Palmeiras, até recentemente, parecia que não teria destino diferente. O Botafogo, afundado em dívidas, se salva à conta de entidades sobrenaturais de almeida. O Corinthians, teme-se, pode enfrentar problemas realmente sérios para satisfação de sua dívida milionária. O São Paulo e o Internacional, exemplos recentes de sucesso internacional, vivem, provavelmente, as maiores crises de suas histórias. Enfim, a situação é realmente crítica. E nenhuma iniciativa foi capaz de revertê-la. O Profut, como já se disse antes, é fruto de uma medida emergencial, necessária para evitar o desaparecimento de times tradicionais. Mas ele não deixa de ser, também, um problema. Porque se mostra mais preocupado com as sanções aos inadimplentes do que em criar um novo ambiente transformador. Ele não induz uma atuação coletiva. Por isso tudo, jogar o fardo das frustrações decorrentes desse estado de coisas sobre as costas de Tite não é justo. Talvez seja desumano. E Tite é um simples, porém muito competente, ser humano. Apenas o Estado, atuando como regulador, poderá oferecer a via de direito capaz de impor uma transformação comportamental. Sem essa atuação, que me parece necessária e urgente, não se afastará do imaginário popular o folclore de que o futebol representa a capacidade do brasileiro de se ajustar, de se adaptar, de dar um jeitinho e com a sua inspiração divina, superar qualquer desafio. Aliás, também não se pode imputar a uma medida legislativa a solução para todas as mazelas. Ela servirá como instrumento transformacional e de criação de um novo ambiente - de um novo mercado - que terá a força do futebol como o seu motivo de existir. Mas os times, especialmente eles, manejados sob uma nova forma jurídica - a sociedade anônima do futebol - deverão, de uma vez por todas, entender que, ao contrário do que se passa no competitivo ambiente capitalista, em que a destruição do concorrente pode ser a solução de um agente, no plano do futebol, a força coletiva implica a força individual. Os times não competem, ao menos internamente, pelo mesmo torcedor. A fidelidade futebolística não encontra paralelo no ambiente capitalista. Daí sua magia. E as oportunidades. Oponentes dentro de campo, mas sócios em seus propósitos desenvolvimentistas. Esse deve ser o lema dos times. Do futebol. Do futebol do Brasil. Juntos, os times podem transformar o campeonato brasileiro em objeto planetário de desejo e de admiração. Juntos, podem impor um novo modelo, que terá o jogador e o time como peças centrais. E juntos poderão, quando o Estado cumprir sua função reguladora, constituir, se quiserem, uma sociedade anônima do futebol para gerir e negociar coletivamente determinados interesses.
quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Os produtos do futebol

A grandeza do futebol brasileiro se justifica pela existência de elementos internos e externos, que se alimentam e criam uma percepção mitificada e idolatrada. A mitificação e a idolatria, mais do que percepções, compõem os próprios elementos externos. São, por definição, subjetivos, e se fundamentam nos elementos internos. A expansão destes reforça a construção - e a manutenção - da mitologia. Quatro componentes internos afetam necessariamente a boa ordem sistêmica: os jogadores, os times, a seleção e os campeonatos. São os principais produtos do futebol. Entre eles existe, aliás, uma inegável interdependência. É possível que o abalo de um não interfira imediata ou irreversivelmente nos outros. Ou que estes, bem estruturados, corrijam as imperfeições isoladas. Mas a disfunção serial interfere, sim, em todo o sistema. Ainda pior: quando todos esses elementos passam a, de algum modo, atuar de modo disforme, sem uma organização sustentável, não apenas externalizam as somatizações, como criam uma fissura sensorial, que afeta a formação do mito e rompe a relação de idolatria. Essa breve narrativa pretende explicar, sob determinado enfoque, a crise entre o torcedor brasileiro e o futebol. E também desnudar a incompetência de seus organizadores, responsáveis pela crise de um processo histórico. O futebol não rivaliza, no planeta, com qualquer outra forma de manifestação esportiva, lúdica ou de entretenimento. Apesar da falta de rigor nesta classificação, ela é importante para enfatizar a importância do jogo de bola. Nada, nem a música, tem o seu alcance. Nesse cenário, nenhum país foi capaz de assumir o protagonismo futebolístico como o Brasil. E os motivos eram os seus produtos. No passado, formavam-se, de modo espontâneo, jogadores em grande escala e de qualidade - muitos, inclusive, candidatos a mito. Os times se apresentavam como expressão de cultura e de identidade regional, tornando-se referências sociais. Os campeonatos cumpriam papeis cultural e social, e serviam como elementos de integração. E a seleção contribuía para formação dos mitos e ídolos, em que ela própria, aliás, se convertia. A espontaneidade marcava o sistema. Talvez mais do que isso: era sua própria essência. O fator de diferenciação. Cuja resiliência, no entanto, mostrou-se limitada. Enquanto o Brasil, de um lado, manteve a crença de que os elementos espontâneos formadores da mística eram inabaláveis, e que o futebol era impermeável às técnicas de organização das empresas econômicas, os demais países, de outro lado, se abriram às novas concepções organizacionais com o propósito de induzir o desenvolvimento de seus produtos. Muitos conseguiram. Alguns, de meros coadjuvantes ou importadores, passaram a formadores ou exportadores de produtos do futebol. Tornaram-se referências. É o caso notável da Espanha, da Inglaterra e da Alemanha, apesar de que a última jamais coadjuvou. Os produtos desses países evoluíram e passaram a ser objeto de desejo coletivo. A evolução abrangeu, inicialmente, a importação de técnicas e de jogadores, permitindo a assimilação e, depois, uma repactuação social, envolvendo os agentes do futebol, o Mercado e o Estado. No Brasil o movimento que se praticou - e se pratica - é justamente o inverso. Os governantes não identificam no futebol uma manifestação digna de sua preocupação. O mercado ainda não reconheceu sua potencialidade. E os agentes do futebol, ou os seus donos, se esforçam para manter um modelo de apropriação privada que gera benefícios isolados a um restrito grupo de interesse. Um pacto social deve ser concebido, com o propósito de libertar, desenvolver e valorizar os produtos do futebol. Em primeiro lugar, os jogadores. Razão de existência do esporte. E que devem ser formados, educados e preparados para que não sejam tratados como commodities destinadas à prematura exportação. Segundo, os times, que devem cumprir função maior do que de meras associações de prática esportiva. Eles são, na verdade, agentes de transformação social. E de desenvolvimento econômico. Catalisadores de um processo de integração nacional. Importante lembrar, neste sentido, que apenas o Brasil dispõe de pelo menos 12 grandes times, que rivalizam entre si, proporcionando uma combinação de duelos realmente sem qualquer comparação. O potencial, porém, não se limita a esta lista apostólica. Outros times, sobretudo oriundos do Nordeste e do Sul, com recursos financeiros e técnicas de governação, têm condições de, apoiando-se ainda na força e na amplitude de suas torcidas, se projetar à elite do país. E cumprir o destino integrativo a que se destinam. Terceiro, o campeonato, produto dependente dos jogadores e dos times, mas que se projeta de modo autônomo sobretudo quando enaltece os agentes internos que lhe fazem relevante. E, assim, dirigem-se não apenas ao ambiente interno - como inexplicavelmente ocorre com o Brasileirão -, mas ao externo, oferecendo uma adequada exposição dos jogadores e dos times que o integram. A exemplo do que fazem os países europeus que disputam, inclusive no Brasil, as grades das emissoras de televisão. Quarto, a seleção, que projeta o acerto ou o desacerto do sistema futebolístico do país. E atua como uma embaixada, propagando uma forma de ser e de jogar, cultivando a mística que lhe envolve. Esses produtos não são exclusivos da organização brasileira. Compõem o sistema organizacional de qualquer país que se dedique à prática do esporte. Mas em nenhum deles as condições de evolução se apresentam com tanta naturalidade e potencial integrativo. Porém, para que realmente se confirme como uma expressão de cultura, uma atividade de diferenciação, uma potencialidade econômica, os governantes e os parlamentares não devem se deixar seduzir por interesses de pequenos, porém poderosos grupos, que se organizam para impedir os avanços que dignificam a Nação. Não há futuro sem uma estrutura sólida. Sem um propósito verdadeiramente republicano. A solidez virá da capacidade de financiamento dos times de futebol. Sem dinheiro, não se compete globalmente. Antes disso, não se rompe com um modelo que o sufoca, que o escraviza. Cabe ao Estado, assim, prover a via de direito que suprirá essa eficiência, atraindo capitais para o desenvolvimento de uma atividade que transcende temas mundanos, inclusive políticos ou religiosos. Eis, enfim, o caminho para o resgate dos produtos do futebol. E do Brasil, como potência formadora e protagonista da maior expressão de cultura da humanidade. E como eventual líder de um mercado multibilionário.
quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Profut: uma iniciativa paliativa

Rodrigo R. Monteiro de Castro e José Francisco C. Manssur O Profut1 - Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro -, instituído pela lei 13.155, de 4 de agosto de 2015, foi uma iniciativa que surgiu com o propósito de solver contingências que decorriam - e que decorrem -, especialmente, do modelo amadorístico dos clubes de futebol. Essa situação se potencializa pela inexistência de um ambiente sustentável, provido de instrumentos dirigidos ao desenvolvimento do esporte. Sobretudo de técnicas de captação e financiamento da atividade econômica futebolística. Daí se projetar no Profut mais uma forma de salvamento emergencial dos clubes, consertando-lhes o passado de inadimplemento fiscal em troca de modificações, pontuais, em suas organizações internas2. O sistema funciona, em breves linhas, da seguinte forma: os clubes podiam3 optar pelo parcelamento de débitos na Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda, na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e no Banco Central do Brasil, e os débitos previstos na Subseção II, no Ministério do Trabalho e Emprego. A dívida objeto do parcelamento, para os aderentes, deveria ser paga em até 240 parcelas, com redução de 70% das multas, 40% dos juros e 100% dos encargos legais. O Profut estabeleceu, ainda, condições específicas para o parcelamento de débitos relativos ao FGTS e às contribuições instituídas pela lei complementar 110, de 29 de junho de 2001. Para aderir ao Profut, o Clube de Futebol deveria observar determinados requisitos formais4, e, para nele manter-se, atender aos demais seguintes requisitos: "I - regularidade das obrigações trabalhistas e tributárias federais correntes, vencidas a partir da data de publicação desta Lei, inclusive as retenções legais, na condição de responsável tributário, na forma da lei; II - fixação do período do mandato de seu presidente ou dirigente máximo e demais cargos eletivos em até quatro anos, permitida uma única recondução; III - comprovação da existência e autonomia do seu conselho fiscal; IV - proibição de antecipação ou comprometimento de receitas referentes a períodos posteriores ao término da gestão ou do mandato, salvo: a) o percentual de até 30% (trinta por cento) das receitas referentes ao 1o (primeiro) ano do mandato subsequente; e b) em substituição a passivos onerosos, desde que implique redução do nível de endividamento; V - redução do déficite, nos seguintes prazos: a) a partir de 1o de janeiro de 2017, para até 10% (dez por cento) de sua receita bruta apurada no ano anterior; e b) a partir de 1o de janeiro de 2019, para até 5% (cinco por cento) de sua receita bruta apurada no ano anterior; VI - publicação das demonstrações contábeis padronizadas, separadamente, por atividade econômica e por modalidade esportiva, de modo distinto das atividades recreativas e sociais, após terem sido submetidas a auditoria independente; VII - cumprimento dos contratos e regular pagamento dos encargos relativos a todos os profissionais contratados, referentes a verbas atinentes a salários, de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS, de contribuições previdenciárias, de pagamento das obrigações contratuais e outras havidas com os atletas e demais funcionários, inclusive direito de imagem, ainda que não guardem relação direta com o salário; VIII - previsão, em seu estatuto ou contrato social, do afastamento imediato e inelegibilidade, pelo período de, no mínimo, cinco anos, de dirigente ou administrador que praticar ato de gestão irregular ou temerária; IX - demonstração de que os custos com folha de pagamento e direitos de imagem de atletas profissionais de futebol não superam 80% (oitenta por cento) da receita bruta anual das atividades do futebol profissional; e X - manutenção de investimento mínimo na formação de atletas e no futebol feminino e oferta de ingressos a preços populares, mediante a utilização dos recursos provenientes: a) da remuneração pela cessão de direitos de que trata o inciso I do § 2o do art. 28 desta Lei (...)". O modelo preocupa-se, portanto, em, inicialmente, estabelecer "princípios e práticas de responsabilidade fiscal e financeira"5 e, apenas como consequência, impor técnicas de "gestão transparente e democrática para entidades desportivas". Em sua essência, é, como já afirmado, mais um programa de resgate, calcado em renúncias e favorecimento setorial, e não vinculado à transformação organizacional, que somente se atingirá com a regulação de instrumentos adequados para esta finalidade. A contrapartida do salvamento, também se indicou acima, é a submissão a técnicas de intervenção estatal na governação de entidades privadas, e a fixação de parâmetros econômicos de imprevisível resultado. Por outro lado, as consequências, em caso de inobservâncias, são severas: a rescisão do parcelamento6. E, possivelmente, a insolvência do inadimplente. O Profut parte de uma premissa equivocada: de que os agentes internos dos clubes dominarão todas as variáveis relacionadas à atividade econômica que praticam e que, apesar das vicissitudes conjunturais e estruturais, evitarão as penalidades de um modelo teórico punitivo. Corre-se o risco de, em alguns poucos anos, ver-se a gestação de nova lei para socorrer os clubes excluídos, pela falta de capacidade de cumprimento das obrigações legais, ou sufocados pela incapacidade de ampliação de receitas em um ambiente cada vez mais competitivo. Ambiente este que proporciona e estimula, é bom frisar, a expansão global dos times europeus, que se oferecem e se comercializam globalmente, inclusive no território brasileiro, com suporte em poderosa estrutura econômica e profissional. Não deveria ser aquela, definitivamente, a base histórica dos modelos legislativos adotados pelos sucessivos governos brasileiros para regular e organizar o futebol, formada por técnicas de renúncia, imposição de obrigações improváveis, sanção, crise, novo programa de resgate, mais renúncia, e assim de maneira continua. Eventuais contrapartidas ou adesões a planos com finalidades arrecadatórias não são necessariamente equivocadas ou inadequadas; ao contrário, integram, com frequência, a matriz legislativa reformatória, como no caso da lei portuguesa, que exige "(...) a regularização da situação tributária dos clubes ou por intermédio do 'pagamento integral de impostos e contribuições' ou através da adesão a planos de regularização definidos de acordo com o Código de Processo Tributário e legislação complementar"7. Porém, o que se reivindica, para além de um plano midiático de salvamento, é a formulação de uma política desenvolvimentista de Estado - e que vai além, portanto, de interesses governamentais ou partidários -, dotada de mecanismos aptos à construção de um ambiente, de um novo ambiente, integrativo, tanto do ponto de vista econômico como social. Vale apontar, aliás, porque muito relevante, que o Profut, em sua origem, ainda sob a forma propositiva, sugeria, além do escambo acima mencionado, resgatar a regulação da transformação de associações sem fins econômicos, ou seja, dos clubes associativos, em empresas, mediante a criação do Regime Especial de Tributação às entidades que adotassem alguma forma jurídica própria das empresas econômicas. O veto da então Presidente da República, Dilma Rousseff, ao Capítulo V do Profut8, que instituía e disciplinava o regime, fez ressurgir o debate em torno desse quase mito, que, como a Fênix, converte-se e renasce das cinzas, de tempos em tempos. A ideia, aparentemente boa9, não resistiria ao teste de aderência. Isto porque não se buscava operar um movimento de recuperação e desenvolvimento do futebol. Apenas se oferecia uma técnica primária de salvamento imediato, sem base sólida de preservação e sustentabilidade. O Profut, por fim, não se revela propriamente um equívoco. Tem suas qualidades, sobretudo como meio de impedir a derrocada irreversível do esporte que já foi - e pode facilmente voltar a ser - motivo de orgulho nacional e de admiração internacional. Mas ele não salvará ou resgatará o futebol brasileiro. Também não deve ser descaracterizado ou abandonado. Afinal, suas características estão compassadas com o momento existencial das entidades que se pretende salvar. Mas sua utilidade somente se revelará efetiva se conjugado com uma política de revisão e reversão do modelo de estruturação, financiamento e governação das entidades de prática do esporte. Aliás, mais do que isso: de uma política que reconheça e estabeleça a via de direito própria para exercício da empresa econômica futebolística: a sociedade anônima do futebol. __________ 1 Esse tema foi apresentado e abordado, originalmente e de forma mais extensa, em Castro, Rodrigo R. Monteiro de; Manssur, José Francisco C. Futebol, Mercado e Estado - Projeto de Recuperação, Estabilização e Desenvolvimento Sustentável do Futebol Brasileiro: Estrutura, Governo e Financiamento. Sã Paulo: Quartier Latin, 2016. 2 Anota-se, no direito comparado, que a motivação para reformulações do marco legislativo e para instituição de ambientes organizacionais compassados com as tramas relacionais contemporâneas, também foi, com frequência, o colapso econômico das entidades amadoras. Cf., a propósito, Candeias, Ricardo. Personalização de equipa e transformação de clube em sociedade anónima desportiva (contributo para um estudo das sociedades desportivas). Coimbra Editora, 2000, p. 25. 3 O prazo de opção pelo regime previsto no Profut expirou em 30 de novembro de 2015, conforme art. 9º da lei 13.155, de 04 de agosto de 2015. 85 clubes, dentre eles Atlético-MG, Cruzeiro, Corinthians, Flamengo, Fluminense, Grêmio, Botafogo e São Paulo adeririam ao modelo. De acordo com dados da Receita Federal, os clubes ingressantes apresentavam débitos fiscais no valor de R$ 3,83 bilhões. Cf. 4 "Art. 3o A adesão ao Profut dar-se-á com o requerimento das entidades desportivas profissionais de futebol do parcelamento de que trata a Seção II deste Capítulo. Parágrafo único. Para aderir ao Profut, as entidades desportivas profissionais de futebol deverão apresentar os seguintes documentos: I - estatuto social ou contrato social e atos de designação e responsabilidade de seus gestores; II - demonstrações financeiras e contábeis, nos termos da legislação aplicável; e III - relação das operações de antecipação de receitas realizadas, assinada pelos dirigentes e pelo conselho fiscal". 5 Cf. art. 1o do Profut. 6 Cf. art. 16 do Profut. 7 Candeias, Ricardo. Op. cit, p. 25. 8 O Capítulo vetado era composto dos seguintes artigos, com as seguintes redações: "Art. 31. Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais de que tratam os arts. 26 e 27 da lei 9.615, de 24 de março de 1998, que se constituírem regularmente em sociedade empresária, segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 da lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, desde que autorizado pela sua assembleia geral. Parágrafo único. A opção pelo regime especial de tributação de que trata o caput deste artigo dar-se-á na forma a ser estabelecida em ato do Poder Executivo, sendo irretratável para todo o ano-calendário. Art. 32. A entidade de prática desportiva que optar pelo regime especial de tributação de que trata o art. 31 desta Lei ficará sujeita ao pagamento equivalente a 5% (cinco por cento) da receita mensal, apurada pelo regime de caixa, o qual corresponderá ao pagamento mensal unificado dos seguintes impostos e contribuições: I - Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas - IRPJ; II - Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP; III - Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL; IV - Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS; e V - contribuições previstas nos incisos I e III do caput do art. 22 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991. §1o Para fins do disposto no caput deste artigo, considera-se receita mensal a totalidade das receitas auferidas pela entidade de prática desportiva, inclusive as receitas financeiras e variações monetárias decorrentes de suas atividades. §2o A opção pelo regime especial de tributação obriga o contribuinte a fazer o recolhimento dos tributos, mensalmente, na forma do caput deste artigo, a partir do mês da opção. § 3o O disposto no § 6o do art. 22 da lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, não se aplica às receitas auferidas pela entidade de prática desportiva que optar pelo regime especial de tributação de que trata o art. 31 desta Lei. Art. 33. O pagamento unificado deverá ser feito até o vigésimo dia do mês subsequente àquele em que houver sido auferida a receita. Art. 34. Para fins de repartição de receita tributária, do percentual de 5% (cinco por cento) de que trata o caput do art. 32 desta lei: I - 1,71% (um inteiro e setenta e um centésimos por cento) corresponderá à Cofins; II - 0,37% (trinta e sete centésimos por cento) corresponderá à Contribuição para o PIS/Pasep; III - 1,26% (um inteiro e vinte e seis centésimos por cento) corresponderá ao IRPJ; IV - 0,66% (sessenta e seis centésimos por cento) corresponderá à CSLL; e V - 1% (um por cento) corresponderá às contribuições previstas nos incisos I e III do caput do art. 22 da lei 8.212, de 24 de julho de 1991. Art. 35. A opção pelo regime especial de tributação instituído pelo art. 31 desta lei perderá a eficácia, caso não se verifique o pagamento pela entidade de prática desportiva das obrigações tributárias, previdenciárias e trabalhistas, inclusive direitos de imagem de atletas, salvo se com a exigibilidade suspensa na forma da legislação de referência. Parágrafo único. A entidade de prática desportiva poderá apresentar, até o último dia útil do ano-calendário, termo de rescisão da opção pelo regime especial de tributação instituído pelo art. 31 desta Lei, válido para o ano-calendário seguinte, na forma a ser estabelecida em ato do Poder Executivo. Art. 36. Aplica-se o disposto no art. 8o da lei 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e no art. 10 da lei 10.833, de 29 de dezembro de 2003, às receitas auferidas pelas entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais de que tratam os arts. 26 e 27 da Lei no 9.615, de 24 de março de 1998, que se constituírem regularmente em sociedade empresária, segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e que não optarem pelo regime especial de que trata o art. 31 desta lei". 9 V., a propósito, Manssur, José Francisco C; Ambiel, Carlos Eduardo; e Souza, Ewerton de. Por que derrubar o veto ao clube-empresa.
O futebol brasileiro produziu algumas figuras folclóricas e outras daninhas, que se ocuparam da administração das relações internas dos clubes e das atividades futebolísticas. Suas atuações, na maioria das vezes, se notabilizaram sobretudo pela relação de quase apropriação da coisa social e pela dominação política. O processo de manutenção dessas posições decorria - e decorre - da politização do sistema eletivo, inerente às associações sem fins lucrativos, de cunho social. A candidatura e a eventual eleição de um associado, como regra, requer o estabelecimento de um complexo ambiente relacional, a fim de suportar composições de pessoas invariavelmente oriundas de distintas organizações políticas internas. Atualmente se fala e se tenta introduzir, no ambiente do clube, conceitos e técnicas que se praticam no manejo e na governação de sociedades empresárias, de modo a, em alguns casos, oferecer-se um verniz de modernidade e, em outros, apesar das idiossincrasias próprias de cada organização, tentar-se impor uma nova lógica formadora do poder. Passa-se a verificar, nesse sentido, os mecanismos adotados por certos clubes brasileiros, sobretudo em relação à forma de indicação de seus representantes máximos. Apontam-se, a seguir, os casos de: Santos Futebol Clube ("Santos"), Clube de Regatas do Flamengo ("Flamengo"), São Paulo Futebol Clube ("São Paulo"), Sociedade Esportiva Palmeiras ("Palmeiras"), Sport Club Corinthians Paulista ("Corinthians"), Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense ("Grêmio"), Sport Club Internacional ("Inter") e Clube Atlético Juventus ("Juventus"). 1. Santos O Santos distingue, dentre os seus órgãos sociais1, os (i) superiores, (ii) os independentes de fiscalização e apoio e (iii) os auxiliares à gestão. Os primeiros, que importam a este breve estudo, se compõem de (i.i) Assembleia Geral, (i.ii) Conselho Deliberativo e (i.iii) Comitê de Gestão. A Assembleia Geral é o órgão máximo dos associados, que se reúnem, ordinariamente, a cada 3 anos, exclusivamente para eleger e empossar o presidente e o vice-presidente do Comitê de Gestão e os membros do Conselho Deliberativo. O Comitê de Gestão é formado por 9 membros. Os 7 membros, não eleitos diretamente pela Assembleia Geral, são indicados pelo Presidente eleito do Comitê de Gestão, dentre os membros Eleitos, Efetivos e Natos do Conselho Deliberativo. Ao Comitê de Gestão se atribui a competência de administração executiva e a representação do Clube. Ele delibera por maioria simples de votos, com a presença mínima de 5 membros, imputando-se ao seu presidente o voto de qualidade, em caso de empate. O modelo do time da baixada abandona, portanto, o regime presidencialista e impõe um sistema colegiado de decisões. 2. Flamengo O estatuto do Flamengo estabelece como Poderes Sociais a Assembleia Geral, o Conselho Deliberativo, o Conselho de Administração, o Conselho de Grandes-Beneméritos, o Conselho Fiscal e o Conselho Diretor. Os poderes do clube terão um presidente e um vice. A competência para eleição do presidente e do vice do Conselho Diretor é da Assembleia Geral, que se reúne trienalmente. Além de presidente e de vice-Presidente, o Conselho Diretor é composto por vice-presidentes temáticos, nomeados e empossados pelo Presidente do Conselho Diretor. O art. 131 do estatuto prevê a existência de 16 vice-presidências. Compete ao presidente, ademais, de modo singular, a representação do Clube e a prática de diversos outros atos, previstos no art. 129 do estatuto. O modelo do clube carioca se enquadra, portanto, num regime presidencialista, que atribui aos associados a escolha de seu representante. 3. São Paulo O modelo do São Paulo é diferente dos apresentados anteriormente. Talvez se revele, aliás, dentre todos os analisados, o de menor acessibilidade aos seus associados. Essa assertiva se extrai do conteúdo do art. 35, que trata da Assembleia Geral. A Assembleia Geral Ordinária realiza-se de 6 em 6 anos, para o fim específico de eleger e dar posse a 1/3 dos membros do Conselho Deliberativo. Não lhe compete, portanto, eleger membros do órgão diretivo. O Estatuto reconhece, por outro lado, a soberania orgânica do Conselho Deliberativo. Este órgão, composto de 240 membros, elege e empossa 2/3 de seus membros, não escolhidos pela Assembleia Geral, que terão, todos, a posição vitalícia. Também lhe compete, na forma do art. 50, eleger e dar posse ao presidente da Diretoria. O presidente da Diretoria indica os demais membros do órgão, que se compõe de 6 vice-presidências e 18 diretorias. O modelo Tricolor também se revela presidencialista, mas, com uma diferença fundamental em relação ao adotado, por exemplo, pelo Flamengo: a eleição é indireta, tendo os associados pouca participação na escolha de conselheiros e nenhuma, de modo direto, na do Presidente e demais membros da Diretoria. 4. Palmeiras O presidente do Palmeiras é eleito pela Assembleia Geral. Juntamente com o presidente elegem-se o 1o, 2o, 3o e 4o vice-presidentes. O presidente é o dirigente máximo e o titular da função executiva, competindo-lhe, "a administração social com amplos poderes para dirigir a organização dos serviços [do Palmeiras], atendidas as disposições deste Estatuto". Além do presidente e dos vices, o Palmeiras prevê a formação de uma administração social, composta de 26 departamentos, dirigidas por diretores, nomeados pelo presidente. Todos esses cargos - presidência, vices e diretores departamentais - compõem a Diretoria Executiva. Sua competência, prevista no art. 121 do estatuto, não abala a natureza presidencialista reconhecida pelo estatuto. 5. Corinthians São poderes do Corinthians a Assembleia Geral, o Conselho Deliberativo, o Conselho de Orientação, o Conselho Fiscal e a Diretoria. A Assembleia Geral se reúne ordinariamente a cada período de três anos, para eleger os membros do Conselho Deliberativo e da Diretoria. Os candidatos à Diretoria se organizam em chapas, que conterão, necessariamente, indicações para presidente, 1o e 2o vices. Além desses integrantes, eleitos pela Assembleia Geral, a Diretoria é composta de outros Diretores Titulados e de um Secretário Geral, escolhidos livremente pelo Presidente. São, ao todo, de acordo com o art. 101 do estatuto, 13 membros, sendo 12 diretores. Atribui-se, por fim, ao Presidente a responsabilidade pela administração geral do clube. 6. Grêmio Os órgãos do Grêmio são a Assembleia Geral, o Conselho Deliberativo, o Conselho Fiscal, o Conselho Consultivo, o Conselho de Administração, a Presidência, as vice-presidências e a Gerência Executiva. Compete à Assembleia Geral a eleição do presidente e dos vice-presidentes, para mandatos de 2 anos, permitida uma reeleição. Votam na Assembleia os associados maiores de 16 anos, pertencentes ao quadro social há mais de 2 anos. A Gerência Executiva se subordina ao presidente e ao Conselho de Administração. Suas funções são: gerência de esportes, gerência administrativa e financeira, gerência comercial e marketing, gerência jurídica e gerência de planejamento. Os cargos de gerente são remunerados. 7. Inter São órgãos do clube a Assembleia Geral, o Conselho Deliberativo, a Diretoria e o Conselho Fiscal. A Assembleia Geral se reúne ordinariamente, de 2 em 2 anos, para eleger o presidente, o Primeiro e o Segundo vice-presidentes. Além dessas vice-presidências, a Diretoria é composta de outros 5 Vice-Presidentes, nomeados pelo Presidente, "ad referendum" do Conselho Deliberativo. O presidente pode, ainda, criar outras 5 vice-presidências, desde que referidas no regimento interno da Diretoria. 8. Juventus São Poderes do Juventus: a Assembleia Geral, o Conselho Deliberativo e a Diretoria Executiva. A Assembleia Geral tem competência para eleger e destituir os membros do Conselho Deliberativo e eleger e empossar o presidente e o vice-presidente da Diretoria Executiva. O presidente elege, na forma do art. 88, os membros de sua confiança para formar a Diretoria Executiva, que se compõe de diretores e assessores. O time da Rua Javari também privilegia o modelo presidencialista, com a atribuição de competência eletiva aos seus associados. Pois bem. A simples compilação desses dados não autoriza concluir ou apontar a prevalência de um modelo sobre o outro. O São Paulo, por exemplo, que até 2005 protagonizou, nos planos internos e externos, o futebol brasileiro, encontra-se, há pelo menos três anos, afundado em sua mais grave crise política desde a sua criação. O Palmeiras, por outro lado, que desde 1994 não vence o campeonato brasileiro, desponta, em 2016, como grande favorito ao título. Já o Flamengo, que vem adotando, desde o início da gestão de seu atual Presidente - Eduardo Carvalho Bandeira de Mello -, uma política mais austera, com o propósito de inverter e melhorar suas contas, parece que começará a colher os frutos de sua postura aparentemente responsável. De todo modo, afirmar que a participação direta de associados na eleição de Presidente tem relação direta com o resultado em campo é algo que não se pode inferir, ao menos com base na breve compilação que se apresenta. Mas uma afirmação se pode, sim, extrair: qualquer que seja o modelo, o futebol, seu time e seus jogadores sofrem com o intenso processo político, que, invariavelmente, reflete na sua gestão, e se ressentem de estabilidade, de projeção e de definição de um modelo de time. Seja o colégio eleitoral formado por associados ou por membros de órgão colegiado, a instabilidade interna que envolve o futebol com temas associativos perturba e impede o seu desenvolvimento. Talvez esteja, aí, um dos motivos da absoluta incapacidade de se competir num ambiente global, altamente competitivo. E, enquanto não se operar a devida separação e neutralização do futebol da política clubística, as vaidades pessoais continuarão a se sobrepor ao que realmente interessa: a afirmação social e econômica desse esporte que foi adotado como elemento da cultura de um povo. __________ 1 As referências a órgãos ou estatutos serão grafadas em letras maiúsculas ou minúsculas, conforme se grafem nos respectivos documentos de referência.
Não há atividade empresarial sem meios de financiá-la. Essa afirmação não se aplica apenas aos tempos atuais. Na realidade, ela se revela verdadeira em todos os momentos da história do desenvolvimento da empresa. Com a queda do Império Romano e a consequente intensificação dos preceitos do Direito Canônico, que condenava a prática de operações de crédito pela esterilidade conceitual do dinheiro, o comerciante passa a recorrer a técnicas nascidas de sua criatividade para encontrar recursos a serem empregados em seu comércio. Um reflexo dessa necessidade é, por exemplo, o surgimento de títulos representativos de créditos, ou os títulos de crédito, como a letra de câmbio e a nota promissória. Outro reflexo, não menos relevante - aliás, fundamental para os avanços técnicos e tecnológicos que se produziram nos séculos seguintes, e que ainda hoje se produzem -, é a concepção das companhias, ou sociedades anônimas. A expansão industrial na Europa e, sobretudo, a grandiosidade das empresas marítimas, com propósitos colonizadores, exigiam o emprego de enormes quantias de recursos, que se viabilizaram pela associação, em companhias, do Estado com comerciantes e investidores. A Companhia Holandesa das Índias Orientais é um caso histórico dessa associação. Constituída em 1602, por ato de governo, tinha como propósito a "penetração e conquista do Golfo Pérsico à Indonésia". Seus poderes estatutários abrangiam a celebração de tratados, a realização de alianças, fazer guerra e cunhar moeda1. Seu capital se formou pela contribuição do Estado, de acionistas armadores de navios e de acionistas anônimos, "nacionais ou estrangeiros, cristãos ou judeus"2. O exemplo dessa companhia foi seguido por diversas outras, de distintas nacionalidades, e se prestaram a contribuir para, de um lado, a expansão mercantil, e, de outro, desenhar a geopolítica moderna. Inicialmente, as companhias foram constituídas por prazo determinado. Ao seu término, os acionistas reaviam seus investimentos e apuravam eventual lucro. Essa estrutura logo revelou-se inoportuna, pois implicava a dissolução de uma empresa ativa e lucrativa. Assim surge, como solução ao modelo restritivo, a possibilidade de livre negociação das ações pelos acionistas. Esse fato, somado ao aparecimento de novas companhias, reforça a importância do papel das bolsas, como ambientes de negociação de determinados ativos. E, no caso dos investidores em ações, para que pudessem realizar negócios de compra e venda no mercado secundário. Oferecia-se, com isso, liquidez ao investimento. Nos dias atuais, as bolsas cumprem uma função essencial para formação e desenvolvimento do mercado. Uma Resolução do Conselho Monetário Nacional estabelece que elas são "sociedades anônimas ou associações civis, com o objetivo de manter local ou sistema adequado ao encontro de seus membros e à realização entre eles de transações de compra e venda de títulos e valores mobiliários, em mercado livre e aberto, especialmente organizado e fiscalizado por seus membros e pela Comissão de Valores Mobiliários. Possuem [ademais] autonomia financeira, patrimonial e administrativa". A principal bolsa da América Latina é a BM&FBovespa, fruto da integração da Bolsa de Valores de São Paulo - Bovespa e da Bolsa de Mercadorias & Futuros - BM&F. Em 2000, a BM&F criou o Novo Mercado, composto de três níveis diferenciados de listagem de ações de companhias abertas, que aceitam, de modo voluntário (autorregulação), submeter-se a padrões mais sofisticados ou rígidos de transparência e governança, e a adotar regras que amplificam direitos de minorias. Do ponto de vista prático, não há uma nova abertura de capital no mercado brasileiro que não ocorra em um desses três segmentos. Aliás, a abertura de capital continua sendo uma forma eficiente de financiamento da atividade empresarial. E poderia ser um caminho para financiar o futebol. Além de uma reforma do marco regulatório, com a introdução de uma via de direito que permita a criação pelos clubes da sociedade anônima do futebol, outra proposta pode ser muito útil para formação do novo ambiente, do novo mercado futebolístico: a criação pela BM&FBovespa do Bovespafut. Assim como o Novo Mercado e os Níveis 1 e 2 de governança corporativa, o Bovespafut seria um nível especial de listagem, que fixaria às sociedades anônimas do futebol que voluntariamente aderissem a ele, regras específicas de governação, de divulgação de informações e de proteção dos acionistas minoritários. Mas esse nível especial não se impõe por lei. Apenas a própria BM&FBovespa, uma entidade privada, cujo capital é distribuído entre milhares de acionistas, pode tomar essa decisão. E, por se tratar de uma companhia aberta, com fins lucrativos, não terá motivos para adotar e implementar a proposta se inexistir ao menos uma razoável perspectiva de adesão por parte de futuras companhias que atuem com o futebol. E, ainda, se o mercado do futebol não se revelar suficientemente promissor para atração e emissão de valores mobiliários dessas companhias. Do ponto de vista do investidor, a iniciativa implicaria algumas vantagens, como: (i) a padronização e as sofisticação de regras de governança; (ii) uma melhor organização do mercado que se pretende criar; e (iii) a formação de uma cultura de investimento em uma atividade que, além de seu potencial econômico, apesenta um realmente enorme potencial de contribuição para o desenvolvimento social do país. O PL 5.082/16, de autoria do Deputado Otavio Leite (PSDB/RJ), que cria a sociedade anônima do futebol, oferece um incentivo para esse movimento. O art. 47 estabelece, nesse sentido, que: "Art. 47. Caso alguma entidade administradora de mercado organizado de valores mobiliários crie um segmento especial de listagem para a SAF, prevendo práticas diferenciadas de governança corporativa, a administração pública direta ou indireta somente poderá subscrever ações ou valores mobiliários conversíveis em ações de SAF que aderir ao segmento especial. Parágrafo único. Qualquer contrato celebrado entre a administração pública indireta e a SAF, especialmente de empréstimo ou financiamento, deverá conter cláusula que obrigue a SAF a, no caso de obtenção de registro de emissor de valores mobiliários perante a CVM, aderir a segmento especial de listagem para a SAF, instituído por entidade administradora de mercado organizado de valores mobiliários, prevendo práticas diferenciadas de governança corporativa". Enfim, há uma série de mecanismos já consolidados que podem ser aproveitados pelo futebol, e outros que, com o advento de um novo ambiente, podem ser adaptados ou aperfeiçoados, com o propósito de impor um efetivo movimento de expansão econômica e desenvolvimento social, a partir justamente de sua relação histórica, cultural e afetiva com o povo brasileiro. Daí, aliás, a relevância de uma regulação que encaminhe esses aspectos, em benefício, é sempre bom ressaltar, do próprio esporte e dos agentes que o protagonizam. __________ 1 Lamy Filho, Alfredo; Pedreira, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A.: (pressupostos, elaboração, aplicação). Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 33. 2 Idem.
A participação do Estado no futebol é indesejada. Sua função deve se restringir à criação de um ambiente adequado para o seu desenvolvimento. Por isso devem ser encontrados meios para reduzir e, idealmente, eliminar as formas pelas quais o Estado se envolve com a administração e o financiamento do jogo no Brasil. Realmente, o futebol brasileiro, conforme se organiza, depende de intervenções estatais. A mais recente foi o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, instituído pela lei 13.155, de 4 de agosto de 2015 ("Profut"). Ao aderir ao Profut, o clube se beneficiou de um parcelamento de débitos1 na Secretaria da Receita Federal, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Banco Central do Brasil, bem como os previstos na subseção II, no Ministério do Trabalho e Emprego. Além de prazo longuíssimo para pagamento - 240 meses -, também se lhe ofereceu redução de 70% das multas, 40% dos juros e 100% dos encargos legais. Os programas de salvação não são a única forma de financiamento Estatal. Isenções e perdões, nos planos Federais e municipais, costumam compor a cesta de bondades. Há mais, ainda. Certos clubes também recebem por meio de patrocínio, protagonizado por empresas públicas ou de economia mista, que distribuem milhões de reais para decorar suas camisas. A Caixa Econômica, por exemplo, pagará a 12 times, ao longo de 2016, o expressivo montante de R$ 122.000.000,00. Esse modelo é perdedor. O Estado não tem competência técnica para criar um sistema futebolístico compassado com a complexidade organizacional e competitiva dos tempos atuais. E os recursos empregados criam uma "indústria" que se acomoda com a certeza do resgate e do tratamento diferenciado. A função, diante desse cenário, deve se limitar à criação do ambiente para o resgate e o desenvolvimento do futebol. E isso se alcança por meio do exercício de sua competência legislativa. Inclusive para prover uma solução à bilionária dívida de que é credor. Antes de se apresentar uma solução, faz-se um alerta. Ao se propor a atuação estatal por meio de produção legislativa, não se sugere, em hipótese alguma, estatizar o futebol. Ao contrário, o propósito é livrá-lo, como já revelado acima, do Estado- financiador. Também não se pretende, por outro lado, entregar o futebol ao mercado, para que dele extraia os lucros que o motivam, sem qualquer forma de controle ou limitação. O caminho ideal, ainda inédito no planeta - mesmo nos países europeus ocidentais que protagonizam o esporte mundial -, que não soube modular adequadamente os valores sociais, culturais e econômicos envolvidos, está na proposição de vias de direito que possam estancar e reverter a metástase sistêmica. Uma delas - que parte da premissa de que o clube constitua uma sociedade anônima do futebol ("SAF") para gerir o futebol profissional de modo autônomo e isolado de todas as demais atividades sociais e esportivas, sob um modelo de governação arquitetado para solucionar problemas do passado e construir os alicerces para o futuro - envolve o pagamento da dívida tributária com ações da SAF. Assim, num primeiro momento, clube e Estado seriam sócios, acionistas de uma mesma empresa, com fins lucrativos. O clube na qualidade de controlador da SAF e o Estado de acionista minoritário. Como consequência, um se livra da dívida e o outro recebe um ativo - ações -, em troca de um crédito tributário que se alonga há décadas. Essa solução somente se implementaria se houvesse convergência de vontades, não por imposição. A vontade do clube se manifestaria pela necessária aprovação dos associados, reunidos em assembleia geral; e o Estado somente converteria a dívida ou receberia ações em pagamento se o negócio se justificasse economicamente, na forma estabelecida em lei especial. Mas se deve aqui reconhecer uma segunda premissa. A manutenção da participação na SAF não é benfazeja ao Estado. Tampouco aos clubes ou a essas companhias, pois se veriam envolvidos em tramas políticas que não lhes tocam e que poderiam prejudicar o rendimento profissional. Por isso, a participação deve ser provisória, e não definitiva, apenas como via para pagamento da dívida tributária, em benefício do devedor e do credor. E como meio de libertação do Estado-financiador. A saída para o imbróglio é a obrigatoriedade da venda da participação, em determinado prazo e sob certas condições, por meio de leilões em bolsa de valores ou em mercado de balcão organizado, preferencialmente conforme regulação da Comissão de Valores Mobiliários ("CVM"). Venda essa que pode se realizar em bloco ou, ao contrário, com o propósito de pulverizar a participação entre milhares de pequenos torcedores-investidores, que passariam a manter uma relação patrimonial com o time (além da passional). Já existe, aliás, um normativo da CVM que trata da alienação de ações de propriedade de pessoas jurídicas de direito público e de entidades controladas direta ou indiretamente pelo Poder Público: a Instrução 286, de 31 de julho de 1998. Mas nada impede que a autarquia regule especificamente a situação da venda de participação futura no capital da SAF. O que falta, porém, é a lei especial que regule, em primeiro lugar, a criação da SAF, veículo para o surgimento do novo mercado do futebol e, em segundo, os mecanismos para transformação de dívida em participação acionária e, na sequência, para alienação no mercado. Esses são, aliás, alguns dos propósitos que justificam a apresentação do PL 5.082/16, que tramita no Congresso Federal. E que estabelece, em relação à conversão de dívida ou dação em pagamento com ações da SAF, o seguinte: "Art. 43. Lei especial deverá regular a participação da administração pública direta no capital da SAF, que somente será admitida no caso de subscrição de ações ou dação em pagamento, em ambos os casos decorrente de conversão ou de pagamento de débito da Associação ou da SAF com a administração. § 1º. A participação da administração pública direta será provisória, e deverá ser alienada, preferencialmente, mediante leilão, na forma da regulação da CVM. § 2º. A conversão ou o pagamento de que trata o caput deverá ser aprovado por acionistas que representem metade mais uma, no mínimo, das ações com direito de voto, dentre elas, necessariamente, as ações classe A, se maior quórum não for exigido pelo estatuto da SAF". __________ 1 A dívida dos clubes é estimada em R$ 4,8 bilhões.
quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Educação pelo futebol

Muitas teorias explicam a atual situação do futebol brasileiro. Algumas são convincentes, outras menos. Mas, sob qualquer que seja o ângulo de análise, todas convergem quanto à necessidade de mudanças. Dentre os aspectos que devem mudar, um dos mais relevantes, se não o mais, é a formação do jogador. Os clubes - em sua grande maioria - e o Estado não cumprem sua missão formadora. Desde cedo crianças são lançadas em um ambiente ultracompetitivo, que pretende gerar futuros jogadores para distribuição entre os principais clubes do país e, com sorte, exportá-los. A maioria, no entanto, fica pelo caminho. E assim se vai o sonho de uma vida melhor, para o jovem e para sua família. E emerge o pesadelo da insuficiência de formação, da falta de preparo para a vida fora dos campos, obrigando-o (o jovem), com muita frequência, a atuar em atividades que não exigem qualquer nível de escolaridade. Mesmo os meninos que vencem as barreiras iniciais e se projetam para o profissionalismo se tornam reféns de um sistema que os coisificam. E, invariavelmente, não os prepara para bem gerir suas conquistas, durante e após o término da carreira. É verdade que poucas carreiras emprestam tanto glamour como o futebol, alçando, em alguns casos, jogadores à posição de heróis. Também é verdade que alguns reúnem fortuna que supera as de bem-sucedidos empresários, profissionais liberais ou executivos de empresas, que carregam em seus currículos diplomas internacionais. Mas se fala da minoria. Esse cenário deve mudar. O futebol pode - e deve - cumprir uma função educadora, contribuindo para formação das crianças que se perderão pelo caminho e melhorando as condições daquelas que resistirão, tornando-as, assim, melhores profissionais. Os times peneiram e extraem, da sociedade, o que há de melhor no plano esportivo (ou o que há de mais resistente); e devem, em contrapartida, contribuir para a sociedade, exigindo e provendo uma formação compassada com os benefícios que dela extraem. Não se pode, também é verdade, fechar os olhos à posição dos clubes, que investem, desde a infância ou adolescência em meninos que, muitas vezes, não se tornam profissionais, esvaindo-se a expectativa de retorno do capital e do tempo investido. O interesse econômico do clube não pode, portanto, ser desconsiderado. Ao contrário: é fundamental que se pavimente a via que permitirá a adoção de um adequado modelo de governação, a captação de recursos e o incremento de investimentos, inclusive e especialmente para formação e educação de jogadores. Soluções podem ser construídas, no plano privado ou público. No primeiro, de modo isolado ou em conjunto. Por melhor concebida que seja uma proposta reformadora isolada, seu alcance é limitado. Não deve ser descartada ou desestimulada; é claro que não. Mas isso não afasta ações conjuntas, que podem, estas sim, ter o condão transformador. Ações conjuntas exigem um certo consenso. Algo que ainda falta ao futebol brasileiro. Os times deveriam admitir que, apesar de adversários em campo, são - ou deveriam ser - sócios fora dele. A força sistêmica fortalece os times, individualmente. Enquanto a união e a efetiva associação não se materializam, resta, então, ao Estado, no âmbito de sua competência legislativa, prover meios para que o futebol cumpra sua missão educadora. Talvez seja, aliás, por meio do futebol, o melhor caminho para atrair e manter crianças em sala de aula. Não se trata, é bom frisar, de movimento estatizante. Também não se trata de interferência do Estado no funcionamento do futebol. Muito pelo contrário. Trata-se de proposta de criação de um ambiente propício ao surgimento de um novo mercado do futebol, por meio de uma regulação que reconheça sua importância econômica e social. Em outras palavras, que liberte o futebol do Estado-financiador, tal qual se manifesta no Brasil, mediante iniciativa do Estado-Legislador. Esse é o propósito do Capítulo XVII do PL 5.082/16, que institui a sociedade anônima do futebol (SAF). Ele cria o programa de desenvolvimento educacional e social, por meio da celebração de convênios entre a SAF e escolas públicas. Os objetivos do convênio devem ser: (i) incentivo à assiduidade de crianças e jovens matriculados em escolas públicas; (ii) incentivo ao envolvimento e interesse dos alunos nas atividades educacionais promovidas pela escola; e (iii) formação de jovens atletas do futebol. Para que a SAF possa se beneficiar das contrapartidas previstas no PL 5.082/16, o convênio deve ser aprovado pelo Ministério da Educação. A aprovação depende da previsão de investimentos cumulativos, pela SAF: (i) na reforma ou construção, e manutenção, de quadra ou campo destinado à prática do futebol; (ii) na instituição de sistema de transporte das crianças e jovens qualificados à participação do convênio, quando a quadra ou campo não se localizar nas dependências da escola; (iii) na alimentação das crianças e jovens integrantes do convênio durante os períodos de recreação futebolística e de treinamento; (iv) na capacitação de ex-jogadores profissionais de futebol, para acompanhar as atividades no âmbito do convênio; e (v) na contratação de profissionais auxiliares, especialmente de preparadores-físicos, nutricionistas e psicólogos, para acompanhamento das atividades no âmbito do convênio. Por outro lado, para que a criança possa participar do convênio, ela deverá estar regularmente matriculada na instituição conveniada, manter um nível de assiduidade às aulas regulares e padrão de aproveitamento definidos pelo Ministério da Educação. Existe, portanto, um sistema de partidas e contrapartidas a todos os envolvidos. Neste sentido, também se oferece à SAF uma contrapartida: a possibilidade de deduzir, do lucro tributável para fins de apuração do imposto sobre a renda devido, o triplo das despesas comprovadamente realizadas no período base, em convênios desenvolvidos na forma do PL 5.082/16. Este modelo de dedução, aliás, já existe no sistema: foi concebido com base no Programa de Alimentação do Trabalhador, criado e mantido desde 1976, com o propósito de incrementar a dieta dos trabalhadores. Concluindo, o PL 5.082/16 não se limita a conceber uma via de direito para organização do futebol no Brasil. Ele também reconhece a importância do esporte no plano social e propõe um instrumento colaborativo, a fim de atrair crianças para sala de aula. E, assim, contribuir para sua formação.
Como o empresário financia a atividade empresarial? Mencionam-se, abaixo, três técnicas, possivelmente as mais adotadas no país. Essas técnicas, aliás, não se excluem, podendo ser utilizadas de modo simultâneo. A primeira consiste no emprego de capital próprio. Toda sociedade empresária dispõe, obrigatória e necessariamente, de um capital social. É condição de sua existência. Esse capital é fornecido pelos sócios, em caráter definitivo. Sua devolução - por meio de redução - somente pode se realizar em situações específicas, previstas em lei. Ao transferir o capital para sociedade, os sócios perdem aquela cifra; ela deixa de fazer parte de seu patrimônio, ingressando no da sociedade. Os sócios, em contrapartida, recebem ações (ou quotas) da própria sociedade. As ações (ou quotas) passam a fazer parte de seu patrimônio, em substituição ao capital transferido. Os recursos de sócios costumam ser limitados, de maneira que a sociedade usualmente recorre a outras fontes de financiamento de suas atividades empresariais. A segunda técnica consiste no empréstimo contratado junto a uma instituição financeira. Opera-se mediante a negociação de condições entre os contratantes. Uma boa contratação para o empresário é aquela em que o custo do empréstimo seja inferior ao retorno que se obterá com o emprego dos recursos emprestados. O problema, no Brasil, é que essa via de financiamento é proibitiva. Bancos, por aqui, por incrível que pareça, não têm vocação para emprestar. O risco é alto, e há outras formas de lucrar, com exposição menos importante. Além disso, a inexistência de um mercado competitivo, em planos municipal, estadual e federal, resulta em uma espécie de padronização de taxas, fixadas em patamares estratosféricos. E para completar, são requeridas garantias que nem sempre o demandante pode prover. Daí concluir-se que bancos não costumam ser a melhor via para financiamento da atividade empresarial. A terceira técnica, utilizada sobretudo pelas sociedades anônimas, é a emissão de valores mobiliários, regulados pela Comissão de Valores Mobiliários ("CVM"). São, geralmente, empréstimos que se realizam no mercado. Destacam-se, dentre eles, a debênture. A debênture é um título de dívida, que confere ao seu titular um direito de crédito contra a sociedade que a emitir. Seu custo costuma ser muito inferior ao custo de contratação de empréstimo a uma instituição financeira. O mercado brasileiro de debêntures vem amadurecendo nos últimos anos. A tabela abaixo indica o seu tamanho em cada um dos anos de 2010 a 2015: E como se financia o futebol? Ou melhor, qual dessas técnicas se presta, conforme o modelo atual do futebol brasileiro, a financiar a atividade desenvolvida pelos clubes? Aí está o problema: os clubes, com raras exceções, não são sociedades empresárias, mas associações civis, sem fins lucrativos. Seus associados não transferem recursos à associação com a finalidade de desenvolvimento de uma empresa, em troca de ações (ou quotas). Eles adquirem títulos patrimoniais, que lhes conferem direito de frequência e de participar da vida associativa. Os clubes também não se financiam no mercado de capitais, por meio de emissão de títulos de dívida, inclusive debêntures, porque não estão autorizados. Como regra, apenas sociedades anônimas, ou em certas hipóteses, sociedades limitadas, podem emitir tais títulos. E faz sentido: o mercado de dívida foi arquitetado para financiar a empresa, e não atividades sociais. Com isso o futebol brasileiro se afasta da técnica que, em princípio, é a mais atraente do ponto de vista econômico. Assim, se o capital próprio não é acessível e tampouco a emissão de títulos de dívida é permitida, restam os empréstimos bancários, que são os mais onerosos do ponto de vista financeiro. Para piorar o cenário, diante da atual situação econômica e patrimonial da maioria dos clubes, é comum encontrarem as portas fechadas para novos empréstimos. Ou, quando há instituições dispostas a emprestar-lhes, acabam se colocando de joelhos diante das exigências e das condições para realização do negócio. É pegar ou morrer. Valem, aqui, os seguintes parênteses: apesar das taxas altas, a postura dos bancos é compreensível diante da situação estrutural dos clubes e das políticas de governança, que não privilegiam a transparência, a modernização e a adoção de modelos compassados com a realidade empresarial da atividade que desenvolvem. O caminho para reversão dessa situação e para inserção num ambiente que permita o acesso a recursos para financiamento e desenvolvimento do futebol é a sociedade anônima do futebol ("SAF"). Trata-se de uma via de direito, prevista no PL 5.082/16, que oferece aos clubes os meios para, se e quando quiserem, criarem uma sociedade empresária, que poderá acessar não apenas o capital de seus acionistas, mas também aquele disponível no mercado. No caso específico da SAF, além da possibilidade de emitir os valores mobiliários "genéricos", regulados pela CVM, ela poderia, ainda, emitir um título especial, concebido especialmente para ela e para o desenvolvimento do futebol: a debênture-fut. Dentre outras características, e a fim de criar um mercado de títulos do futebol, prevê-se que os rendimentos auferidos por pessoas físicas ou jurídicas, residentes ou domiciliadas no país, sujeitem-se à incidência do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, às seguintes alíquotas: I - 0%, quando auferidos por pessoa física; II - 15%, quando auferidos por pessoa jurídica. Aí está, enfim, parte da fórmula para o resgate e o crescimento do futebol brasileiro.
quarta-feira, 27 de julho de 2016

A administração no futebol brasileiro

Este texto trata da administração no futebol brasileiro. Entende-se por administração o conjunto de órgãos internos incumbidos da orientação, fiscalização e execução de atos ordinários e extraordinários dos clubes. Os órgãos desmembram-se, com bastante recorrência, em diretoria executiva, conselho deliberativo e conselho fiscal. E são compostos exclusivamente por associados. O exercício de cargo administrativo é voluntário e não remunerado. Trata-se, de um lado, de uma forma de contribuição do associado às coisas sociais com o propósito de manter e ampliar o patrimônio comum. Mas, de outro, de uma forma de exercício de algum - ou muito - poder, na esfera interna do clube, ou externa, perante os agentes que se relacionam ou gravitam ao seu redor. Esse poder se amplifica em função da importância social, econômica ou desportiva do clube, bem como da relevância e do tamanho da torcida de seu time de futebol. Não à toa que eleições, em alguns dos clubes, costumam ser acirradas e reproduzir, em menor escala, o modelo de campanha para cargos eletivos na esfera legislativa ou executiva. A principal diferença talvez seja a gratuidade da função. Enquanto políticos disputam vagas remuneradas, os associados de clubes lutam por cargos não remunerados. Os quais, no entanto, oferecem, como já dito, contrapartidas sociais ou pessoais, de distintas naturezas. Essa situação talvez não se mostre conflituosa no âmbito das relações puramente associativas que se produzem dentro do próprio clube. Mas revela um enorme desalinhamento quando esses clubes se envolvem em atividades econômicas complexas e competitivas, especialmente futebolísticas. E os seus interesses, assim como os interesses externos no clube e no time, extrapolam seus muros. É o caso, sem dúvida, das situações em que os clubes operam times de futebol que atuam profissionalmente e dispõem de torcedores não associados. Ora, há décadas o futebol deixou de ser uma atividade amadora, lúdica, como assim concebeu os seus organizadores e primeiros praticantes no país. Sua prática, ao contrário, envolve a adoção de técnicas empresariais e se passa num ambiente globalizado e sofisticado, que o trata como um negócio. A lei 13.155, de 4 de agosto de 2015, que criou o Profut, tentou dar um passo na forma de organização da administração do esporte e se coadunar com essa realidade. Nesse sentido, o art. 4o da mencionada lei estabelece que as entidades desportivas profissionais de futebol, para que se mantenham no Profut, cumpram certos requisitos, como: (i) a fixação do período do mandato de seu presidente ou dirigente máximo e demais cargos eletivos em até quatro anos, permitida uma única recondução; (ii) a comprovação da existência e autonomia do seu conselho fiscal; e (iii) a previsão, em seu estatuto ou contrato social, do afastamento imediato e inelegibilidade, pelo período de, no mínimo, cinco anos, de dirigente ou administrador que praticar ato de gestão irregular ou temerária. O problema é que o caminho adotado consiste na tentativa de melhoria do modelo existente, sem oferecer-se uma via alternativa para organização do futebol. Tentou-se exigir a adoção de certas condutas ou práticas consideradas de boa governança às associações civis, sem fins econômicos. Em outras palavras, tentou-se consertar o que não tem conserto. Apesar de bem-intencionada, a ideia produzirá apenas efeitos ilusórios. Ao final, tudo continuará como sempre esteve: clubes amadores, organizando atividades econômicas complexas, submetidas a políticas internas diversionistas, protagonizadas por pessoas que atuam voluntariamente, sem qualquer remuneração. Ainda mais: pessoas que não têm o dever de atuar com exclusividade nessas funções. E, por isso, dividem o tempo entre as coisas do clube, as coisas do futebol, e as suas atuações profissionais cotidianas. Daí se pode extrair a seguinte conclusão: no Brasil se convencionou que a administração do futebol não precisa de pessoas exclusivamente dedicadas a essa função, formadas e preparadas para lidar com o feixe de relações e situações inerentes a uma atividade que se torna cada vais mais complexa e competitiva. Explica-se, assim, o momento atual de penúria do futebol brasileiro. Explica-se, ainda mais, porque o país que dispunha dos mais apreciados produtos, ou seja, jogadores, times, campeonatos e a mística da seleção, está se transformando em um mero exportador de commodity. E nada explica os motivos pelos quais os sucessivos governos não se prestam a resolver, de uma vez por todas, a questão do futebol brasileiro, oferecendo-lhe uma via de direito compassada com o ambiente em que ele se insere. É possível que alguns governantes vejam no futebol apenas uma atividade esportiva, sem reflexos mais importantes. Outros, um instrumento de alienação ou apaziguamento das massas. Não é por aí. Sua potencialidade envolve a cultura e a economia. Esse esporte pode, como nenhuma outra atividade brasileira, integrar pessoas e contribuir para um sustentável desenvolvimento social e econômico. Aliás, essas características e oportunidades já foram sugeridas por Gilberto Freyre, para quem o "o desenvolvimento do futebol, não um esporte igual aos outros, mas uma verdadeira instituição brasileira, tornou possível a sublimação de vários daqueles elementos irracionais de nossa formação social e de cultura". Mas as oportunidades começam a se esvair. E mais grave: também começam a se dissipar os elementos irracionais que formaram a relação do brasileiro com o futebol e o tornaram belo, admirado e grandioso. Esse processo de autodestruição não se interromperá enquanto se continuar a defender que o futebol deve ser administrado de modo caseiro, altruísta e conforme um modelo jurídico criado para acomodar interesses puramente associativos.
quarta-feira, 20 de julho de 2016

Fusões e aquisições no futebol

O universo empresarial é palco permanente de negócios que afetam a propriedade societária. O mercado costuma referir-se a esses negócios como fusões e aquisições. A expressão vem do inglês: mergers and acquisitions. O Direito brasileiro regula certos negócios societários no Código Civil e na Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76). Vejam-se alguns. O art. 227 da lei 6.404/76 trata da incorporação, que é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra. Ao final, portanto, uma empresa "engole" a outra, sendo que o patrimônio da engolida passa a fazer parte da incorporadora. Os acionistas da incorporada deixam de ter participação nesta sociedade e recebem, em troca, participação da incorporadora. Verifique-se, abaixo, como isso funciona: Prosseguindo, o art. 228 da mesma lei trata da fusão. É a operação pela qual duas ou mais sociedades se unem, para formar uma nova. Resulta, assim, na extinção das fusionadas e na criação de uma nova sociedade. Os acionistas daquelas sociedades passam a deter participação apenas na sociedade que se cria. Do ponto de vista prático, trata-se de negócio que, no Brasil, quase nunca ocorre, justamente por promover a extinção das partes envolvidas. Com isso, a nova sociedade deve proceder a registros, atualizações, inscrições e praticar todos os demais atos inerentes ao início de uma atividade empresarial. De todo modo, resulta no seguinte esquema: Continuando, o art. 229 da lei 6.404/76 descreve a cisão. Expressa a operação pela qual a companhia transfere parcelas de seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a cindida se as versões envolverem todo o patrimônio; ou dividindo-se o seu capital, se a cisão for parcial. Esse negócio produz o seguinte efeito na cindida (no exemplo abaixo, envolvendo cisão parcial): A lei 6.404/76 também regula a alienação de controle. Esse tipo de negócio implica a transferência, direta ou indireta, de direitos de sócios que permitem o exercício do controle da sociedade. Não se encontra, nessa lei, a definição de controle; define-se, por outro lado, controlador. Controlador é a pessoa natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto que: (a) é titular de direitos de sócios que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações sociais; e (b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento da administração. Outras operações são reguladas pela lei 6.404/76, como a transformação ou a aquisição de controle mediante oferta pública. Há, ainda, uma espécie de operação, não regulada especificamente, mas de ocorrência habitual: a aquisição de participação societária, sem envolver a transferência de controle. Nesse negócio, um ou mais sócios transferem, para outra pessoa, ações ou quotas de sociedade empresária, em número igual ou inferior à metade, menos uma, das ações votantes (ou das quotas) de sua emissão. O adquirente das ações passa à condição de sócio minoritário, ostentando os direitos previstos em lei ou negociados com o sócio controlador. Todas essas operações não se aplicam, como regra, aos principais clubes de futebol do Brasil. Porque eles não se organizam como sociedades empresárias; ou porque não criaram estruturas jurídicas, por eles controladas, que permitam sua inserção no ambiente dos negócios societários. Ao contrário: por essas bandas, manteve-se, sobretudo para os times mais importantes e tradicionais, o modelo secular e arcaico, que concentra nas associações civis, sem finalidade econômica, a operação e gestão da empresa futebolística. Mas não se deve comemorar a impossibilidade de ocorrência de negócios dessa natureza como se fosse uma qualidade do sistema. Aliás, a realidade, nos principais centros de prática do esporte, é outra. E, em relação aos negócios de fusão e aquisição, costumam ocorrer com certa frequência. Nesse sentido, vários negócios societários estamparam, recentemente, as manchetes dos principais jornais europeus, dentre os quais um envolvendo a Inter de Milão e, outro, o Atlético de Madri. No primeiro, o grupo chinês Suning adquiriu aproximadamente 70% do capital de uma sociedade empresária que opera a atividade futebolística do time milanês, com o propósito de "resgatar seu esplendor". O segundo teve como objeto a aquisição, pelo Atlético de Madri, de participação de 34,6% do time francês Lens, atualmente na segunda divisão do campeonato deste país. Pergunta-se, assim: e o Brasil com isso? Quais os reflexos e como deveria se posicionar? Primeiro, não existe um modelo europeu, mas vários. Cada país inseriu no seu sistema aquilo que atendia às suas demandas sociais e econômicas. Segundo, o Brasil deve refundar o seu modelo, visando a solucionar os seus problemas, e não copiar algum já existente - se bem que adaptações podem, e devem, sim, ser feitas, em relação a certas técnicas já consolidadas. Inclusive para lidar com situações de fusões e aquisições como as que envolveram Lens e Inter, sem perder de vista - e sem deixar de oferecer uma regulação adequada a - essa atividade (o futebol) que, além de suas características econômicas, carrega, para o brasileiro, uma enorme carga cultural e afetiva. Concluindo, o Brasil não suporta mais o anacronismo de sua estrutura, que direciona o seu futebol à periferia do esporte; de protagonista mundial a mero exportador de commodity. O Brasil reclama, portanto, um modelo que emancipe o futebol econômica e socialmente. E que o liberte, portanto, da escravidão a que times e jogadores permanecem submetidos1. E que regule, ademais, técnicas organizacionais e aquisitivas, e de exercício do controle societário, com o propósito de preservar esse seu patrimônio histórico e cultural. __________ 1 O parágrafo final foi inspirado em frase de Domenico Losurdo (A luta de classes. Uma História política e filosófica; tradução Silvia de Bernardinis - 1 ed. - São Paulo: Boitempo, 2015, p. 26).
Maicon, muito bom zagueiro do São Paulo Futebol Clube (SPFC), viveu um episódio que poderia ser incluído em uma hipotética refilmagem da obra-prima de Claude Lelouch, Retratos da Vida, em torno do futebol. Explica-se. Após a maior crise política da história do clube, que culminou com a renúncia, em 2015, do presidente eleito Carlos Miguel Aidar, seu sucessor, Leco, iniciou, em 2016, uma campanha futebolística marcada pela desconfiança. Torcida e imprensa questionavam a capacidade do time de protagonizar bons momentos, apesar de contar, em seu elenco, com alguns jogadores de grande qualidade. Leco decidiu, então, trazer para compor o grupo, por empréstimo de curta duração, um atleta radicado em Portugal, com certa idade e uma carreira marcada por altos e baixos: Maicon. Uma série de fatores contribui para que, apesar dos maus resultados nos campeonatos locais, o SPFC se projetasse e avançasse no torneio que sua torcida mais se identifica: a Copa Libertadores da América. No último jogo da fase classificatória, na altitude de La Paz, registraram-se momentos que ficarão na memória do torcedor: brigas, confusões e uma expulsão que levou o até então melhor jogador em campo, Maicon, a vestir a camisa de Denis, o goleiro, expulso ao final da segunda etapa. Como arqueiro, Maicon fez duas defesas que o lançaram - pelo conjunto da obra, é verdade - à candidatura ao posto de herói. Havia um problema, porém: o contrato de empréstimo se encerraria antes do início das semifinais da Copa Libertadores da América, interrompida por conta de um calendário desastroso que previa a realização de uma competição de seleções antes do término da competição de times. Encurralado, o presidente do São Paulo, homem sem dúvida alguma correto, sério e bem intencionado, havia de decidir entre manter o jogador e cultivar a esperança da torcida, ou sacrificar o caixa do clube. Importante lembrar que, em 2015, o SPFC encerrara o ano com uma dívida global de R$ 291 milhões. Para manter Maicon, o São Paulo haveria de desembolsar R$ 22 milhões. Uma fortuna, em qualquer situação. Sobretudo para um clube endividado, com poucas vias de financiamento de suas atividades - exceto as tradicionais, como patrocínio e direitos de transmissão -, e por jogador que já tinha certa idade e um futuro incerto. Novamente: Maicon é um muito bom jogador. E se mostrou, nos poucos meses em que comandou a defesa do time, uma peça essencial. Mesmo assim, o investimento se justificava? Como se ponderar o risco do investimento? E o seu retorno? O zagueiro veio. A torcida explodiu de alegria e lotou o Estádio do Morumbi para uma linda festa no primeiro jogo da semifinal. A confiança em seu novo capitão era absoluta. Mas não foi correspondida. Aos 28 minutos do segundo tempo, em uma atitude macunaímica, o quase-heroi se transformou no anti-heroi: um cartão vermelho o tirou do jogo. Não apenas daquele, mas do seguinte também, que se realizaria na casa do adversário. Pior: na sequência da expulsão, aproveitando-se da ausência do expulso - o que, de certa forma, revelou sua importância -, o SPFC tomou dois gols, tirando suas esperanças de prosseguir na competição - ou tornando a missão praticamente impossível. Maicon falhou. O que reforça sua condição de ser humano - negando o heroísmo que se pretendeu emprestar-lhe. Ele pode ser criticado pela infantilidade de seu gesto, mas jamais condenado. Talvez, até, ilustrado como mais uma vítima do modelo que precisa de heróis para se afirmar, se alimentar e se preservar. Criticar Leco pelo teatro do absurdo é, também, um absurdo. Ninguém poderia, jamais, imaginar tamanha dramaticidade. Talvez uma falha em campo, uma partida mal jogada por parte do novo contratado; mas não um retrato tão dramático da vida. Leco, assim como os demais presidentes sérios de clubes de futebol, são reféns do mesmo modelo que prioriza o amadorismo. E também o jeitinho. E as decisões passionais ou oportunistas, movidas pelos gritos das ruas. Mas não devem, por outro lado, ser tratados como vítimas; porque isso não são. São algozes de si próprios. E culpados - para usar uma expressão forte, é verdade, mas realística - pela passividade com que aceitam o modelo. E reverberam o dogma de que o futebol é diferente, que "a gestão de um clube de futebol não é semelhante à de uma empresa, pois envolve paixão". A decadência do jogador brasileiro, do clube brasileiro e da seleção brasileira não é obra do acaso. É obra de seres humanos, que não percebem a relevância de suas funções e a importância que o esporte tem nos planos educacionais, sociais e econômicos. Pode-se, no entanto, virar o jogo. Basta que essas pessoas se unam. Em torno de um projeto de futebol para o Brasil. E contra esse estado de coisas que escraviza os times brasileiros.
Rodrigo R. Monteio de Castro e Glauco Martins Guerra Em entrevista publicada na Folha do dia 2 de julho, Leonardo, ex-jogador da seleção brasileira, do São Paulo, do Flamengo e do Milan, dentre outros times, afirma que a salvação do futebol depende dos clubes. O peso de sua afirmação não se mede apenas por sua experiência nos gramados, mas, também - e especialmente - pelo seu conhecimento acumulado fora dele: além de técnico, Leonardo teve passagem na função de executivo de times importantes como o PSG. A afirmação é sem dúvida correta. Mas deve ser lida juntamente com outra sua proposição, contida na mesma matéria, que sustenta e justifica a primeira: a necessidade de mudança da estrutura jurídica dos clubes brasileiros. Dessas proposições extrai-se, portanto, o seguinte: enquanto os clubes brasileiros não tiverem força, continuarão a ser subjugados e se manterão no atual processo de apequenamento; e, enquanto forem associações civis, sem fins lucrativos, os clubes manterão uma visão e uma conduta política, pautada e comandada por seus dirigentes-políticos, que, segundo palavras de Leonardo, "nos impede de ser atuais". A saída para esse ciclo vicioso, que entrou numa espiral perdedora, em todos os planos - clubístico ou do selecionado nacional -, passa pela coragem na implementação de um novo modelo, que deve priorizar os aspectos esportivos e econômicos, em detrimento da politização amadora. Isso somente se resolve, no atual estágio do futebol brasileiro, por meio da criação de uma via jurídica que ofereça o ferramental necessário para a criação e o desenvolvimento de um ambiente que atraia agentes que, historicamente, se trataram como incompatíveis. A incompatibilidade é falsa, porém. Foi- e ainda é - dogmatizada justamente por esse discurso político, avesso à ruptura com o modelo arcaico que vige no país. E que pretende incentivar e reforçar o sentimento de incompatibilidade. Não existe, é bom repetir, incompatibilidade entre a tradição dos times e do jogo de bola, de um lado, e o capital, de outro. O que existe, isto sim, é um chassi regulatório inadequado - ou a falta dele. Um chassi regulatório que reconheça os aspectos fundamentais a serem tutelados, em nome da preservação histórica e cultural do futebol. E que, justamente por conta dessa motivação, ofereça os instrumentos necessários para financiamento desse propósito. Aí está, de modo simplista, a demonstração de que, ao contrário do que as poucas pessoas que se apoderaram da cultura de um povo pretendem reverberar, futebol e capital podem se atrair. E podem conviver, fortalecendo-se um com o outro. Desde que um não explore ou subjugue o outro. Esse foi o caminho percorrido por grande parte dos grandes times do planeta. E somente a partir do momento em que decidiram percorrê-lo, eles puderam defender e impor seus interesses, antes manipulados por entidades centralizadoras e monopolistas. Entidades que não tinham interesse no fortalecimento dos times. Pois a força os libertaria. Como de fato os libertou. A mesma liberdade que poderão ter os clubes brasileiros. E como fazê-lo? Aí está o problema. E a solução não é simples. Endividados, desacreditados, sujeitos a sistemas políticos internos incompatíveis com a atividade econômica que administram - e na qual se inserem -, os clubes não têm, atualmente, meios de reverter o jogo, sem o apoio de um agente superior. A ilusão não pode turvar a realidade. Os clubes se submetem, necessariamente, a um poder organizador que não se interessa pela reversão desse quadro. A força dos clubes implica enfraquecimento da CBF; inversamente, a crise clubística fortalece a CBF. Aí surgem algumas questões fundamentais. O futebol é um bem público? Ou será um "patrimônio nacional"? A CBF seria seu "agente regulador", do ponto vista da organização do Estado? Aqui não há dúvida: não. E como conjugar essas questões, algumas, inclusive, ainda não respondidas. O futebol possui um papel institucional que transcende, por sua história de conquistas e pelo enorme apelo popular, os limites do campo e da paixão, atingindo dimensões econômico-sociais que justificam uma regulação apropriada. A CBF é uma entidade tipicamente privada. Superavitária, estruturada para atingir os seus próprios interesses, detentora de algumas dezenas de marcas, já registradas ou em processo de registro (a exemplo de Taça de Ouro - registrada; Seleção Brasileira de Futebol - registrada; Copa do Brasil - registrada; Somos Todos Futebol - no aguardo de exame para registro; We are all Footbal - no aguardo de exame para registro). Todas as suas ações, condutas e atuações envolvem os nomes Brasil e Brasileiro. As cores que adota são as da Bandeira. O hino, o Nacional. Ela atua em nome do país em competições internacionais. E, novamente, organiza o futebol, um bem econômico em sentido estrito, no plano interno. Esse quadro mostra a importância e alcance que um ente jurídico do porte da CBF representa no cenário esportivo de uma das 10 principais economias atuais e a maior ganhadora de campeonatos mundiais da história do futebol. Como então compreender - ou melhor, aceitar - que essa entidade assuma características de uma verdadeira "Corporação de Ofício", no melhor estilo medieval do termo, auto regulamentando um mercado que, por suas características e dimensões, teria tudo para ser lucrativo, autônomo e independente, empresarialmente estruturado, inclusive em regras de governança e compliance, e eficiente, tanto social como economicamente? A única forma de reverter esse cenário é por meio da atuação de um poder maior, superior e legitimado a fazê-lo. O único poder que realmente tem a atribuição de, por meio de políticas públicas, zelar pela preservação da cultura de um povo: o Estado. E a função do Estado, no caso do futebol, não consiste em financiá-lo ou praticar ações intervencionistas em seu funcionamento. Definitivamente não. Cabe ao Estado criar os meios necessários à implantação de um ambiente que induza os clubes a deixarem de agir como clubes, e sim por meio de sociedades empresárias - as sociedades anônimas do futebol. Para que, nesse ambiente, as sociedades anônimas do futebol possam - caso queiram, é sempre bom destacar - captar recursos, investir em suas atividades, sobretudo na formação, educação, treinamento e manutenção de atletas, e gerar receitas. Dessas receitas, reinvestir parte em suas atividades. E outra parte reverter aos seus acionistas, clubes e investidores de mercado, que houverem acreditado na proposta modernizante. Esse toque de letra permitirá que o Estado deixe de financiar o amadorismo e a ineficiência e passe a legitimamente tributar a renda auferida pelas novas empresas econômicas, aumentando, assim, sua receita. Esse ciclo virtuoso parte - o craque Leonardo tem absoluta razão - do fortalecimento dos times. E, continuando na linha do seu raciocínio - com o qual, aliás, esta Coluna concorda e vem, desde a sua criação, enfatizando - somente se implementa mediante a imposição de um novo marco regulatório. Marco este que crie um mercado do futebol. Marco que não será proposto pela CBF, mas sim protagonizado pelos clubes que ousarem enfrentar o poder central - um poder privado -, algo que, diante da periclitante situação financeira da grande maioria, é improvável ocorrer nas atuais circunstâncias. De maneira que o Estado deve agir. O verbo é este mesmo: trata-se de um dever. E rápido. É caso de urgência e necessidade. A ação não pode repetir os erros do passado. Não se trata de simplesmente prever que clubes se transformem ou constituam sociedades anônimas do futebol. Isso já foi tentado, mutatis mutandis, com a Lei Zico e com a Lei Pelé, ambas rapidamente subjugadas pelo status quo auto regulatório da CBF, em sua incrível capacidade de controle entrópico. Não é por aí, portanto. O Estado deve reconhecer a necessidade de inclusão da formação do mercado do futebol na agenda prioritária de políticas públicas. O Estado deve orientar seus agentes, como a CVM, na implementação das ações necessárias para que o futebol possa servir como elemento de integração nacional, desenvolvimento social, cultural, educacional e econômico. O Governo que se mantiver inerte em relação a tamanha prioridade perderá uma oportunidade histórica de reconstruir o ludopédio, transformando as relações de suserania e vassalagem que hoje pautam o futebol brasileiro. *Glauco Martins Guerra é advogado.
quarta-feira, 29 de junho de 2016

O futebol e o mercado

Resgata-se na coluna de hoje o tema explorado no texto publicado semana passada. O ponto de partida é o mesmo: o projeto de lei 5.082/16, do deputado Federal Otavio Leite (PL 5.082/16), que propõe a criação da sociedade anônima do futebol (SAF) e de um mercado do futebol. Naquela oportunidade se viu que grupos de interesse que controlam o futebol brasileiro intensificam o dogma de que o modelo que se adota nos principais países praticantes do esporte em alto nível é incompatível com a história, a tradição e a cultura do país. Motivo pelo qual, segundo tais grupos, se deve defender a manutenção do status quo e repelir certas proposições que, na verdade, pretendem abrir caminho ao entreguismo da relíquia nacional. Essa defesa, cujos argumentos melhor se enquadram em uma espécie de filosofia do absurdo, torna-se ainda mais absurda quando se analisam os resultados alcançados - ou não - pelos donos do poder. Vejamos algumas referências e certos números. 1. O Brasil deixou de ser a maior potência do futebol mundial; ao contrário, vem encenando recentes e sucessivos vexames históricos. 2. Aliás, nem mesmo o protagonismo regional é capaz de exercer, conforme demonstram os fracassos nas duas últimas edições da Copa América. 3. Seus jogadores abandonam o país muito cedo, sem preparo, formação e condições para enfrentar o duro movimento migratório, malvisto sobretudo em uma Europa que volta a flertar com o nacionalismo - inclusive no futebol. 4. O êxodo decorre sobretudo da impossibilidade dos clubes de se financiarem e investirem na formação, na educação e na manutenção de atletas no país, o que impediria sua coisificação; ou, em outras palavras, sua equiparação, no plano econômico, ao conceito de commodity. 5. O resultado disso é a falta de identificação dos jogadores - e da própria seleção brasileira - com o seu povo. Algo inimaginável, anos atrás, quando movimentos de distintas ideologias se apropriaram ora para justificar o sistema de exceção - e a grandeza do seu povo -, ora para ilustrar e apoiar o fim deste mesmo sistema - e enaltecer as qualidades do mesmo povo. A lista poderia seguir por páginas e páginas. Mas se passa da retórica a alguns números, para, na sequência, retomar a importância do PL 5.082/16 e o risco de sua malversação, justamente pelos donos do poder. 1. Os 20 times que jogaram a primeira divisão do campeonato brasileiro de 2015 fecharam o ano com R$ 4,8 bilhões de dívidas. A dívida, 5 anos atrás, não atingia metade dessa cifra1. 2. O Flamengo, time que ostenta a maior torcida do país - e, portanto, que tem o maior mercado consumidor -, fechou 2015 com uma dívida de R$ 546 milhões; Atlético mineiro, com uma dívida de R$ 530 milhões; Corinthians, que carrega a maior torcida de São Paulo e a segunda do país, com R$ 363 milhões; e Internacional, com R$ 259 milhões2. 3. 85 clubes aderiram, em 2015, ao Profut, o programa de modernização da gestão e de responsabilidade fiscal do futebol brasileiro, criado para salvá-los da insolvência. Naquele momento, o montante da dívida dos clubes com o fisco era da ordem de R$ 3,83 bilhões. 4. Não satisfeito em financiar o futebol por meio de parcelamentos, isenções tributárias, redução de alíquotas e perdões de dívidas, o Estado ainda o financia, indiretamente, por meio da injeção de patrocínios da Caixa Econômica Federal a 12 times brasileiros, no valor de R$ 122 milhões em 2016, demonstrando a incapacidade dos clubes de exercerem suas atividades sem alguma forma de subvenção. 5. A receita agregada de 2015 dos 20 clubes que jogaram a primeira divisão foi de R$ 3,6 bilhões (ou 962,8 milhões de euros3 - 4). 6. Enquanto isso, a CBF, protegida por um estatuto privado que lhe confere o monopólio organizacional do futebol no país, apurou, nos anos de 2014 e 2015, receitas de R$ 519 milhões e R$ 518,9 milhões, respectivamente. 7. Do faturamento de 2015, 82%, ou seja, R$ 425,6 milhões, são provenientes apenas da seleção5, revelando o seu desinteresse ou sua falta de capacidade de ampliar receitas com campeonatos, copas ou outras atividades relacionadas aos clubes. Pegue-se, por fim, uma pequena série de números alcançados por times europeus6 e sua comparação com números dos brasileiros. 1. O Real Madrid apurou uma receita de 577 milhões de euros (R$ 2.157.345.300,00). 2. A receita do Barcelona, no mesmo período, foi de 560 milhões de euros (R$ 2.093.784.000,00). 3. O Manchester aparece em terceiro, com 519 milhões de euros (R$ 1.940.489.100,00). 4. Em quarto surge o PSG, com 480 milhões de euros (R$ 1.794.672.000,00). 5. E, completando o time dos 5 maiores, o Bayern, com 474 milhões de euros (R$ 1.772.238.600,00). 6. O trigésimo time da lista é o Napoli, com faturamento de 125 milhões de euros (R$ 467.362.500,00). 7. Nenhum time brasileiro comparece entre os 30 maiores. 8. A receita da CBF, em euros, a colocaria na 24ª posição, atrás de times como Aston Villa, Southampton, Galatasaray, West Ham United, Internazionale, AS Roma, Atlético de Madrid, Milan, Tottenham e Juventus. 9. A CBF é pouco mais de 10% maior do que o Napoli. 10. O Real Madrid e o Bayern, juntos, são maiores do que os 20 clubes brasileiros que disputaram a primeira divisão do campeonato nacional de 2015. 11. O Real Madrid e o Barcelona são maiores do que os 20 clubes e a CBF, juntos. Muito bem. O que a retórica inicial e os números apresentados indicam? A resposta é muito simples: o modelo brasileiro está esgotado. E ainda resiste apenas pelas ações políticas de um pequeno grupo de interesse que defende o seu próprio interesse. Não do futebol. Não dos times ou dos jogadores. Muito menos do torcedor. E que, por isso, recusa o debate sobre novos métodos de administração do esporte. Mas que, aparentemente, não hesita em se aproveitar de instrumentos de mercado, previstos e sugeridos no próprio PL 5.082/16, para reforçar o modelo existente e os seus interesses. É o que se extrai, por exemplo, da proposta de se estender aos clubes, organizados sob a forma de sociedades civis sem fins lucrativos, sujeitos a uma lógica associativa e amadora, com um sistema de governança que acomoda interesses de todas as áreas de prática esportiva e congregações sociais, o direito de emitir valores mobiliários, títulos de dívida e outros, para financiamento de suas atividades. Quer-se, com isso, a manutenção da arcaica modelagem que levou o futebol brasileiro à situação que se ilustrou acima e, ao mesmo tempo, o acesso a recursos financeiros - disponibilizados às empresas que se submetem a um regime jurídico distinto e que se regem por lógicas empresariais - com o propósito de manutenção e intensificação deste estado de coisas. Não é correto. Não é aceitável. É um absurdo. Ou se admite que o futebol é uma atividade de interesse público, a ser financiada pelo Estado - por meio de diversas técnicas, como isenções, renúncias, perdões, parcelamentos ou patrocínios - e praticada por entidades não econômicas - e se assume a condição de coadjuvante no ambiente global -; ou se reconhece que o Brasil carece de um modelo que lhe permita financiar a formação, a manutenção e o desenvolvimento do futebol, a exemplo da SAF, prevista no PL 5.082/16, e se parte para sua regulamentação e implementação (assim como ocorreu em países como Portugal, Espanha, França, Itália, Áustria, Alemanha, Inglaterra, México, Colômbia e Chile). A SAF, é sempre bom ressaltar, deve se submeter a um novo sistema, um ecossistema sustentável, transparente, profissional e que realmente reconheça o futebol como bem cultural e, ao mesmo tempo, como atividade de enorme viabilidade econômica. __________ 1 Cf. Capelo, Rodrigo. 2 Idem. 3 Conforme taxa de cambio de fechamento do dia 27/6/16, de R$3,7389, adotada em todas as conversões realizadas neste texto. 4 Em ordem decrescente de faturamento: Cruzeiro, Flamengo, Palmeiras, São Paulo, Corinthians, Internacional, Atlético Mineiro, Grêmio, Vasco, Fluminense, Santos, Atlético Paranaense, Sport, Coritiba, Goiás, Ponte Preta, Figueirense, Chapecoense, Joinville e Avaí. Cf. Capelo, Rodrigo. 5 Capelo, Rodrigo. 6 Deloitte.
quarta-feira, 22 de junho de 2016

O futebol e o lucro

Já se mencionou, nesta coluna, a existência de um projeto de lei, do Deputado Federal Otavio Leite (PL 5.082/16), que propõe a criação da sociedade anônima do futebol (SAF). Um dos únicos argumentos - ou talvez o único - que foram suscitados contra a proposta consiste num possível conflito entre a natureza econômica da atividade desenvolvida pela SAF e a intransigência do torcedor, sempre motivado pelas vitórias e pelos títulos. De acordo com essa visão, tal relação conflituosa oporia a SAF e seus acionistas, que visariam ao lucro, ao torcedor, que, diante de um cenário de contas em dia e uma administração ética e profissional, de um lado, e a contratação de grandes jogadores e títulos, de outro, não hesitaria pela segunda. Com isso, clube e investidores também se posicionariam em possível situação conflituosa, pois aquele haveria de seguir o desejo do torcedor, mesmo à conta da saúde financeira da SAF, enquanto o investidor agiria de modo frio e calculista, visando apenas o lucro. Esse conjunto de coisas enalteceria a paixão pelo time como elemento diferenciador das empresas econômicas do futebol, manejadas pelas futuras SAF's, das empresas econômicas ordinárias, sujeitas apenas às inflexões de mercado. E representaria o motivo pelo qual, para alguns críticos, o futebol brasileiro deve permanecer sob a gestão de associações civis, sem fins lucrativos. Revela-se aí o suposto problema que, muito bem amplificado, sustenta a manutenção de um modelo que, de anos para cá, tornou-se indefensável. Daí a importância de sua desmistificação. Parte-se, neste breve artigo, de uma série de questões a respeito do funcionamento da sociedade anônima para, na sequência, abordar-se o tratamento da SAF. Os focos da breve investigação são a sistemática do lucro e o poder dos acionistas e administradores de agirem contra o interesse social. Vejamos, sob a forma de perguntas e respostas. 1. O acionista de uma sociedade anônima pode embolsar todo o lucro anual? O art. 202 da Lei 6.404/76 determina que o acionista tem direito de receber como dividendo obrigatório, em cada exercício, a parcela de lucros estabelecida no estatuto. Se a previsão for de, por exemplo, 25%, é esse o montante que será distribuído. O restante será mantido em reserva da SAF. 2. E se o estatuto for omisso? Aponta-se, em primeiro lugar, que essa omissão é de rara ocorrência, justamente porque cria uma situação de imprevisibilidade, pouco desejada por quem destina recursos para aquisição de ações. O investidor, antes de adquiri-las, verifica a situação da companhia, suas perspectivas de crescimento e retorno, e sua capacidade de gerar excedentes e distribuir dividendos. Como ele é livre para investir onde quiser, se compra é porque vê boas perspectivas ou oportunidades, mesmo que, eventualmente, não se trate expressamente do montante mínimo a distribuir anualmente. Mas, caso uma companhia deixe de definir o dividendo obrigatório, o mesmo art. 202 estabelece critérios que devem ser observados, a fim de que não se prive o acionista de algum retorno. Funciona, resumindo, da seguinte forma: apura-se o dividendo mínimo pelo cálculo de metade do lucro líquido do exercício, diminuído ou acrescido dos seguintes valores: (a) importância destinada à constituição da reserva legal; e (b) importância destinada à formação da reserva para contingências e reversão da mesma reserva formada em exercícios anteriores. 3. Podem os acionistas de companhia cujo estatuto seja omisso reformá-lo para introduzir norma sobre a matéria? Sim. Mas, nestes casos, a lei 6.404/76 impõe um piso, para evitar que o acionista controlador defina percentual desprezível. De modo que a reforma não poderá contemplar número inferior a 25%. Note-se que a lei reconhece a importância do dividendo, que é, aliás, um direito essencial do acionista, mas, por outro lado, assume que nem todo lucro deve necessariamente ser distribuído, pois pode comprometer os planos empresariais ou, no limite, abalar a liquidez da companhia. 4. O que se pretende tutelar com esse conjunto de normas? Tutela-se o direito do acionista, não controlador, ao recebimento de dividendo. De algum dividendo. Ou seja, aquele previsto no estatuto ou, se omisso, indicado na lei 6.404/76. Por outro lado, inibe conduta do acionista controlador que, por algum motivo, queira preservar todos os recursos em caixa. Para o bem da companhia ou, em situações patológicas, para o seu proveito. 5. Qual a destinação dos lucros que excedam o dividendo obrigatório? A destinação será aquela deliberada pela assembleia geral dos acionistas. A deliberação será tomada por maioria. Caso não se distribua o excesso, o lucro será destinado a reservas, e os recursos correspondentes reforçarão o caixa da companhia. 6. Muito bem. E como fica a SAF diante dessas normas? Primeiro, esse conjunto normativo complementa o PL 5.082/16, por determinação de seu art. 2º, de modo que se aplicam igualmente à SAF, impondo, assim, um útil e necessário sistema de controle de decisões. Segundo, ao constituir a SAF, o clube definirá, em seu estatuto, o dividendo obrigatório. Caso defina, por exemplo, 15%, esse será, necessariamente, o montante a ser distribuído. Eventuais modificações deverão observar o PL 5.082/16, a lei 6.404/76 e o estatuto da SAF, e todos os seus procedimentos, evitando decisões apressadas e populistas, ou abusivas por parte de algum agente. Terceiro, se em algum exercício social o dividendo obrigatório se mostrar incompatível com a situação financeira da SAF, seus administradores darão notícia à assembleia geral, para deliberação a favor ou contra a proposta de pagamento. Quarto, e voltando para uma situação de normalidade financeira, pode um acionista minoritário, com propósitos puramente especulativos e imediatistas, sem qualquer vinculação com o time, exigir o pagamento de dividendos superiores ao obrigatório, afetando a situação financeira da SAF? Ele pode, sim, sugerir, mas exigir, não. E caso o tema vá para deliberação, prevalecerá a posição da maioria. Se o clube detiver a maioria, a deliberação não se toma sem a sua vontade. Quinto, podem surgir divergências entre clube e investidores, ambos atuando como acionistas? Claro que sim, da mesma forma que surgem em outras companhias, com objetos sociais diferentes. E como se resolvem? Como regra, pela deliberação da maioria. Se o clube detiver a maioria, irá nortear o resultado da deliberação. Se for acionista minoritário, haverá de se sujeitar à decisão majoritária (exceto em relação às matérias que, conforme o PL 5.082/16, ele dispuser de poder de veto). Sexto, mesmo que surjam conflitos entre acionistas, os órgãos de administração da SAF - que se desdobram em conselho de administração, cuja metade dos membros menos um, pelo menos, deve ser independente, e a diretoria, que deve ser profissional - saberão lidar com a situação e arbitrar no interesse da sociedade, e não de um ou outro acionista. O modelo obrigatório de governança da SAF fortalece a posição dos administradores e sua conduta no interesse social. Sétimo, caso o acionista controlador da SAF, seja ele o clube ou um investidor, pratique atos com abuso de poder, como o de orientar a SAF a fim estranho ao seu objeto social, ou induzir ou tentar induzir administrador a praticar ato ilegal, responderá pelos danos causados. Oitavo, os administradores que agirem, mesmo que dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou do estatuto, respondem civilmente pelos seus atos. Essa estrutura traz a gestão do futebol para um plano que, além de não colidir com a tradição do futebol, o protege - ou criar instrumentos para protegê-lo - de atuações oportunistas, interessadas e amadorísticas. 7. Para concluir essas breves reflexões, como ficam os torcedores caso o clube constitua uma SAF? Ficam exatamente como estão. Assim como também ficaram os torcedores de Bayern, PSG, Sporting, Arsenal, Juventus, Roma, Milionários, Colo-Colo e dezenas de outros que romperam com o dogma da relação futebol/amadorismo. Ou, espera-se, ficarão em melhor posição, pois as decisões da SAF serão pautadas não apenas pela concepção imediatista do lucro, mas, também, pela necessidade de aproximação de seu público torcedor/consumidor. E quanto mais lucro gerar, maior será a capacidade investimento e atração de novos recursos, e maior será, provavelmente, o envolvimento do torcedor. E mais intensa será sua paixão. Aliás, o debate a respeito do modelo de futebol para o Brasil deve evoluir. Insistir no dogma de que o futebol é paixão, e a empresa razão, e, portanto, realidades inconciliáveis, não é correto. Talvez seja, até, desonesto. Como se cartolas amadores não negociassem jogadores, em momentos críticos ou às vésperas de situações importantes, em troca de lucro. Como se, alguns deles, não tomassem decisões que desestabilizam o ambiente de trabalho em defesa de interesses políticos ou pessoais. Como se fossem, todos, guardiões de uma relíquia nacional. O lucro não é incompatível com um modelo vencedor de futebol. O reconhecimento da natureza econômica da atividade futebolística não abala os alicerces do esporte. Decisões empresariais podem desagradar, em certos momentos e certas circunstâncias, parte dos torcedores; e, em muitos outros, agradá-los. Faz parte do jogo. Importa que tenha regras claras e se sujeite a uma regulação arquitetada para permitir sua evolução. Ignorar essas proposições e manter o discurso da preservação de uma raiz arcaica significa negar as irreversíveis tendências mundiais e afundar o país, cada vez mais, no modelo amadorístico que o está transformando em mero exportador de commodity.
quarta-feira, 15 de junho de 2016

A estrutura do futebol

1. No Mundo O futebol é organizado e regulado pela Fédération Internationale de Football Association - FIFA. A FIFA é uma associação sem fins lucrativos, com sede em Zurique, Suíça, regida pelas leis deste país. Seus objetivos são, sobretudo: promover e aprimorar o esporte; organizar suas competições internacionais; estabelecer normas e provisões para assegurar seu enforcement; e controlar as Associações filiadas1. A estrutura interna da FIFA é composta de três órgãos, com funções hierárquicas e complementares. O órgão supremo é o Congresso, que tem competência "legislativa". As funções executivas são desempenhadas pelo Comitê Executivo. Por fim, a Secretaria Geral incumbe-se de atos administrativos. Participam do Congresso os Membros da FIFA, que são as Associações nacionais admitidas, como associadas, pelo próprio Congresso. Atualmente integram este órgão 211 (duzentas e onze) Associações2. As Associações nacionais, a exemplo da CBF, no Brasil, têm como propósito a organização, supervisão e regulação do futebol, em todos os seus aspectos, em seus países de origem. A FIFA reconhece apenas uma Associação por país. Dentro desse modelo, portanto, cada Associação monopoliza a organização do esporte no respectivo território. Para ser reconhecida como Associação nacional, situação que lhe confere a posição de monopolista, ela deve, como condição, integrar-se a uma Confederação regional, igualmente reconhecida pela FIFA. A Confederação é um agrupamento de Associações nacionais pertencentes a um mesmo continente (ou a uma determinada região geográfica; esta variação decorre de acomodações políticas). A FIFA reconhece as seguintes Confederações: (a) Confederação Sul-Americana de Futebol - CONMEBOL; (b) Confederação Asiática de Futebol - AFC; (c) União das Associações Europeias de Futebol - UEFA; (d) Confederação Africana de Futebol - CAF; (e) Confederação do Norte, América Central e Caribe - CONCACAF; e (f) Confederação Oceânica de Futebol - OFC. As Confederações também monopolizam a organização e a regulação do esporte em suas regiões. O futebol é organizado, portanto, sobre um modelo verticalizado, que estabelece monopólios regionais: uma Confederação por continente ou região geográfica e, em cada país associado à Confederação, apenas uma Associação nacional. E a FIFA, organizadora do modelo, não tem concorrente no plano mundial. Nada impede que se crie uma associação - ou mesmo uma sociedade empresária - concorrente, para organizar campeonatos futebolísticos. Mas dificilmente terá adesão de alguma Confederação existente. Assim, também não atrairá Associações nacionais e seus Clubes. Um novo modelo talvez pudesse estabelecer um órgão central, mundial, com clubes associados. Ou mesmo com Associações locais. Mas, novamente, encontraria barreira no próprio poder da FIFA, que não aceitaria a participação de atletas em campeonatos ou copas integrantes de seu sistema. De modo que afasta o ímpeto criativo de qualquer estrutura concorrente. 2. No Brasil A Confederação Brasileira de Futebol - CBF é a Associação nacional organizadora do futebol no Brasil. Trata-se de entidade especializada, fundada em 1914, com o nome de Federação Brasileira de Sports, posteriormente alterado para Confederação Brasileira de Desportos e, finalmente, em 1979, para a nomenclatura atual. É uma pessoa jurídica de direito privado, especificamente uma associação, sem fins lucrativos, regida pelo Código Civil. Seu propósito é, dentre outros aspectos: administrar, dirigir, controlar, fomentar, difundir, incentivar, melhorar e fiscalizar a prática do futebol não profissional e profissional, em todo o território nacional; coordenar a realização de competições de futebol, em qualquer de suas formas; manter a ordem desportiva e velar pela disciplina da prática do futebol; representar o futebol brasileiro no exterior; respeitar, cumprir e fazer cumprir as normas da FIFA e da CONMEBOL3. De acordo com o art. 20 do estatuto da CBF, sua estrutura interna é composta de poderes e órgãos4. São poderes: (i) assembleia geral; (ii) conselho fiscal; (iii) presidência (administração); (iv) secretaria geral; e (v) diretoria. A assembleia geral é o poder básico e de jurisdição máxima. Integram a CBF as entidades estaduais de administração do futebol - Federações - e as entidades de prática do futebol - Clubes. As Federações devem ser pessoas jurídicas de direito privado, com ou sem fins econômicos, mediante o exercício de livre associação5. Ou seja, podem ser, pelo estatuto da CBF, sociedades empresárias. As Federações são consideradas filiadas diretas, com voto permanente nas assembleias da CBF. Os Clubes devem ser filiados às Federações. Replica-se, portanto, o modelo internacional, com a instituição de associações intermediárias, com atuação regional. De acordo com o Estatuto, somente os Clubes que integrarem a primeira divisão do campeonato brasileiro de futebol podem votar nas assembleias gerais. Regra que forma um colégio eleitoral equivalente à soma dos votos das Federações e destes Clubes. Porém, a lei 13.155, de 4 de agosto de 2015, que institui o Profut, aproveitou para reformar a Lei Pelé e acrescentar o parágrafo 2º ao art. 22, ampliando o direito de voto aos Clubes participantes da segunda divisão. Assim, o colégio eleitoral passou a ser a soma das Federações e dos Clubes de primeira e segunda divisões do campeonato nacional. Cada Federação e Clube, de primeira e segunda divisões, têm direito a apenas um voto nas deliberações em assembleia. 3. Reflexões finais O modelo do futebol, concebido pela FIFA, estabelece monopólios regionais, instituídos em cascata, verticalizando sua administração. Todas as associações que o integram amarram-se ao poder central. A contrapartida oferecida pela FIFA é, da mesma forma, a exclusividade na organização do esporte no território em que tiver sua base. Assim, mesmo que surgissem, no plano continental ou nacional, Confederações ou Associações que se propusessem a organizar de modo concorrente o futebol, elas se deparariam com uma barreira praticamente intransponível, protetora da hermética estrutura existente. Essa barreira é reforçada pela obrigatoriedade de reconhecimento e aceitação, por parte de todas as Associações, de um sistema próprio de solução de controvérsias, organizado e regulado pela Court of Arbitration for Sports - CAS. A CAS é uma corte independente, com sede em Lausanne, Suíça, que tem competência para resolver disputas entre quaisquer agentes integrantes do sistema FIFA. Na solução de controvérsias, aplicam-se, primariamente, as normas da FIFA e, secundariamente, o direito suíço. O hermético sistema organizacional do futebol impede, portanto, o surgimento de estruturas concorrentes. Enquanto não se quebrar esse modelo, seja por conta de atuações estatais que questionem a posição monopolista (mundial, regional ou local) ou pelo surgimento de agentes dispostos a criar uma atividade paralela - e concorrente -, a FIFA e suas "subsidiárias", regionais e nacionais, regerão, sem qualquer resistência ou controle, o futebol no planeta. __________ 1 O estatuto da FIFA. 2 O número de países associados à FIFA supera o de membros da ONU. São 211, como visto, contra 193. 3 O objeto é amplo e relaciona 29 incisos. Para conhecer a redação integral, v. o art. 5º do estatuto da CBF. 4 Os órgãos têm função auxiliar e de cooperação, e se desdobram em: conselho consultivo, conselho técnico, comissão de arbitragem, comissão de controle de doping, comitê de resolução de litígios e ouvidoria do futebol. 5 Cf. o art. 15, I, do Estatuto da CBF.
1. Introdução Estava programada para ontem uma Reunião Ordinária da Comissão Especial destinada a apresentar propostas de reformulação da Lei Pelé e outras leis que regulam temas relacionados ao futebol. O propósito era deliberar o requerimento 21/16, do deputado Vicente Cândido (PT/SP), que tem como objetivo colocar em audiência pública o Anteprojeto de Lei Geral do Futebol ("LGF"). É sobre essa LGF que se discorre a seguir. 2. Conteúdo da LGF e pertinência do tema A LGF trata de diversos temas relacionados ao futebol. Alguns relacionados à sua formação, outros ao seu desenvolvimento, e avança para regular, inclusive, temas que envolvem agentes auxiliares. A lista, não exaustiva, aborda (i) contrato especial de trabalho desportivo do atleta profissional de futebol, (ii) formação de atletas, incluindo registro de atleta em formação, bolsa formação, desligamento, transferência e indenização, (iii) prática de futebol profissional, (iv) regime especial de tributação aplicável às entidades de prática desportiva, constituídas como sociedades empresárias, (v) seguro de vida ou de acidentes para atletas, (vi) relações de trabalho do treinador profissional, (vii) direito de arena e imagem, (viii) gestão temerária nas entidades desportivas profissionais, (ix) ordem desportiva, (x) justiça desportiva e (xi) sociedades desportivas. Dentro desse emaranhado temático, destaca-se um, que será explorado neste texto: a criação das sociedades anônimas desportivas, denominadas, na LGF, Sades. Não resta dúvida, como sempre se defendeu nesta Coluna, que o Brasil precisa de uma legislação que o coloque no mesmo nível dos demais países que protagonizam o futebol mundial. E outros que, apesar de jamais terem se destacado, passaram a cumprir um papel de maior relevância. Na Europa, de oeste a leste, iniciando-se com Portugal, passando por Espanha, França, Itália e seguindo, até a Alemanha (dentre outros), já se debateu e se ofereceu ao jurisdicionado modelo que atendesse às necessidades locais. Aqui ao lado, em países como Chile e Colômbia, também existem soluções que colocaram a administração futebolística em outro patamar. E, talvez não por acaso, o futebol praticado nesses países deixou de ser secundário. Trata-se, portanto, de movimento inevitável, exceto aos centros de prática do esporte que pretendam posicionar-se na "periferia" do planeta, como simples exportadores de "mão-de-obra". Lutar contra essa realidade não trará qualquer benefício ao país, incluindo seus atletas, times, seleção e torcedores. Deve o Estado, portanto, oferecer uma regulação apta a atender à necessidade do futebol brasileiro. Mas não pode ser qualquer legislação. O modelo nacional deve olhar para realidade do país, para os seus problemas, e encontrar suas soluções. Preferencialmente de modo simples, aproveitando-se de institutos e técnicas já existentes no próprio sistema e que se mostram bem-sucedidos. E, sobretudo, com o propósito de criar um microssistema - um, digamos, ecossistema - equilibrado, que respeite os aspectos culturais do jogo de bola e a relação da torcida com o seu time, mas que, por outro lado, crie o ambiente necessário para formação de um mercado regulado, onde os times poderão encontrar os recursos necessários para investir, evoluir e crescer. Somente assim se formarão as condições para reduzir ou eliminar a dependência de agentes que não pretendem que o esporte evolua. 3. Princípios de uma lei reformadora do futebol Como já afirmei em outro texto1, talvez pudesse se afirmar que a LGF seja um avanço. Mas não é disso que o Brasil precisa. Outras leis, desde a Lei Zico, passando pela Lei Pelé até chegar, recentemente, à lei que introduziu o Profut, trouxeram avanços. Mas que não foram suficientes para resolver o problema do futebol. A situação do esporte no país confirma esta proposição. Importante recordar que, em relação à administração do futebol, vive-se momento atípico, extraordinário. A fragilidade do modelo existente, decorrente de escândalos internacionais de corrupção, prisões, crise com patrocinadores e outros eventos, oferece oportunidade histórica de se discutir e se introduzir uma nova forma societária para a organização do futebol. Porém, qualquer esforço legislativo não pode apenas trazer novos avanços. Não. Somente se justifica se vier para resolver os problemas existentes. Aliás, mais do que isso: se também não criar outros novos problemas. 4. A LGF Enumeram-se, abaixo, alguns pontos que devem ser objeto de profunda reflexão, para evitar o fracasso do projeto, e para que, como se disse antes, não tragam novos problemas para o futebol brasileiro. Ou, igualmente relevante: para que não representem obstáculos, voluntários ou involuntários, para complicar e esvaziar o debate. I. O art. 69 "estabelece o regime jurídico das sociedades anônimas desportivas (sades)". A criação de um novo tipo societário deve ser tida como um tema de direito societário, e não de direito esportivo. É evidente que deve existir profundo conhecimento e sintonia com esta disciplina, mas não uma apropriação conceitual. Neste sentido, e seguindo a fórmula adotada pelo Código Civil para regulação da sociedade anônima2, uma lei geral do futebol, que trata da criação de tipo societário, deve simplesmente prever, em um único artigo, que é admitida a sua constituição, na forma de lei especial. E deixar para esta lei especial a sua regulação. II. A técnica sugerida no item anterior permite isolar a discussão societária da esportiva. Além disso, evita que o trâmite seja afetado por conta de outras discussões, inegavelmente relevantes, mas que envolvem interesses próprios. Bem como de temas políticos que, certamente, influenciarão o debate. III. Assumindo-se que uma lei geral do futebol deva regular apenas o futebol, não faz sentido a criação da sociedade anônima desportiva (Sades). Esta tipificação deve ser eliminada para dar lugar ao objeto da lei geral: o futebol, sendo a sua forma societária a sociedade anônima do futebol3, e a sua regulação feita em lei especial. IV. Uma lei que pretende resolver problemas do futebol brasileiro pode - e deve - olhar, entender e importar certas soluções existentes em outros países. Mas não as copiar, sem as devidas adaptações. Este é um problema sério da LGF, ao adotar regras existentes no direito espanhol e, sobretudo, no português, que - novamente - fazem sentido para suas realidades. V. Uma lei que pretende ser definitiva deve ser concebida como um sistema integrado, harmônico e lógico. A LGF não segue este caminho. A racionalidade por trás dela consiste em misturar normas ibéricas com praticamente todas as propostas contidas no Projeto de Lei 5.082/16, de autoria do Deputado Otavio Leite - PSDB/RJ (a seguir definido como "PL 5.082/16"). VI. Ao tentar um exercício de encaixe de todas essas leis e projetos, somando-se outras disposições, produz-se uma lei sem integração, pouco harmônica e, em certos aspectos, ilógica. Talvez um ornitorrinco jurídico. VII. Vejam-se alguns exemplos: (a) o tratamento diferenciado que se dá a Sades, em função da forma como ela se constitui. No caso de constituição da Sades em decorrência da personalização jurídica das equipes, conforme termo empregado no art. 71, II, o clube fundador somente poderá deter, a qualquer tempo, no máximo 40% e, no mínimo, 15% do capital social. Um equívoco, que aniquilará o interesse do clube em constituir uma sociedade anônima, regulada pela LGF, pois, necessariamente, não a poderá controlar. Esta deve ser uma decisão exclusiva dele, clube, e não do legislador. (b) ainda no caso de personalização jurídica das equipes, o clube somente poderá integralizar sua parcela no capital em dinheiro. Mais um equívoco pois, se há algo relevante e único que pode ser contribuído pelo clube para formação da Sades é justamente o conjunto de ativos ligados ao futebol, tais como marcas, direitos econômicos de atletas e estádio. (c) outro equívoco consiste na interferência da autonomia da Sades de organizar-se, econômica e operacionalmente. Decorre, sobretudo, da imposição de limite, de 30% de seu orçamento anual, para pagamento ao clube, em contraprestação da utilização de instalações físicas (como estádios). Este não é, definitivamente, um tema de direito societário. E mais ainda: não se justifica por intervir em relação jurídica puramente privada: clube/Sades. (d) mais um equívoco, para fechar a lista trazida como mera amostragem, consiste na antecipação do destino de certos ativos na hipótese de extinção da Sades, sem guardar qualquer relação com a sua efetiva situação patrimonial e com a sua estrutura societária. De acordo com o art. 109, "quando tiver lugar a extinção de sociedade anônima desportiva, as instalações desportivas serão atribuídas ao clube desportivo fundador". Qual o motivo disso? Mas e se o clube deixar de ser acionista? Ou se detiver, por exemplo, 15% do capital social, e o estádio corresponder a 40% do patrimônio4? 4. Notas finais A LGF incorpora, no capítulo destinado à sociedade anônima desportiva, toda a estrutura da SAF, prevista no PL 5.082/16, de autoria do Deputado Otavio Leite; mas insere uma série de outros dispositivos, que abalam a coerência sistêmica. Como já se afirmou anteriormente, "para que se forme o mercado que o país precisa, que terá enorme potencial de contribuir para o seu desenvolvimento social e econômico, é recomendável que se adote um sistema próprio, sem a tentação de importar mecanismos que talvez se justifiquem em seus países de origem, mas não no Brasil. A exemplo do PL 5.082/16". E, ainda: "que sua discussão no Congresso, pela matéria envolvida, se separe da discussão de uma Lei Geral". Pois esta, sem dúvida, tem natureza esportiva; enquanto a sociedade anônima do futebol, natureza societária. __________ 1 Idem. 2 O Capítulo do Código Civil que trata das companhias se limita, em dois artigos, ao seguinte: "Art. 1.088. Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se em ações, obrigando-se cada sócio ou acionista somente pelo preço de emissão das ações que subscrever ou adquirir". E: "Art. 1.089. A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código". 3 Mesmo que se indique, no art. 70 da LGF, que a Sades se aplica primordialmente à prática do futebol, seu alcance, conforme o texto proposto, é muito mais amplo. E assim revela enorme potencial de gerar dúvidas interpretativas e de aplicação, podendo incrementar o nível de litigiosidade. Ou comprometer sua eficácia. Além de trazer para discussão pública agentes ligados a outras modalidades esportivas que, de modo legítimo, terão interesse em propor modificações pensando em suas modalidades de atuação, criando-se, assim, um ambiente diversionista - quando, na verdade, o que deve estar em discussão numa lei geral da modalidade é apenas esta modalidade. 4 Deve-se lembrar que, se o estádio passar à esfera patrimonial da Sades, esta terá pago por ele ou, então, terá recebido como integralização de capital. Em qualquer caso, o clube receberá sua contrapartida, seja na forma de preço ou de ações.
quarta-feira, 1 de junho de 2016

Abertura de capital da CBF - Parte IV

Tratou-se, nas edições de 27 de abril, 18 e 25 de maio de 2016 desta coluna, a respeito de estruturas jurídicas voltadas à abertura de capital da CBF. Apesar de existirem outras possibilidades, a sequência de artigos sobre o tema se encerra, por ora, com esta parte IV, na qual se apresenta mais um caminho no sentido sugerido. Lembre-se, apenas, que na parte III apresentou-se uma modelagem que preservava a CBF como associação civil e responsável pela seleção brasileira e, ao mesmo tempo, a posicionava como acionista de uma companhia organizadora de campeonatos, copas e outros temas. Desta vez, a associação civil será mantida, porém, sem qualquer vínculo, inclusive societário, com a companhia que será constituída para gerir, organizar e desenvolver todos os temas relacionados ao futebol, exceto a seleção brasileira. I. Estrutura O primeiro passo consiste no desmembramento, pelos associados da CBF, de suas atividades, resultando em duas entidades distintas, com propósitos também diferentes. Uma será designada "CBF Seleção" e, a outra, "CBF Demais Atividades". O resultado da deliberação é o seguinte: Note-se que os associados de ambas as associações são os mesmos, inexistindo qualquer participação associativa da CBF original na nova entidade. O passo seguinte envolve a atribuição de títulos patrimoniais da CBF Demais Atividades aos Clubes que, mantendo a sugestão prevista na Parte III (coluna de 25 de maio), integrarem as 4 principais divisões do campeonato brasileiro. Alternativamente, pode-se, também, atribuir títulos às Federações Regionais. Na sequência, os Clubes e, conforme o caso, as Federações, deliberam, em assembleia geral, a desmutualização da CBF Demais Atividades, de modo que os antigos associados passam a ostentar a condição de acionistas de uma nova companhia, a CBF Demais Atividades S.A. ("CBF S.A."). O organograma, após essa deliberação, é o seguinte: Por fim, os acionistas da CBF S.A. deliberam a abertura de capital da companhia, oferecendo ações ao público. A estrutura final é a seguinte: II. Reflexos A CBF Seleção permanece uma associação civil, sem fins lucrativos, com propósito de gerir o selecionado. Enquanto a CBF S.A. será uma companhia, com ações negociadas em bolsa de valores. Note-se, portanto, que, como já adiantado, não existe qualquer participação da CBF Seleção no capital da CBF S.A., chegando-se, então, a uma modelagem que estabelece uma nova relação de forças no âmbito do futebol, sem interferência direta da entidade vinculada à FIFA na organização de campeonatos, ligas, copas e atividades conexas. Por outro lado, as Federações e os Clubes que participam da primeira e segunda divisões do campeonato brasileiro continuam, em decorrência da Lei 13.155/15, a exercer o direito de voto em assembleias da CBF Seleção. III. Méritos do modelo O principal deles consiste na inexistência do conflito, verificado na Parte III, decorrente da participação direta de CBF Seleção em CBF S.A. Lembre-se que, em vista da situação de monopólio que aquela exerce e do "produto" que ela gere, com penetração em todo o Brasil e com um público seguidor e consumidor (praticamente) equivalente à população do país - sem contar sua exposição e atração no exterior -, inexistem incentivos para que a CBF Seleção dispenda recursos e tempo para o desenvolvimento da companhia controlada, sobretudo quando puder, de algum modo, interferir em seus negócios e nos seus planos de atuação. Aliás, conforme se defende nesta Coluna, quanto maior o desenvolvimento do futebol nacional e menor sua dependência de uma estrutura centralizada, menor será a importância da CBF (qualquer que seja o modelo e sua natureza jurídica) e, possivelmente, maior será a canalização de recursos para Clubes e atletas. Algo que, aparentemente, a atual CBF pretende evitar, justamente para manter seu poder sobre todo o sistema futebolístico. Outra vantagem do modelo reside no fato de que, partindo-se da premissa de que os Clubes serão os principais beneficiados com a abertura de capital, sua sujeição à CBF tende a diminuir e, em muitos casos, desaparecer, de maneira que poderão passar a atuar, na qualidade de associados da CBF Seleção (ou em decorrência do direito de voto que detêm) com liberdade, em prol do futebol nacional e da própria seleção, por ela gerida. Inverte-se, portanto, a lógica de poder. De maneira que a CBF Seleção se torna um veículo, sob a condução indireta de seus associados (e dos titulares de direito de voto), e não mais um fim em si mesma, uma entidade com poderes anômalos, que influencia inclusive os Poderes Constitucionais. E que, "de baixo para cima", por meio do exercício do poder de seus administradores, domina e controla seus associados e entidades votantes, subvertendo o centro decisório. IV. Possíveis críticas ao modelo A principal crítica envolve a perpetuação do "encastelamento" da seleção, em uma associação civil sem fins lucrativos. Com isso, perde-se a oportunidade de levar adiante sua desmutualização e a oferta, a toda a população, de ações de uma companhia que terá, como objeto, o principal símbolo nacional: sua seleção. Esta crítica talvez seja, para alguns - é bom registrar -, motivo de apoio ao modelo. Justamente pelo fato de que se pode entender que a seleção não deve ser tratada sob a lógica empresarial e de mercado. V. Conclusões O modelo que se apresentou na Parte III, apesar de viável estruturalmente, revelava um possível conflito que o tornava, à primeira vista, menos recomendável, mesmo se se estruturasse um sofisticado programa de governança. O novo modelo, sugerido nesta Parte IV, resolve o impasse, não por meio de técnicas de governança, mas pela sua própria estrutura. De maneira que, ao cabo, as entidades resultantes da reorganização não têm qualquer participação societária uma na outra, e não podem, assim, uma influenciar ou controlar a outra diretamente. Ele também tem o mérito de inverter a lógica de poder no âmbito da CBF, que se concentra, atualmente, em seus administradores, e não em seus associados (ou detentores de direito de voto). Estes cumprem papéis formais, confirmadores das indicações de vontade daqueles que, em tese, deveriam seguir seus comandos e orientações gerais. Mas, como apontado acima, tem o demérito de deixar passar uma oportunidade de impor uma reforma total, inclusive no âmbito da organização da seleção nacional.
quarta-feira, 25 de maio de 2016

Abertura de capital da CBF - Parte III

A proposição de abertura do capital da CBF foi inicialmente abordada na edição de 27 de abril de 2016 desta coluna. Posteriormente, voltou-se ao tema na edição de 18 de maio e, nela, apresentou-se um modelo alternativo, prevendo o desmembramento da CBF em duas associações: uma com o propósito de gerir e organizar a seleção brasileira e, outra, de comandar todas as demais atividades atualmente sob sua responsabilidade, especialmente campeonatos, copas e assuntos conexos. Após o desmembramento, as associações se transformariam em sociedades anônimas e, na sequência, abririam seus capitais ("Parte II"). Esse modelo se ilustra da seguinte forma: Retoma-se o tema nesta Parte III, para contemplar outro possível modelo de abertura de capital. Desta vez, mantendo a atual CBF como associação civil e responsável pela seleção brasileira, e acionista - não a única - de uma companhia organizadora de campeonatos, copas e outros temas. I. Estrutura O primeiro passo consiste na constituição, pela CBF, de uma nova associação (a "CBF Demais Atividades"), vertendo-lhe todos os ativos e atividades que integram seu patrimônio, exceto aqueles relacionados à seleção brasileira, resultando na seguinte estrutura: O segundo passo envolve a atribuição de títulos patrimoniais da CBF Demais Atividades aos Clubes que integrarem - como sugestão -, as 4 principais divisões do campeonato brasileiro. O resultado seria o seguinte: Alternativamente, pode-se atribuir títulos patrimoniais também às Federações Estaduais, resultando no organograma abaixo: Com isso, passam a existir e coexistir duas associações, com finalidades e objetos próprios, e com distintos interesses e associados. II. Reflexos A "CBF Seleção" permanece uma associação civil, sem fins lucrativos, com propósito de gerir o selecionado. Enquanto a CBF Demais Atividades será desmutualizada e abrirá seu capital. De modo que seus associados, ou seja, a CBF Seleções e os Clubes, num modelo, e, junto com esses grupos, as Federações, em outro, deliberam em assembleia a transformação da "CBF Demais Atividades" em sociedade anônima ("CBF S.A."), assumindo, a partir da deliberação, a condição de acionistas. Na sequência, deliberam a abertura de seu capital, resultando na seguinte estrutura acionária: III. Eventuais motivos para adoção desse modelo A revista The Economist aborda o tema da reforma do futebol mundial em artigo publicado na edição do dia 20 de fevereiro de 20161. O texto, denominado Reforming FIFA. Sec as parrot, propõe o deslocamento da FIFA para os Estados Unidos e a abertura de seu capital na Bolsa de Nova York. Aponta, no entanto, que essa passagem não deveria se operar sem a imposição de medidas protetivas, a fim de evitar que um "barão" do mercado assumisse o controle da companhia. E propõe, então, que uma associação sem fins lucrativos (cheritable arm) detivesse a maioria das ações votantes da companhia e, consequentemente, a controlasse. Aí está, portanto, um eventual argumento em defesa do modelo ora apresentado. III.i. Consequências práticas A adoção dessa estrutura no processo de reorganização da administração do futebol brasileiro pode, eventualmente, fortalecer ainda mais a CBF Seleção. Além dos recursos oriundos da exploração da seleção, ela passaria a contar com o produto dos excedentes distribuídos (dividendos) pela CBF S.A. para investir não apenas em suas atividades, mas para exercer seu protagonismo nos planos político e organizacional. Mitiga-se essa situação com a redução de sua participação no capital da CBF S.A., de maneira que seus votos sejam irrelevantes para formação da vontade social - e desde que ela não possa, por outros meios, pressionar ou influenciar a posição dos demais acionistas -, e os dividendos que se lhe paguem, por conta dos lucros, não representem parcela significante de suas receitas anuais. IV. Motivos para preocupação com o modelo O modelo talvez não resolva o conflito, indicado na Parte II, que atualmente impede o desenvolvimento do futebol e de campeonatos e copas nacionais. Lembre-se que lá se verificou que a receita oriunda da seleção é suficientemente confortável para manter a estrutura atual de poder da CBF, sem que se exija a elaboração e implementação de um plano "empresarial" para desenvolvimento de atividades ligadas aos campeonatos internos e, sobretudo, para fortalecimento dos Clubes. Ao contrário, quanto maior a fragilidade e a desorganização clubística, e mais intensa a insignificância econômica dos eventos de que participem, maiores serão os incentivos da CBF para direcionamento dos interesses para o manejo e controle da seleção. Assim, se uma hipotética CBF S.A. puder, de algum modo, afetar o projeto de dominação de sua acionista - a CBF Seleções -, está terá, então, motivos para atuar e agir em seu próprio interesse - ou de pretenso interesse maior, o da seleção -, em detrimento da CBF S.A., companhia na qual detém participação societária. De maneira que se chega a um paradoxo: apesar da separação patrimonial e administrativa, a influência que o acionista pode exercer na companhia, sobretudo se sua participação no capital for relevante - ou se puder, de algum modo, influenciar a decisão dos demais acionistas - revela um conflito que somente se resolve com a adoção de modernas técnicas de governação societária. V. Conclusões O modelo que se apresenta nesta Parte III, apesar de viável estruturalmente, sugere um possível conflito que o torna, à primeira vista, pouco recomendável. Mas que pode, com a imposição de técnicas de governança, ser contido e aprimorado. De todo modo, ele abre a perspectiva para uma nova variação estrutural, que será revelada na Parte IV dessa série sobre abertura de capital da CBF, a qual - adianta-se -, ao libertar a companhia que terá como propósito a organização interna da atividade futebolística do comando da CBF, oferece-lhe os meios para competir e equiparar-se às modernas ligas europeias e norte-americanas. _________ 1 The Economist.
Na edição de 27 de abril de 2016 desta coluna, discorreu-se sobre a abertura de capital da CBF ("Parte I"). Em breves linhas, foram abordados os seguintes aspectos: (i) natureza jurídica da Confederação; (ii) relação jurídica entre Federações e Clubes, de um lado, e a CBF, de outro; (iii) incentivos para sua "mutualização"; (iv) indicação de procedimentos para sua desmutualização; e, finalmente, (v) passos para abertura de seu capital. Conforme o modelo tratado e sugerido em Parte I - o qual, aliás, é exposto com detalhes no livro Futebol, Mercado e Estado ("Livro")1 - as Federações e os Clubes se tornam acionistas da CBF S.A. em decorrência de sua desmutualização. Esta nova companhia passa a gerir, então, todas as atividades atualmente organizadas pela CBF, tais como a seleção brasileira, calendário, patrocínios, campeonatos e copas. Com o registro de emissor e a oferta pública de ações no mercado, ato final do procedimento que se sugeriu, todos os acionistas, inclusive aqueles que adquirirem ações na oferta pública, participam dos resultados de todas as empresas econômicas sob a gestão da CBF S.A. Há, é importante registrar, outras estruturas que podem, eventualmente, ser adotadas a fim de direcionar o processo de abertura de capital da CBF. Aliás, uma alternativa foi exposta pelos mesmos autores do Livro, em Audiência Pública promovida pela Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito da Câmara dos Deputados, destinada a investigar e apurar denúncias sobre dirigentes da FIFA acusados de determinados crimes ("CPI Futebol"), realizada no dia 03 de maio. É sobre essa estrutura alternativa que se discorre a seguir. I. Alternativa A proposição parte da premissa de que a CBF pode, alternativamente, ser desmembrada, de modo que se reconheçam as distintas naturezas das atividades por ela geridas. Assim, separam-se a administração da seleção brasileira da organização e gestão dos campeonatos, copas e atividades afins. A ideia consiste, portanto, na criação, pelas entidades que atualmente dispõem de direito de voto na CBF (Federações e Clubes), de uma nova entidade, autônoma, que terá como propósito cuidar, gerir, desenvolver e aperfeiçoar os campeonatos e copas sob sua gestão, bem como temas e interesses relacionados. Com isso, passam a existir e coexistir duas associações, com finalidades e objetos próprios. A partir daí os procedimentos para abertura de capital são aqueles previstos em Parte I. II. Reflexos Os reflexos desse caminho se verificam, portanto, na existência de duas associações, que ostentam, no momento da criação da segunda, a mesma estrutura associativa da primeira. Seus "associados" deliberam, então, em assembleia de cada uma das associações, a criação e a atribuição de títulos patrimoniais a Clubes e Federações, que passam a deter ativos de ambas. Na sequência, os associados deliberam, nas respectivas assembleias de cada associação, a transformação delas em sociedades anônimas, assumindo, a partir das deliberações, a condição de acionistas de duas companhias distintas. Por fim, deliberam a abertura de capital de uma ou das duas, simultaneamente ou em momentos distintos. III. Eventuais motivos para desmembramento Esse modelo se justifica na hipótese de admitir-se que as atividades de gestão da seleção brasileira e de campeonatos e torneios nacionais são "produtos" distintos, que podem ter lógicas administrativas e empresariais próprias. Assim, cada companhia tem seu conselho de administração e sua diretoria, capital e orçamentos exclusivos, e propósitos específicos. E, consequentemente, patrocinadores, apoiadores, investidores e públicos próprios. A segregação também se justifica caso se reconheça que, no âmbito de uma mesma companhia, com as características da CBF, a aglutinação das atividades gera conflitos e, potencialmente, prejuízos aos agentes que, de algum modo, participam e detêm legítimos interesses no desenvolvimento autônomo de cada modalidade. Apesar de tratar-se de uma afirmação não conclusiva, e que pode ser relativizada em função da governança adotada pela companhia, sobretudo com a imposição de normas internas que protejam e isolem cada atividade, a forma como o futebol é gerido no país parece conduzir para a validação da hipótese. Mais do que isso: revela o conflito que opõe a CBF aos Clubes que participam, atualmente, de copas e campeonatos administrados por ela. De acordo com matéria publicada pelo Jornalista Rodrigo Capelo, "quatro em cada cinco reais arrecadados pela CBF em 2015 só chegaram ao caixa da entidade graças à popularidade da Seleção Brasileira. Dos R$ 518,9 milhões que a confederação teve em faturamento na temporada, R$ 425,6 milhões, ou 82%, estão ligados a contratos de patrocínios, direitos de transmissão e partidas realizadas pela equipe dirigida por Dunga de janeiro a dezembro"2. Em outras palavras, a CBF, aparentemente, privilegia a seleção em detrimento dos Clubes, campeonatos, copas e outras atividades correlatas. Ou, também de modo apenas opinativo e intuitivo, ela se satisfaz com essa disparidade de receitas, que são suficientes, dentro da lógica associativa e sem finalidade lucrativa atual, para manter a estrutura e os interesses de seus dirigentes. A despeito da vontade e dos interesses clubísticos. Os números individualizados e apresentados por Rodrigo Capelo parecem, efetivamente, confirmar, de algum modo, essas premissas: do total da receita de patrocínio, 96% decorrem da seleção (R$ 326 milhões); e dos direitos de transmissão, 61% (R$ 68,6 milhões) são produzidos pelo time nacional. Além desses montantes, arrecadaram-se outros R$ 31 milhões com amistosos e outras atividades da seleção. O valor remanescente, que se produz por conta de campeonatos, copas e temas relacionados, é, com efeito, frustrante, tanto quando se analisa o potencial do futebol brasileiro, como no âmbito da própria receita da Confederação, visto que representa apenas 13% do total3. IV. Comparações A discussão a respeito da concentração de atividades já se operou em outros países e o reflexo de seu direcionamento se nota na estrutura administrativa adotada em alguns dos principais centros de prática do futebol. Casos de, exemplificando, Inglaterra, Espanha e Alemanha. Neles, as Confederações continuam a gerir suas seleções, enquanto as atividades de organização de campeonatos e copas se deslocaram para Ligas, as quais, de modo autônomo, defendem os interesses de seus participantes. A análise dos resultados dessas Ligas revela possíveis indicativos do acerto do modelo (levando-se em conta que, por lá, ainda não se partiu para um modelo de concentração de todas as atividades por uma única entidade, de natureza econômica, conforme modelo sugerido em Parte I). Com base nos números de 2014, as cinco principais ligas europeias (inglesa, alemã, espanhola, italiana e francesa) faturaram, em conjunto, 11,3 bilhões de euros, sendo que a maior delas, a inglesa, representa 3,9 bilhões e a menor, a francesa, 1,5 bilhões4. Lembre-se que essas ligas não administram ou operam suas respectivas seleções nacionais, o que torna o resultado da CBF, quando confrontado com seus números, ainda mais preocupante. E, do ponto de vista econômico, quase desprezível. V. Conclusões A abertura de capital da CBF é um caminho que deve ser seriamente avaliado pelo Estado. Sua função seria estabelecer incentivos, sobretudo fiscais, para que Federações e Clubes pratiquem os atos necessários à sua implementação. Sob a ótica dos agentes que podem impor essa mudança, de acordo com a legislação vigente e o estatuto da CBF, o destino final se atinge por caminhos distintos. Um deles, apresentado em Parte I, prevê a concentração de todas as atividades em uma única companhia. Outro, indicado neste texto, admite a separação de atividades, e a transformação em duas companhias, que se sujeitarão a administrações próprias, disporão de capitais e recursos exclusivos, e seguirão seus caminhos em função de seus planos e suas estratégias, com o propósito de valorizar e desenvolver seus objetivos. __________ 1 Editora Quartier Latin, 2016, de autoria de José Francisco C. Manssur e Rodrigo R. Monteiro de Castro. 2 Época. 3 Somam-se às receitas da seleção (82%) e de competições (13%), outas lançadas como "eventuais". 4 Cf.: Annual Review of Football Finance Highlights, da Deloitte; acesso em 17/12/2015.
A elite política, formadora das bases conservadoras e, de certa forma, reacionárias do pensamento contemporâneo brasileiro, é responsável pela crise de identidade do país. A idolatria e a subserviência aos cânones doutrinários que forjaram nações ditas desenvolvidas, sem terem passado, por estas bandas, pelo necessário teste de tropicalização e pertinência, justificam o descompasso nos planos político, econômico e cultural. O xis do problema reside, justamente, nessa inconcebível padronização e equiparação de manifestações naturalmente díspares, inconciliáveis e indomáveis: com efeito, a cultura de um povo não pode ser medida por valores e padrões globais e globalizados, baseados em poder econômico e supremacia política. A apropriação econômica da cultura implica, portanto, a mediocridade conceptiva e produtiva de grande parte das nações contemporâneas, centrais ou periféricas. Essa lógica se revela em especial no Brasil, e na apropriação teórica e metodológica de seu maior bem cultural: o futebol. E explica o papel periférico e secundário que o quarto maior país do planeta e, até pouco tempo, 7a economia do mundo, cumpre no ambiente globalizado. Entender, recuperar e alçar o futebol ao seu papel de protagonismo na economia contemporânea é fundamental para que o país não apenas reverta as crises econômicas e políticas que o afundam, mas, principalmente, para que passe a cumprir sua função transformadora no plano universal. Sua irrelevância atual, portanto, é função da disposição - voluntária, sob um ângulo entreguista; ou involuntária, sob ângulo não menos perverso, que se materializa com a inépcia e incompetência na formulação de políticas públicas e privadas, no manejo e na administração - de seu maior produto. Aí está a fórmula para o renascimento tardio do país: a aceitação de sua origem formadora, multirracial e cultural, disponível e por vezes exageradamente displicente, mas sempre pronta à cooperação e à solução dos problemas que se apresentam. Estas características, aliás, diferenciam o Brasil de nações dominadoras e colonizadoras, que mantêm, há séculos, seus propósitos expansionistas, e que envolvem, nos tempos atuais, a (des)apropriação, direta ou indireta, do futebol. Não por outra razão que está em curso o movimento multilateral, porém formalmente desorganizado, para impedir o surgimento de uma nova superpotência, cuja grande arma não se produzirá em fábricas e não derramará sangue; ao contrário, que enaltecerá a relação pacífica dos povos, a partir de um código comunicacional universal, e exercerá sua condição de prevalência pelo simples jogo de bola. Nesse ambiente, nada representa melhor a capacidade de afirmação e prevalência do Brasil do que o seu futebol. Essas ideias não são novas. Estão aí há décadas, difusas, disformes, mas latentes. Sócrates, o Brasileiro, soube lançá-las: "[o] futebol é nossa maior riqueza enquanto nação. É através dele, nosso grande teatro popular que podemos nos entender. Discutindo como nosso jogo é construído, estamos realizando uma autêntica terapia coletiva. (...) Nós, se tivéssemos gente melhor preparada para enxergar e difundir as coisas do futebol, teríamos encaminhado, há muito, e de forma mais coerente e profunda, as questões mais caras ao nosso povo. (...)". Sócrates, o Futebolista, integrante de uma geração de heróis macunaímicos, não acreditou que ele fazia parte dessa gente melhor capaz de interpretar e cumprir seu destino transformador e prevalente, e sucumbiu à pressão do discurso dominante, que se materializa na (in)feliz apropriação da figura do vira-lata, ser inferior no plano formacional, intelectual e atlético. Ali, em 1982, esse conflito se pôs como em poucos momentos ou cenários recentes na história civilizatória. Não se disputava um simples jogo de futebol. O duelo não era puramente estético, contrapondo a poética brasileira à dura prosa italiana, nas palavras de Pasolini. Não. O embate era ético, universal, e transcendia os dilemas que afligiam o povo brasileiro. Era seu futuro, não apenas no plano político interno, mas sobretudo como "nação apta a assumir o papel de protagonista no plano mundial", que estava em jogo. Os conflitos existenciais e a energia que se direcionava para reverter um regime de exceção talvez expliquem o fracasso. Que deve ser encarado como reversível e, provavelmente, necessário para confirmação, a posteriori, de suas verdadeiras vocações. A "nossa gente", apropriando-se de expressão corrente em João Saldanha, é, sim, capaz de entender os fatores que, no momento atual, insistem em fragilizar a confiança do brasileiro e negar sua capacidade transformadora e de protagonismo no destino universal. José Miguel Wisnik protesta contra essa postura histórica de subserviência; mais do que isso, contra essa complacência com a recusa de reconhecimento e valorização dos elementos verdadeiramente brasileiros (como, aliás, também se vê em Sócrates, o Brasileiro): "(...) em vez de dizer que o Brasil se faz reconhecer pelo seu poderio futebolístico mas não pelas coisas de fato importantes, é o caso de reconhecer que talvez seja difícil alguma coisa 'de fato importante' acontecer se não formos sequer capazes de compreender o sentido da importância que o futebol ganhou no país". Ou melhor, é importante realçar: que sempre teve, para aproximação de uma sociedade democrática, sobretudo racial, inclusiva do ponto de vista social e capaz de instituir elementos para formação de uma "indústria" pujante e sem concorrentes. Essas características foram há muito detectadas pelas nações prevalentes, que não economizaram esforços para impor seus interesses, (i) pela importação descontrolada de jogadores - produtos acabados e preciosos - a preço de commodity -; (ii) pelo desprezo com o processo adaptativo desses jogadores em ambientes naturalmente opostos; (iii) também pela submissão desses jogadores brasileiros a campanhas difamatórias, quanto às suas qualidades humanas, intelectuais e esportivas, para lembrá-los de que, apesar do efêmero sucesso profissional e econômico, representam uma raça inferior e comedora de bananas; e (iv) finalmente, pela imposição, aos resistentes e insistentes, de padrões táticos escolásticos criados para superar a falta de qualidades técnicas e de improvisação, de que não padecem, matando-lhes as características inatas que os distinguem dos demais. No plano interno, a apropriação do jogo de bola por pessoas que ostentam interesses próprios, geralmente econômicos ou políticos, e que não raro desconhecem os fundamentos básicos do esporte, contribuem e justificam a capitulação da nação. A nação de chuteiras está, na verdade, descalça, e não sobre um campo de várzea: mas de joelhos, sobre o asfalto, pedindo benção e perdão, a todos, pelas suas virtudes. Desde 1982 o futebol brasileiro vem sendo exposto a toda sorte de expiação, interna e externa, que o conduz à posição que se quer vê-lo - e como, de fato, se viu, no Mineirão, em 2014: dominado, inerte, inanimado. As raras exceções, protagonizadas por jogadores fenomenais, que se formam ao acaso (e apesar da falta de estrutura básica formal, privada ou pública) remetem, no entanto, à origem da formação do país, que nega Caio Prado Júnior e, de algum modo, tributa a Gilberto Freyre a potencialidade reprimida, mas inata, do brasileiro - e, sobretudo, do seu futebol. Gritou-se independência em 1822; em ato formal, libertou-se o escravo em 1888; bradou-se a República em 1889; depois, em mais de 120 anos, o país conviveu com inúmeros movimentos políticos ou econômicos, uns mais ou menos nacionalistas, outros mais ou menos liberalizantes. Em seu projeto de formação do Novo Estado Nacional, Getúlio construiu os alicerces para formação da indústria brasileira, mas não se atentou à importância do jogo das elites e do povo. Os governos impostos pelo Regime Militar apropriaram-se do esporte como elemento de propaganda, negando-lhe, porém, qualquer possibilidade de libertação e desenvolvimento. Nos anos que se seguiram à Constituição de 1988, muitos projetos surgiram, alguns se institucionalizando; mas nenhum, até hoje, teve o mérito de resolver o problema revelado por Sócrates, o Brasileiro: o reconhecimento de que o futebol não é circo, mas ciência; e seus agentes, os jogadores, numa visão pouca romântica, tecnologia. É assim que o Governo, o Congresso e os agentes que pretendem discutir um novo modelo para o futebol devem encará-lo: como o seu maior bem, cultural e econômico.
quarta-feira, 4 de maio de 2016

A sociedade anônima do futebol

O deputado Otavio Leite (PSDB/RJ) apresentou à Câmara dos deputados, no mês de abril, o projeto de lei 5.082, que cria a sociedade anônima do futebol (SAF) e estabelece "procedimentos de governança e de natureza tributária para modernização do futebol". Trata-se de uma elogiável iniciativa que pode colocar o Brasil no caminho de recuperação e do desenvolvimento deste esporte que é um elemento crucial da cultura do país. Discorre-se, a seguir, a respeito de alguns aspectos do PL. A SAF é um tipo especial de sociedade empresária, que se rege, prioritariamente, por sua lei própria. Porém, a ela se aplica, de modo complementar e naquilo que não for expressamente tratado no projeto, o disposto na lei 6.404/76. Ela deve ter seu capital dividido em ações, e a responsabilidade de seus acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas. Constitui-se a SAF: pela transformação de um clube; pelo clube, com a transferência de ativos relacionados ao futebol para formação do capital; pela iniciativa de pessoas físicas ou jurídicas que assumam direitos de clube existente; ou pela transformação de sociedade empresária que tenha por objeto a prática de futebol e que participe de competições desportivas profissionais. Seu capital social poderá ser formado em dinheiro ou em qualquer espécie de bem, suscetível de avaliação em dinheiro. Neste caso, o bem deve ser avaliado por empresa especializada. Pode ser acionista da SAF (i) pessoa natural residente no país ou (ii) pessoa jurídica ou fundo de investimentos, constituído, em qualquer destas hipóteses, de acordo com as leis brasileiras e que tenha sua sede no território brasileiro. A pessoa jurídica ou fundo de investimentos que detiver participação igual ou superior a 10% do capital deverá, no prazo de cinco dias, informar à SAF e comunicar ao público o nome da pessoa física que lhe for controladora. As ações de emissão da SAF podem ser ordinárias ou preferenciais. O número de ações preferenciais sem direito a voto não pode ultrapassar 50% do total das ações emitidas. As ações ordinárias poderão ter uma ou mais classes. A SAF emitirá, necessariamente, ação ordinária classe A, que somente poderá ser subscrita pelo Clube que a constituir. Enquanto o Clube detiver pelo menos 10% do capital social, a deliberação de determinadas matérias, como a prática de qualquer ato de reorganização, dependerá do seu voto positivo. Ademais, enquanto detiver ao menos uma ação classe A, a deliberação das seguintes matérias exigirá, igualmente, o voto afirmativo do Clube: (i) modificação da denominação; (ii) modificação dos signos identificativos da equipe profissional, incluindo símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; (iii) utilização de estádio ou arena, em caráter permanente, distinto daquele utilizado pelo Clube; (iv) mudança da sede para outro município; e (v) reforma do estatuto que altere qualquer condição, direito ou preferência da ação classe A. A SAF deverá ter, necessariamente, um conselho de administração e uma diretoria. Não podem fazer parte desses órgãos, por exemplo, membros de qualquer órgão administrativo do Clube ou integrantes de órgão administrativo de outra SAF. Enquanto o Clube for o único acionista da SAF, seu conselho deverá ser composto de metade menos um, no mínimo, de conselheiros independentes. Além disso, o estatuto poderá estabelecer requisitos necessários para o exercício do cargo de conselheiro. Os membros da diretoria deverão ser remunerados e dedicar-se à administração da SAF com exclusividade. Esse novo tipo societário terá um conselho fiscal de funcionamento permanente, formado por no mínimo três integrantes. Enquanto o clube for acionista único da SAF, pelo menos a maioria de seus membros será independente. Não poderá integrar o conselho fiscal pessoa que seja empregada ou que exerça qualquer cargo no clube, inclusive eletivo. As demonstrações financeiras da SAF serão auditadas por empresa de auditoria, com registro na CVM. A SAF não poderá participar do capital de outra SAF. De modo análogo, o Clube que constituí-la também não poderá participar do capital de outra SAF. O associado do Clube, acionista da SAF, terá direito de preferência para subscrever ações no caso de registro de emissor, pela SAF, e realização de oferta pública. A subscrição também poderá ser feita de modo menos oneroso, conforme critérios estabelecidos na oferta. A SAF poderá promover todas as publicações previstas na lei 6.404/76 exclusivamente em sítio próprio na internet, devendo mantê-las nesse local pelo prazo de dez anos. Mais um ponto interessante do PL: a previsão de emissão de debêntures especiais do futebol (debênture-fut). Esse valor mobiliário deverá ser remunerado por taxa de juros prefixada, que não poderá ser inferior ao rendimento anualizado da caderneta de poupança, permitindo-se a estipulação cumulativa de remuneração variável, vinculada às atividades ou ativos da SAF. Além da debênture-fut, a SAF poderá emitir qualquer outro valor mobiliário, na forma da Lei 6.404/76 ou conforme regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O projeto tem, ainda, um capítulo que regula a tributação da SAF. Oferece-se, de modo muito perspicaz, um regime especial e transitório (o re-fut), que permite ao futebol migrar do modelo amador, gerido por associações civis sem fins lucrativos, para o de mercado, como ocorre nos principais centros de prática futebolística do mundo. O re-fut, de todo modo, é voluntário, podendo a SAF, se preferir, adotar a sistemática aplicável às sociedades empresárias em geral (lucro presumido ou real). Por fim, um elogiável aspecto social do PL: a instituição do programa de desenvolvimento educacional e social. Trata-se de mecanismo de convênio entre a SAF e instituições públicas de ensino, para promover medidas em prol do desenvolvimentos da educação por meio do esporte, e do esporte por meio da educação. Os objetivos do convênio são incentivar (i) a assiduidade de crianças e jovens matriculados em escolas públicas, (ii) o envolvimento e o interesse dos alunos nas atividades educacionais promovidas pela escola e (iii) a formação de jovens atletas do futebol. Aí está, portanto, uma descrição abreviada do instrumento legislativo, de autoria do deputado Otavio Leite, que oferece ao país o veículo adequado para formação de um enorme e pujante mercado, com inegável potencial econômico e social.
quarta-feira, 27 de abril de 2016

Abertura de capital da CBF - Breves notas

Neste texto se discorre, de modo sucinto, em itens, a respeito das premissas e das vantagens da regulação, por via legislativa, de incentivos à abertura de capital da CBF. I - Natureza jurídica da CBF e poder de voto 1. A CBF é uma associação, sem fins lucrativos, regida pelo art. 53 e seguintes do Código Civil. 2. O Estatuto da CBF determina que votam nas assembleias da CBF as Federações Estaduais e os Clubes que participam da 1a divisão do campeonato nacional. 3. A lei 13.155/15, que criou o Profut, estende o voto nas assembleias da CBF aos Clubes participantes da 2a divisão do campeonato nacional. 4. Não existe, no Estatuto ou na Lei, relação entre voto e posição de associado da CBF. 5. Assim, não se pode afirmar, com certeza, quais são os associados da CBF. Mas se afirma, sem dúvida, que o voto em assembleia não tem relação com a condição de associado ou de detentor de títulos patrimoniais. II - Incentivos para "Mutualização" 6. O caminho para uma nova CBF é a abertura de seu capital. 7. Para que se atinja esse objetivo, deve-se, antes, implementar alguns passos. 8. O primeiro deles é a proposição de incentivos, por via legislativa, para que Federações Estaduais e Clubes deliberem, em assembleia da CBF, a criação e a atribuição, para cada um deles, de títulos patrimoniais da CBF. 9. Os títulos criados serão atribuídos em função de critérios objetivos, tais como títulos de campeonatos internacionais e nacionais e tamanho da torcida. 10. Com isso, os beneficiados - Federações Estaduais e Clubes -, passam a deter ativos, que são os mencionados títulos patrimoniais da CBF. Cria-se riqueza, pois os ativos terão, com a desmutualização, valor. Eventualmente, muito valor. 11. A atribuição desses títulos deve ser tratada de forma especial pelo Estado, pois se está a construir os pilares de um novo mercado, que albergará novas relações jurídicas, passíveis de criação de riquezas aos agentes envolvidos com o futebol, e de aumento de arrecadação por parte do fisco. 12. Recomenda-se, portanto, a edição de uma lei que isente as Federações Estaduais e os Clubes dos ganhos auferidos com a atribuição de títulos patrimoniais. 13. Apesar de, num primeiro momento, haver um inegável benefício, este será de algum modo compensado, sob a ótica do fisco, no momento em que o beneficiado alienar suas ações da CBF desmutualizada, como se verá adiante. III - Desmutualização 14. Atribuídos títulos patrimoniais a Clubes e Federações Estaduais, o passo seguinte consiste na desmutualização da CBF. Trata-se, a desmutualização, do ato transformador da natureza jurídica. De modo que a CBF deixa de ser uma associação sem fins lucrativos e passa a ser uma sociedade empresária. Idealmente, uma sociedade anônima. 15. Isto feito, as Federações Estaduais e os Clubes tornam-se acionistas e proprietários de ações da CBF ("CBF S.A."). 16. Podem, assim, alienar suas participações societárias, conforme critérios que vierem a ser estabelecidos no estatuto da CBF S.A., recolhendo, em contrapartida, os tributos decorrentes do ganho de capital. 17. Esse ganho também pode ter um tratamento especial, com alíquotas diferenciadas por conta da importância cultural do futebol; ainda mais: pelo fato de estar-se criando e estruturando, como já apontado, um novo mercado, com enorme potencial social e econômico. 18. Em qualquer hipótese, o fisco ganha, pois se recolherão tributos que, atualmente, não se recolhem; o Clube ganha, pois encaixará recursos que podem ser utilizados para investimentos ou pagamentos de dívidas; as Federações Estaduais ganham porque terão recursos para o desenvolvimento do futebol no plano regional; o torcedor também pela expectativa de que seu time tenha mais condições de investir, formar e disputar títulos; e os jogadores pela segurança de celebrar contratos com Clubes mais robustos economicamente. 19. Ninguém perde. IV - Abertura de capital 20. O grande passo se daria com a abertura de capital da CBF S.A. Isso significa que a CBF S.A., inicialmente com capital dividido entre Clubes e Federações Estaduais, passaria a ter ações negociadas em bolsa de valores. 21. Com esse passo os Clubes e as Federações Estaduais participam da valorização e do crescimento de uma companhia bem organizada. Quanto mais se valorizar, mais ganham por conta da participação societária decorrente da desmutualização. 22. Mas, se preferirem, podem alienar suas ações em mercado, beneficiando-se, economicamente, da operação. 23. No caso de abertura de capital, sugere-se que o estatuto da CBF S.A. estabeleça que: (i) nenhum acionista, exceto Federações Estaduais ou Clubes originários, detenha participação superior a determinado percentual, por exemplo de 1, 3 ou 5%. Com isso, impede-se que uma ou poucas pessoas controlem a CBF S.A.; (ii) todo acionista seja residente no Brasil ou empresa brasileira; (iii) no caso de acionista empresa brasileira, deve-se abrir o nome do controlador final pessoa física, seja ele brasileiro ou estrangeiro, sempre que a empresa atingir, na CBF S.A., o percentual acionário máximo admitido ou outro número definido no estatuto; (iv) a administração se componha de um conselho, com membros independentes, e de uma diretoria profissional, remunerada e que deva dedicar-se, com exclusividade, aos temas da CBF S.A.; (v) os mandatos dos membros da administração sejam de no máximo 3 anos, permitidas reeleições; (vi) exista um conselho fiscal, de funcionamento permanente; (vii) as demonstrações financeiras sejam auditadas por empresa registrada na CVM; (viii) se publiquem as demonstrações financeiras no sítio eletrônico da CBF S.A. 24. Esses cuidados estimularão a participação de um número expressivo de pessoas no capital da CBF S.A., necessariamente residentes no país ou empresas brasileiras. V - Mais um incentivo 25. A fim de estimular a participação do povo brasileiro no capital da CBF S.A., atingindo-se, assim, o objetivo de que a seleção seja ou possa ser de todos (basta querer investir, mesmo que valor pouco expressivo, representativo de uma ação), sugere-se a edição de uma lei que trate especialmente do ganho de capital do investidor pessoa física. 26. A ideia é incentivar a manutenção da propriedade da ação, por pessoas físicas, por prazos maiores. A alíquota decorrente do ganho de capital decresceria anualmente até que, ao cabo de, por exemplo, 5 anos, seria zerada. De modo que se premiaria o acionista, pessoa física, que mantivesse o investimento com uma expectativa não especulativa, mas associada ao futebol do Brasil. VI. Conclusão 27. Sugere-se a proposição de uma lei que incentive a desmutualização e a abertura de capital da CBF, criando-se estímulos para que Clubes e Federações Estaduais deliberem a atribuição de títulos patrimoniais e, na sequência, a transformação em sociedade anônima. Depois, a abertura de seu capital. 28. O processo gerará riquezas aos Clubes e, mais importante, contribuirá para o fortalecimento do futebol brasileiro. E, ainda mais relevante: permitirá a participação de milhares e milhares de brasileiros, quem sabe milhões, no capital da CBF.