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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O futebol e o Estado: a vez do STF

O Estado brasileiro possui um histórico de leniência em relação ao futebol: nunca se exigiu que os clubes andassem com as próprias pernas. Isenções tributárias, parcelamentos de débitos fiscais, baixa fiscalização do cumprimento das obrigações legais e injeção de capital por meio de patrocínios - apenas em 2017 foram R$ 153,3 milhões destinados pela Caixa Econômica Federal1 - são exemplos do tratamento diferenciado e privilegiado que é dispensado ao futebol no Brasil. Daí a afirmação de que o Estado subsidia a empresa futebolística. Permissivo e condescendente, o Estado contribuiu para a construção de um ambiente em que os clubes e os seus dirigentes se sentem, de certa forma, protegidos pelo poder público. Isso conduziu (i) à estagnação do desenvolvimento organizacional, caracterizado por um modelo de propriedade colonialista; (ii) à ausência de um modelo de governação adequado; e (iii) à recorrência de práticas indesejadas, como atrasos de salários, descumprimento de obrigações tributárias e falta de transparência informacional. É natural que o futebol não seja equiparado, sem distinções, a qualquer outra atividade econômica. Futebol envolve paixão. Além disso, faz parte da cultura brasileira e do patrimônio nacional. Mas, há limite para o privilégio. Afinal, trata-se, também, de uma empresa econômica. Aliás, mesmo quando o Estado pretende criar regras e mecanismos para, formalmente, endireitar (ou salvar) os clubes - e, consequentemente, preservar o futebol -, o faz de modo errático, com base em uma lógica punitiva. O Profut é o mais recente exemplo disto: a imposição de uma série de obrigações, sem o oferecimento dos meios que os clubes precisam para se desenvolverem e, assim, cumprirem com essas mesmas obrigações, é contraproducente. Beira, até, a inocência acreditar que o mero estabelecimento de (novas) exigências mudaria as práticas internas dos clubes. O problema do futebol brasileiro é, portanto, mais profundo, e tem origem na sua anacrônica estrutura. Essa proposição se confirma com o teste empírico do modelo que se tentou impor: diversos clubes não conseguem, não querem ou não se organizaram para cumprir as obrigações impostas pela lei - apesar da adesão voluntaria ao Profut - e, mais uma vez, recorrem à condescendência estatal. Anteontem (18/9/2017), foram premiados com liminar, concedida pelo Supremo Tribunal Federal - STF, que suspendeu a eficácia de certas normas introduzidas pelo Profut. A decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, em Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo Partido Humanista da Solidariedade (PHS) e pelo Sindicato Nacional das Associações de Futebol Profissional e suas Entidades Estaduais de Administração e Ligas, traduz bem a relação entre o futebol e o Estado brasileiro. Desta vez, a leniência emanou do Judiciário; entretanto, se dela não viesse, o Legislativo ou o Executivo se encarregaria de livrar os clubes das consequências decorrentes do descumprimento do Profut. Aí está a real crônica de uma morte anunciada: todo mundo sabia o desfecho da estória e já contava com o fim das punições. Faltava apenas o argumento. E não se pretende, aqui, discutir o mérito dos argumentos admitidos pelo STF; mas são notícias como essa que atestam que sempre haverá uma solução estatal para o problema estrutural do futebol. Com isso, os clubes que não aderiram ou Profut ou que, tendo aderido, se mantiveram na linha, receberão um tratamento desigual e, de certo modo, ingrato (ou injusto). Do ponto de vista prático, são penalizados por cumprirem a lei. Ao contrário do que se prega no meio, a recente decisão do STF não salva o futebol; ao contrário, o empurra ao desgoverno, à certeza de que sempre haverá uma mão visível para produzir o salvamento institucional. Por tudo isso, o Estado e a sociedade precisam despertar para um problema de dimensões continentais, com reflexos sociais e econômicos realmente importantes. Está na hora de se empreender uma profunda e estruturada revisão dos modelos de propriedade e de governação da empresa futebolística. Sem esse encaminhamento, os Poderes continuarão a praticar o revezamento intervencionista que vem destruindo o maior bem do brasileiro: o futebol. __________ 1 Caixa reduz proposta ao Corinthians e "democratiza" patrocínios no futebol em 2017 - Revista Época.
quarta-feira, 13 de setembro de 2017

E agora, torcedor do Figueirense?

Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Aparentemente, a aproximação do futebol ao modelo empresarial é uma obsessão no Figueirense. No passado, já se ensaiou tentativa. Cite-se a constituição, anos atrás, da Figueirense Participações e Gestão Desportiva S.A. ("Figueirense Participações"), empresa para a qual o clube "terceirizou" a gestão do futebol. À época, o clube transferiu à Figueirense Participações a incumbência de conduzir as atividades futebolísticas, incluindo a administração da marca, dos contratos e demais ativos relacionados, os quais, antes, eram exclusivamente de competência do clube e de seu departamento de futebol. O negócio envolveu, portanto, a segregação do gerenciamento do time, que se concentrou em uma sociedade anônima de capital fechado, controlada por membros do conselho de gestão do clube. Por outro lado, a concepção organizacional do clube Figueirense não foi modificada naquele momento; manteve-se como associação sem fins lucrativos, e assim permanece até hoje. No início de 2010 o negócio terminou e a condução do futebol resgatada pelo clube. Restou, no entanto, a promessa: um comitê de transição seria criado para estudar um novo modelo de gestão das atividades futebolísticas. Parece que essa promessa se cumpriu. Em agosto deste ano (2017), anunciou-se a celebração de parceria com um fundo de investimento internacional, que assumiu a gestão do futebol pelos próximos 20 (vinte) anos. Pouco se sabe sobre essa parceria, mas, as (escassas) informações divulgadas dão conta de que uma sociedade empresária fora constituído para ser o veículo pelo qual o fundo desempenhará suas atividades. Ao que parece, o investidor assumirá todas as dívidas do Figueirense (beirando, hoje, os R$ 80 milhões) e passará a controlar os ativos relacionados ao futebol, a exemplo dos contratos, direitos federativos dos atletas e estrutura física, incluindo o estádio Orlando Scarpelli. Como condições impostas ao fundo de investimento, existem, aparentemente, cláusulas de desempenho, prevendo, por exemplo, (i) a manutenção do Figueirense na Série A do Campeonato Brasileiro durante, pelo menos, 75% (setenta e cinco por cento) do prazo de vigência da parceria, e (ii) a possibilidade de rescisão, por parte do clube, se o time for rebaixado à Série C da liga nacional. Caso a intenção de rescisão, no entanto, parta do fundo de investimento, a gestão do futebol deverá ser devolvida ao clube nas mesmas condições atuais. As promessas saltaram aos olhos: injeção de R$ 10 a R$ 15 milhões já neste ano de 2017, contratação imediata de jogadores e indicação de técnico de confiança do investidor (Milton Cruz, com curtas passagens interinas como técnico do São Paulo), investimentos nas categorias de base, construção de uma arena, participação na Copa Libertadores da América em 5 (cinco) anos e na Copa Sul-Americana, pelo menos por 6 (seis) vezes, nos próximos 20 (vinte) anos, e conquista de títulos nacionais. É um discurso ambicioso e bastante atrativo, sem dúvida. Portanto, a aparente vontade do Figueirense de se desenvolver e se consolidar como uma potência no futebol nacional é legítima. Contudo, há diversos pontos de interrogação e aspectos, eventualmente, problemáticos no modelo escolhido - escolha essa que, ao que parece, foi fortemente influenciada pelo péssimo momento vivenciado pelo time no primeiro turno da Série B do Campeonato Brasileiro de 2017. O mais relevante deles diz respeito à similitude que essa parceria parece ter com os tantos outros projetos malsucedidos, que foram desenvolvidos logo após o advento da Lei Pelé (lei 9.615/1998). Investimentos com essas características, envoltos em mistério e sigilo, não se mostraram, até hoje, um modelo organizacional capaz de (i) desenvolver, de forma sustentável, a empresa futebolística e (ii) gerar uma relação profícua entre investidores e investido. Além disso, vão na contramão de recentes movimentos internacionais. Alguns casos são emblemáticos. O PSG é time de dono. Todos o conhecem. Sabem quais são seus planos e os riscos envolvidos. Esse estado de coisas não afastou a torcida do estádio; ao contrário. O Bayern também atua sob a forma de uma companhia, controlada pelo Clube Bayern, mas que tem, como acionistas, Adidas, Audi e Allianz. Esse modelo também não repeliu sua torcida. Já o Porto, igualmente uma companhia, tem suas ações admitidas à negociação em bolsa de valores. Esses processos são irreversíveis. O Brasil está muito atrasado e caminha para tornar-se um mero formador de commodity. Por isso, o surgimento de investidores interessados em resgatar a potencialidade de times locais deveria ser comemorado. A comemoração, no entanto, ocorrerá se, e apenas se, se tiver visibilidade absoluta a respeito das pretensões e dos interesses envolvidos. Novamente, a decisão da administração do Figueirense pode, eventualmente, mostrar-se, no futuro, acertada, ou não. Acertar ou errar faz parte da função do administrador. O problema é a escuridão. Por estes motivos que a proposta de criação da Sociedade Anônima do Futebol - SAF faz sentido, pois oferece aos clubes a oportunidade de se adequarem aos conceitos modernos de gestão e governança corporativa, indispensáveis à atração de bons financiadores, mitigando riscos em benefício da preservação do próprio futebol, como elemento cultural arraigado na sociedade brasileira. Enquanto não se refundar a estrutura do futebol brasileiro, as iniciativas - mesmo que, na essência, bem intencionadas - isoladas e pouco transparentes continuarão a estimular a sensação - ou a certeza - de que se mantém o aviltamento do patrimônio futebolístico nacional. Torçamos, entretanto, para que, um dia, não se perceba, subitamente, que a festa [ou o jogo] acabou, a luz apagou, o [investidor ou a torcida] sumiu.
quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Muralha da China

O mundo inteiro já percebeu o potencial econômico do futebol. São bilhões de dólares movimentados anualmente com patrocínios, direitos de transmissão e de jogadores, produtos licenciados, ingressos, dentre outras várias fontes de receitas. O reflexo disso pode ser facilmente identificado não só pela inflação das cifras nas últimas transferências de atletas - como no caso da negociação de Neymar com o Paris Saint Germain -, mas, também, pela entrada massiva, nos clubes transformados em empresas, de agentes do mercado financeiro, especialmente fundos de investimento, e pelo crescimento de ligas periféricas, a exemplo das asiáticas. A China ilustra essas proposições. Donos da segunda maior economia mundial, os chineses voltaram seus olhos de vez para o futebol. A sua liga vem recebendo investimentos vultosos e importantes atletas internacionais foram contratados. A evolução é nítida. Alguns anos atrás, seria impossível imaginar que estrelas como Carlitos Tévez, Jackson Martínez e Hulk trocariam clubes europeus, e até mesmo sul-americanos, para disputar o campeonato chinês. E não há qualquer segredo no discurso: a China quer se tornar, até 2050, uma potência mundial, iniciando com a meta de classificar a seleção nacional para a Copa do Mundo de 2022, a ser disputada no Catar. Com esse objetivo lançou, aliás, um plano ousado, cujas bases estão fincadas no fomento à criação da cultura do futebol e no desenvolvimento dos atletas locais. Apesar do crescente sucesso da liga, com a valorização dos direitos de transmissão televisiva das partidas - muito em razão da presença de atletas internacionais -, os chineses perceberam que o modelo pautado na importação não se adequava aos objetivos do país no longo-prazo. O emprego de recursos em contratação midiática não formaria, como de fato não formará, uma base local sólida e competitiva. Ademais, esse movimento passou a ser visto como espécie de "evasão de divisas", gerando riqueza direta e imediata apenas aos times vendedores, geralmente alocados no estrangeiro. Afinal, os montantes gastos com as transferências internacionais poderiam ser aplicados dentro do país, em escolas, profissionais e infraestrutura voltados à prática do futebol pelos próprios chineses, o que serviria melhor ao propósito de transformação da China em uma potência mundial. Partindo dessa premissa, a Associação Chinesa de Futebol (Chinese Football Association - CFA) instituiu a cobrança de uma espécie de "taxa", com alíquota de 100% (cem por cento), sobre as contratações de jogadores estrangeiros. Assim, caso um clube chinês da primeira divisão que estiver em déficit - e, aparentemente, este é o caso de quase todos eles - contrate um atleta estrangeiro, deverá depositar em um fundo governamental o mesmo valor pago ao clube vendedor pela transferência, o que dobra o custo da contratação de jogadores de outras nacionalidades. Designado especificamente para o desenvolvimento do futebol local, e gerido pelo governo nacional, o fundo terá a missão de formar novos atletas chineses e promover o esporte no país. Os efeitos dessa nova medida já foram sentidos: na última janela de transferências, a maior contratação de estrangeiro por um clube chinês movimentou 5,7 milhões de euros, em uma negociação envolvendo o empréstimo do atacante Anthony Modeste, pelo Colônia, clube alemão, ao Tianjin Quanjian, onde joga o brasileiro Alexandre Pato. Criou-se uma nova "Muralha da China". E sob o mesmo pretexto: proteger o país da invasão estrangeira. Naturalmente, as semelhanças entre a regra instituída pela CFA e a estratégia militar, adotada há mais de 2 mil anos, param por aí. Mas, é curioso notar os traços dessa tendência protecionista, justificada pelo desejo de fortalecer o meio local, aprioristicamente, para, em seguida, galgar uma posição de hegemonia em escala mundial. Caso totalmente diferente do brasileiro: o país é o maior exportador de jogadores do mundo. Enquanto do outro lado do planeta estão "fechando os mercados", preocupados com o desenvolvimento dos atletas nacionais e a criação um "DNA futebolístico", os jogadores nacionais já nascem praticamente prontos, de berço, com o futebol correndo em suas veias. Apesar da abundância em matéria-prima, esses meninos não recebem a formação adequada para tornarem-se profissionais e competir em ambientes hostis e altamente competitivos. Poucos resistem e se destacam. O Brasil dispõe de todos os elementos que comporiam um ecossistema sustentável e inimitável: jogadores, times, campeonatos, seleção e torcida local, e que poderia se expandir, atraindo, especialmente, torcedores mundiais. O problema está posto: enquanto não se transformar a forma de gestão do futebol brasileiro e enquanto não for criado um ambiente propício ao desenvolvimento da atividade futebolística do país, inserindo os times em um contexto de mercado, disponibilizando instrumentos e mecanismos de controle e captação de recursos, inclusive e especialmente para educação, formação e manutenção voluntária de jogadores, o país se posicionará no terceiro ou quarto escalão das ligas nacionais, atrás, eventualmente, de liga que, em seu país, ainda concorre com o ... ping pong (ou melhor, tênis de mesa). O Brasil não construiu uma muralha, como a chinesa, mas cria obstáculos ao desenvolvimento do seu futebol que se mostram mais eficientes (e implacáveis) do que qualquer obra protecionista.
quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O Profut precisa de socorro

Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Há pouco menos de 1 ano, previmos que o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro - PROFUT ("Profut" ou "Programa") não salvaria ou resgataria o futebol brasileiro1. O tom da projeção não foi profético, mas ela, de fato, se concretizou: atualmente, os clubes discutem formas de flexibilizar regras contidas no Programa, como a manutenção da regularidade de suas obrigações trabalhistas e tributárias federais correntes, pois se viram incapazes de cumpri-las2. Prever o insucesso do Profut não foi tão difícil assim, infelizmente. E nem causa satisfação. Apesar dos méritos e avanços, o Programa foi construído sobre uma base punitiva - o que tem algum sentido, sem dúvida, diante do histórico de inadimplência e de apropriação indevida das riquezas dos clubes -, que o afasta, porém, do seu verdadeiro propósito: a recuperação. Alguns aspectos eram evidentes. O Profut estabeleceu, por exemplo, tipo de parcelamento especial, que permitiu a redução do passivo e o escalonamento do pagamento das dívidas, com a finalidade de aliviar a situação financeira e o fluxo de caixa dos clubes aderentes. Em contrapartida, exigiu o atendimento de determinados critérios, sob pena de rescisão do parcelamento, dentre eles, a mencionada regularidade das obrigações trabalhistas e tributárias federais, bem como a publicação de demonstrações contábeis auditadas, a limitação de gastos com atletas profissionais de futebol em, no máximo, 80% da receita bruta anual com tal atividade, entre outros. São medidas necessárias, é verdade, e que poderiam ter contribuído para a obtenção de melhorias. Mas não foram e não são suficientes, pois se prestam, na prática, a trazer algum alento para um modelo esgotado e irreversivelmente falido. Para tentar ilustrar, seria mais ou menos como jogar água mineral no Rio Tietê, com o propósito de purificá-lo. Assim, apesar de a lei 13.155/2015, criadora do Profut, ter formulado reformas importantes, não produzirá, sem a concepção de outros mecanismos menos defensivos, os efeitos pretendidos. A salvação exigirá, como no caso do maltratado rio, uma mudança comportamental e estrutural. Portanto, não basta dar a oportunidade de parcelar dívidas e exigir, como contrapartida, algumas poucas medidas de cunho intervencionista, mantendo-se, no entanto, o modelo secular associativo, que já foi abandonado em praticamente todos os centros relevantes de prática do futebol. A reforma deve ser mais ampla e estrutural. Deve envolver e transformar os modelos de governança e de propriedade. Deve permitir o financiamento da empresa futebolística. Deve, ainda, criar os meios para que os clubes em dificuldade encontrem saídas fora do paternalismo estatal e do sistema de subsídios. Enquanto não for proporcionado esse ambiente, leis como a do Profut servirão para resolver apenas problemas imediatos; e esses problemas voltam, a exemplo do que se verifica atualmente com os clubes aderentes, que estão com dificuldades para cumprir com as obrigações do Programa. Pode-se argumentar, até, que o insucesso decorre da resistência em relação à mudança. É verdade, para alguns. No entanto, há, sim, os que desejam melhorar, porém não conseguem, ante à inexistência de uma saída viável. O Profut precisa de socorro. Mas, o socorro não virá do Profut ou de sua revisão casuística e oportunista. Virá de outras iniciativas - como o projeto de lei 5.082/16, da Sociedade Anônima do Futebol, ou de uma nova proposta de recuperação judicial da atividade futebolística - que busquem criar o ecossistema propício ao desenvolvimento e ao financiamento do futebol brasileiro, e, assim, permitir que se gerem receitas e riquezas para o cumprimento dos propósitos pretendidos no Profut. Enquanto não se pensar e oferecer uma solução sistêmica, o país continuará a produzir um ciclo vicioso de medidas ineficazes. __________ 1 Profut: uma iniciativa paliativa. 2 Clubes não cumprem exigência do Profut e podem desfalcar Estaduais.
quarta-feira, 23 de agosto de 2017

"O Brasil precisa retomar o Brasil"

O jornalista Juca Kfouri1 declarou, em sua coluna na Folha de São Paulo2, que o saudosismo não o pega. Justifica-se apontando que, embora tenha visto o que de melhor já aconteceu, continua se divertindo com o futebol. Acho, sinceramente, que ele economizou no verbo. Divertimento é pouco, tenho certeza. O futebol continua a encantá-lo. Assim como encanta uns 150 milhões de brasileiros, talvez mais. Apesar do afastamento (e, em certos casos, desaparecimento) de ídolos históricos, que forjaram uma quase mitologia futebolística - Garrincha, Telê, Pelé, Rivelino, Zico, Falcão, Careca, Sócrates, Raí, Romário, Ronaldo ... -, nunca houve uma interrupção no processo de identificação e apropriação do futebol como elemento da cultura brasileira. A produção espontânea de novos jogadores não se interrompeu; ao contrário, o Brasil é o maior exportador do planeta. E aí está, paradoxalmente, o sintoma de uma crise estrutural que turva o sentimento individual e coletivo: a falta de identificação e de pertencimento. Os times brasileiros se tornaram, para os jogadores mais qualificados, meros veículos de passagem. A permanência se resume, assim, ao acaso. O objetivo é tomar o avião, mesmo que leve ao quase nada, isto é, a um país periférico, porém europeu, sem tradição, ou a um time irrelevante de país expressivo. Os jogadores menos talentosos seguem caminho ainda mais inóspito: vão para qualquer lugar, realmente qualquer lugar, ludibriados pelo sonho do estrelato. Esse estado de coisas causa a perplexidade exposta pelo jornalista: afinal, mal o país se encanta com um jovem talento, ele já decola para sua prematura aventura alienígena. O processo de amadurecimento, quando o caso, é acompanhado de longe, pelas projeções televisivas ou pelos consoles de games, e a eventual idolatria a um ou a outro jogador costuma ser fruto de um processo marqueteiro que se esforça para humanizar e criar vínculos nacionalistas. "O Brasil precisa retomar o Brasil", conclui Juca Kfouri, em tom não se sabe ao certo se esperançoso ou resignado. A verdade é que, se, de um lado, Pelé não voltará aos campos, de outro, o período romântico também se tornou parte da história, exceto pela resistência quixotesca de certas organizações varzeanas. O futebol mudou. É um dado da realidade. Mas ainda diverte. Ou melhor, encanta. Nesse novo cenário, não se compete apenas no plano interno; a competição extrapola fronteiras. A preferência infantil pelos times internacionais é o principal (e sintomático) exemplo. Aliás, a adulta também: pessoas formadas e outrora fanáticas se convertem e passam a acompanhar prioritariamente campeonatos estrangeiros. O grande problema ainda está por se anunciar, afinal, se a produção futebolística atual é incapaz de fidelizar novos torcedores, o que será dos torcedores do futuro, que não terão, em seus pais ou amigos, inspiração ou modelos de referência. O esvaziamento dos estádios locais é um fenômeno, portanto, que não se resume à violência envolvendo torcidas, que já foi, aliás, muito maior. O problema é estrutural. Sem reforço, a estrutura ruirá, de modo irreversível. Não, o futebol não desaparecerá neste país, mas caminha para sua consolidação como atividade marginal. A marginalização não implica, e aí está a dramaticidade da situação, o enfraquecimento da seleção. O país sempre produzirá duas dúzias de jogadores, produtos de exportação, que formarão um time competitivo que, eventualmente, se sagrará campeão olímpico ou mundial. Porém, as duas dúzias, isoladas, apequenam o futebol do país, e o título, que deveria ser a consequência, se converte em motivo. A inversão de valores é irrefutável. A sociedade demanda um projeto organizacional sustentável, que passa pelo reconhecimento de que futebol, no Brasil, é tema de Estado. Estado que deve prover o ambiente regulatório adequado para que o futebol cumpra suas funções econômicas e sociais, atraindo investimentos para formação e desenvolvimento de pessoas e geração de riquezas. Sem esse projeto, os times não superarão o estado coletivo de crise. E mesmo que um ou outro consiga, heroicamente, se diferenciar, integrará um ecossistema que tende a se autodestruir. A retomada do Brasil pelo Brasil implica, portanto, no plano futebolístico, a projeção de um novo Brasil. __________ 1 A expressão foi extraída de texto publicado pelo Jornalista Juca Kfouri, em sua coluna na Folha de São Paulo. 2 Idem.
O Estatuto do SPFC trouxe uma série de novidades para o mundo do futebol brasileiro. Uma delas foi a concepção de um Conselho Fiscal que se assemelha ao órgão homônimo das companhias abertas. Imagina-se, assim, que, após décadas de convivência com um modelo formalista, o clube passará, em todas as esferas afetadas pela reforma estatutária, por período de transição, até que o funcionamento se coadune com os propósitos que nortearam sua concepção. Essa tolerância não deve ser confundida, no entanto, com inobservância ou desvirtuamento de seus comandos. Ela também não pode ser interpretada como uma autorização para que se deixe de observar e aplicar o Estatuto. Aliás, não existe este tipo de liberalidade. Ao contrário, nele se prevê uma série de medidas punitivas, inclusive a responsabilização civil dos infratores. Nesse cenário, o Conselho Fiscal merece especial atenção. Sua principal função é fiscalizar. Um órgão com esta competência, mesmo que se insira, como de fato se insere, num ambiente político, não pode ser instrumento de pequena ou grande política. A contaminação se presta a reduzir - ou impedir - sua funcionalidade e sua importância. Por esse motivo se estabelece, no art. 88, que o membro do Conselho Fiscal não pode ter ocupado, no mandato anterior, cargo no Conselho de Administração ou na Diretoria. Além disso, proíbe-se a candidatura de associados que integrem o Conselho Deliberativo, o Conselho Consultivo, o Conselho de Administração e a Diretoria (cf. art. 83, §1o). Também se fixa, no art. 95, §1o, que os seus membros deverão exercer suas funções no exclusivo interesse do SPFC. Esta norma autoriza o permanente acompanhamento, pelos órgãos próprios, da atuação de cada conselheiro fiscal e a correspondência com as competências estatutárias. Ou seja, orienta o processo de verificação de condutas e se projeta sobre a atuação individualizada de cada membro. O conselheiro fiscal que atua com o propósito de fazer política, de usar seu poder fiscalizatório para atingir fins que não interessem ao SPFC - mas a pessoas ou grupos específicos -, se incompatibiliza com a função. O conflito é insuperável, pois se perdem os requisitos de autonomia e independência para fiscalizar. Passa o conselheiro a fazer política, a atuar politicamente, sendo o poder fiscalizatório o instrumento ilegítimo desse propósito. O fato de o órgão deliberar por maioria de votos de seus membros, na forma do art. 91, não abala a noção de incompatibilidade. Isto porque, mesmo vencido na formação da vontade, certas atribuições são singulares, podendo servir, assim, para a criação de fatos políticos irreversíveis. Por isso, aliás, que se veda a prática de qualquer ato, pelo Conselho Fiscal, estranho à sua função fiscalizadora, inclusive a interferência em atos de competência do Conselho de Administração e da Diretoria. Fixados, até aqui, os limites de atuação do Conselho Fiscal, passa-se, agora, a investigar, de modo sucinto, o alcance dessa atuação. O poder fiscalizatório não é absoluto. O tempo impõe ao órgão uma restrição, que se relaciona, é bom recordar, com a extensão da responsabilidade de seus membros. O art. 95 equipara a responsabilidade do conselheiro fiscal à dos demais administradores, determinando que respondam pelos danos resultantes de omissão no cumprimento de seus deveres e de atos praticados com culpa ou dolo. Por esse motivo, a função fiscalizatória se inicia no momento da posse e se projeta sobre atos praticados a partir do exercício em relação ao qual cumprirá suas funções. O poder fiscalizatório, assim, não se projeta para trás, especialmente pelo fato de já se ter cumprido o ritual de sujeição ao próprio Conselho Fiscal, que emitiu parecer, e aprovação posterior por órgão colegiado, como o Conselho Deliberativo. Opera-se, portanto, o esgotamento funcional. Admitir a abertura ou revisão de atos pretéritos, ademais, implicaria, para o fiscalizador, a ilimitação de sua responsabilidade, pois dele se poderia cobrar a permanente revisão de negócios concluídos, apreciados, fiscalizados e aprovados, sob pena de imputação de responsabilidade com base em omissão ou culpa. Num ambiente de tamanha incerteza e exposição, a reação à fiscalização tenderia a ser justamente o ataque ao agente fiscalizador. Portanto, o sistema também é arquitetado para proteger o conselheiro fiscal de atos políticos, realizados com o propósito de impedir o cumprimento de sua função fiscalizatória da administração em curso. Por outro lado, seu poder fiscalizatório, que é um poder-dever, não se restringe à verificação numérica ou de demonstrações financeiras. O art. 90, para evitar essa equivocada inferência, estabelece, expressamente, que lhe compete "fiscalizar, por qualquer de seus membros, os atos praticados pelo Conselho de Administração, pela Diretoria Eleita, pela Diretoria Social e pela Diretoria Executiva, e verificar o cumprimento dos seus deveres legais e estatutários". O acesso a documentos que deram origem aos números e a explicação sobre negócios ocorridos no curso do mandato são prerrogativas que não podem ser negadas, inclusive, em princípio, as que se sujeitem a dever de sigilo. Isto porque o Conselho Fiscal é órgão, é, no caso o SPFC, e não pode ser considero um terceiro para efeito da divulgação. Por outro lado, ao acessar documentos e informações, o conselheiro fiscal não pode dar-lhes publicidade, divulgar a terceiros, inclusive a membros de outros órgãos e associados, ou à imprensa, e dar-lhes qualquer finalidade estranha à sua função orgânica. Tal conduta contraria os interesses da instituição. Para concluir, havendo indício de que documento ou informação possa interessar pessoalmente a um conselheiro e dele fazer uso pessoal, ou de que possa gerar uma situação de conflito de interesse, o Presidente do Conselho Fiscal pode negar-lhe acesso, mediante justificativa. Enfim, nesse momento de implementação de uma nova estrutura de controle e fiscalização da administração do SPFC, a adequada atuação do Conselho Fiscal é fundamental para que, de um lado, o órgão não seja esvaziado e, de outro, não invoque poderes que não tem.
A lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 ("Lei de Recuperação de Empresas"), objeto da coluna da semana passada (2/8/2017), foi concebida para disciplinar a recuperação e a falência do empresário. Considera-se empresário, de acordo com o art. 966 do Código Civil, quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção de bens ou de serviços. O conceito atinge a pessoa física ou a pessoa jurídica que preenche todos os seus requisitos: profissionalismo, organização empresarial e finalidade econômica. A Lei de Recuperação de Empresas não se aplica, no entanto, a todos os empresários. Além daqueles excluídos por sua natureza, como a empresa pública e a sociedade de economia mista, a instituição financeira, a sociedade operadora de plano de assistência à saúde e a sociedade seguradora (art. 2º), também se excluem aqueles que não preenchem determinadas características, listadas no art. 48. Destaca-se, neste sentido, a exclusão do empresário que não exerça regularmente suas atividades empresariais há pelo menos 2 anos. A mencionada lei, ademais, não foi concebida para regular especificamente determinado segmento, aplicando-se, portanto, como regra, a qualquer setor da economia. Esse conjunto normativo impede, assim, a recuperação judicial da empresa futebolística, por alguns motivos. Primeiro porque, apesar de movimentarem volumes expressivos, todos os principais times brasileiros estruturam-se sob a forma de associação civil. A associação civil é uma pessoa jurídica, constituída pela união de pessoas, que se organizam para fins não lucrativos. Pouco importa, neste sentido, que ela opere, com habitualidade e de modo organizado, uma atividade que movimenta, eventualmente, centenas de milhões de reais. Falta-lhe, mesmo assim, um dos requisitos essenciais previstos no art. 966: a finalidade econômica. Por isso se lhe afasta, de maneira inequívoca, o reconhecimento da natureza empresarial e, como consequência, a incidência da Lei de Recuperação de Empresas. Aliás, eventuais excedentes gerados em suas atividades não são distribuídos aos associados, sob a forma de dividendos, e devem, em contrapartida, ser integralmente empregados na execução do objeto social. No caso de dissolução, inclusive, o patrimônio remanescente não se divide entre os associados, destinando-se à entidade de fins não econômicos designada no estatuto, ou, se omisso, à instituição municipal, estadual ou federal, que tenha finalidade idêntica ou semelhante. Segundo, um clube que eventualmente adote a forma de empresa, por meio da transformação, que é a operação pela qual, independentemente de dissolução e liquidação, passa-se de um tipo para outro, não poderá atrair, igualmente, a incidência da Lei de Recuperação de Empresas, pela ausência do requisito temporal. Ou seja, enquanto não operar o prazo de 2 anos no exercício da atividade empresarial, não poderá o empresário, que adquire esta característica pela transformação, requer recuperação judicial. A mesma solução se aplica à constituição, pela associação, de nova sociedade empresária com ativos do futebol. Esta sociedade, que será empresária, também se afastará do procedimento recuperacional enquanto o mencionado prazo, que se conta do ato constitutivo, não se produzir. Terceiro, e não menos relevante, a Lei de Recuperação de Empresas não foi concebida - e nem poderia - para solucionar problemas individuais ou setoriais, fixando conteúdo geral e abstrato. Assim, a atividade do futebol, que não é exercida por empresário, não foi objeto de preocupação do legislador. Curiosamente, trata-se, talvez, da única atividade relevante que - com exceção daquelas impedidas pela Lei de Recuperação de Empresas - carece de uma via jurídica que propicie a recuperação econômica. Essa realidade motiva o surgimento de planos de salvação, que focam em determinadas matérias, sobretudo tributárias. O Profut, que foi, sem dúvida, um avanço, tem, no entanto, em sua origem, um vício insanável: não cria um novo ambiente do futebol e não oferece meios de recuperação. Sua lógica é, involuntariamente, perversa, pois, se, de um lado, oferece benefícios para que os times parcelem suas dívidas tributárias e, assim, mantenham-se sob a forma da associação civil - sem criar, contudo, um novo ambiente propício ao financiamento do futebol e ao seu desenvolvimento econômico e financeiro -, de outro lado impõe determinadas sanções que, se aplicadas, intensificarão o estado de crise e afundarão os inadimplentes em situação irreversível. A inviabilidade do modelo se torna evidente com a proposta de reforma da mencionada Lei do Profut, defendida por dirigentes e congressistas. Caso venha a ocorrer, se estará, porém, simplesmente fugindo ao enfrentamento do problema, que não é de conjuntura, mas, sim, de estrutura. Portanto, o futebol brasileiro não voltará a ser grande com essa medida. Ela é paliativa e oportunista. Ele precisa, com urgência, de um marco regulatório que lhe confira a possibilidade de se financiar, de se desenvolver e cumprir suas funções social e econômica (na forma do Projeto de Lei n. 5.082/16, que cria a Sociedade Anônima do Futebol - SAF, de autoria do Deputado Federal Otavio Leite) e, paralelamente, de uma Lei de Recuperação Judicial da Atividade Futebolística, que estabeleça mecanismos para recuperar as empresas do futebol que, apesar de viáveis, encontrem-se em crise e dela não consigam sair apenas com a passagem para o modelo da SAF.
Em 09 de fevereiro de 2005 foi sancionada a lei 11.101 ("Lei de Recuperação de Empresas"), que ofereceu aos empresários brasileiros a oportunidade de, por via judicial ou extra-judicial, adotar procedimentos para iniciar a reversão do estado de crise e recuperar as condições de competição e de geração de riquezas. Além do próprio conjunto normativo, arquitetado para permitir a efetiva recuperação da atividade produtiva, a legislação inaugurou uma nova fase de aceitação, pela sociedade civil, da dificuldade alheia, especialmente do empresário. A crise empresarial pode decorrer de diversos fatores, internos ou externos à empresa: no primeiro grupo listam-se, como exemplos, os abalos econômicos, conjunturais ou estruturais, e políticos1. No segundo grupo se inserem as ações que aqui se dividem em maliciosas ou operativas. As primeiras envolvem a malversação da empresa e a apropriação, pelo sócio ou administrador, dos meios de produção e de suas riquezas; as demais, são consequenciais, isto é, decorrem (i) de decisões tomadas no âmbito das legítimas atribuições da administração (business judgement rule), (ii) de orientações equivocadas dos sócios, apuradas em reuniões ou assembleias legalmente convocadas, instaladas e realizadas, ou, por fim, (iii) da incapacidade de superação das situações econômicas ou políticas catalogadas no primeiro grupo, apesar da adoção de medidas antecipatórias ou reativas. O estado de crise não configura crime - exceto se a empresa tiver sido utilizada como meio para prática de condutas delituosas -, e não deve, por si só, justificar a condenação pública e o ostracismo social de pessoas afetadas. A Lei de Recuperação de Empresas operou, assim, o processo de ruptura com antigos dogmas, que cravavam, na antiga concordata, uma espécie de moléstia social. A aceitação da recuperação da empresa em crise é, portanto, sintoma de evolução da sociedade, caracterizada pelo abandono da apriorística certeza de incorreção dos atos do empresário. Com isso se incentiva a "superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica" (art. 47). Nem toda empresa em crise, porém, merece a compreensão social. O custo do processo de recuperação é, inevitavelmente, socializado, distribuindo-se as perdas entre os agentes que estabelecem alguma forma de relação com a empresa. Por isso que o desaparecimento de empresas inviáveis do ponto de vista econômico e o combate àquelas que fazem da corrupção sua forma de agir também coincidem com os interesses da sociedade. Não foi para elas que se arquitetou o sistema da recuperação. Fixam-se, então, as seguintes premissas: (i) a recuperação da empresa é benfazeja à sociedade, mas (ii) a empresa que não cumpre sua função social, deixe de reverberar os valores da sociedade ou lhe imponha, com a sua preservação, um custo maior do que a extinção, não merece a complacência social. Por três motivos, essa estrutura não se aplica, sem retoques, ao futebol. Primeiro porque, apesar de sua relevância econômica, vem sendo subsidiado e encastelado, há mais de século, pelo Estado. Segundo porque a natureza de todos os principais times brasileiros não é empresária, sujeitando-se, assim, a um regramento jurídico distinto daquele arquitetado às empresas. Terceiro, e não menos relevante, a atividade futebolística, no Brasil, não pode ser equiparada a qualquer outra atividade econômica. Não se trata, aqui, de levantar uma bandeira ufanista, de cores verde e amarela. Ao contrário, o que se pretende, simplesmente, é um chamamento ao puro pragmatismo: a formação de um mercado do futebol, que atrairá investimentos significativos e terá impacto social de dimensão nacional. A ruptura com o atual estado de coisas, responsável pela crise moral, esportiva e econômica dos clubes, depende de algumas medidas que tragam transparência, confiança e controle. A sociedade anônima do futebol - SAF, criada pelo PL 5.082/16, de autoria do Deputado Federal Otavio Leite, se revela, neste sentido, como o instrumento mais adequado para implementação do novo modelo. Muitos dos principais times, porém, poderão encontrar dificuldades para atrair investidores por conta de suas situações financeiras. Veja-se, aliás, o endividamento de 24 deles2: Qualquer agente de mercado ficaria tentado a defender a quebra da empresa ineficiente. No caso do futebol, essa máxima somente teria validade após a passagem por um processo de inserção e adaptação. Afinal, os associados de um clube, cuja natureza associativa protege-lhe da quebra, jamais votarão favoravelmente à constituição de uma sociedade empresária com ativos do futebol se houver risco de, na sequência, credores do próprio clube requerem a falência da nova sociedade. Da mesma forma, essa sociedade não atrairá investimentos sustentáveis se puder ser chamada a responder pelas obrigações do clube. Por isso tudo, além da instituição da SAF, chegou a hora de se conceber um verdadeiro plano nacional de recuperação judicial da atividade futebolística, que rompa com o secular protecionismo estatal e reforce as bases da criação do novo ambiente do futebol brasileiro. __________ 1 Aliás, o empresário brasileiro vem enfrentando, nos últimos 5 anos, um constante aguçamento dessas variáveis, que afetam brutalmente a tentativa de planificação e realização de cálculos empresariais. 2 Época.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo O Brasil é um país de dimensões e desigualdades continentais. Das 5 regiões brasileiras, 2 delas, Sul e Sudeste, concentram a maior parte do PIB nacional. Os reflexos dessa desproporção são sentidos em praticamente todos os setores, inclusive no futebol - e de forma significativa: a partir de 2003, quando o modelo de disputa por pontos corridos foi implementado, até hoje, nenhum clube de fora do Eixo Sul/Sudeste se sagrou campeão da Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro de Futebol. Aliás, nesses 14 anos, somente em 2 oportunidades times de outras regiões conseguiram alcançar um lugar entre os 5 primeiros colocados: Goiás/GO em 2005 (3ª posição) e Vitória/BA em 2013 (5ª posição). Não bastasse a desigualdade imposta pela concentração econômica, o modelo de distribuição de cotas televisivas intensifica o distanciamento entre os times brasileiros. Por isso, os times que não se beneficiam pelo critério geográfico e pela renda de televisão deveriam se antecipar aos concorrentes e implementar novas técnicas organizacionais que os tornem mais atrativos aos olhos de torcedores, jogadores, imprensa e, por que não, investidores. O Sport Club do Recife ("Sport"), time sediado na capital pernambucana, poderia, nesse cenário, tornar-se uma potência nacional ou, num projeto mais ambicioso, sul-americana. Seu modelo de governação - assim como o da maioria dos clubes brasileiros - não se coaduna, no entanto, com a realidade da empresa futebolística e o distancia desse ambicioso projeto. Eis, então, o caminho para que sua grandeza potencial se transforme em grandeza material, em realidade: um novo modelo de governação e de propriedade. Hoje, o Sport é uma associação civil sem fins lucrativos, que adota em sua administração os princípios do sistema presidencialista, conforme disposto em seu Estatuto Social, e tem os seus poderes divididos entre os seguintes órgãos: i) Assembleia Geral; ii) Conselho Deliberativo; iii) Diretoria Executiva; iv) Conselho Fiscal. A Assembleia Geral é órgão soberano, constituído por sócios do clube. Compete a ela, privativamente: (i) a eleição do Presidente Executivo, do Vice-Presidente Executivo, dos integrantes do Conselho Deliberativo, Titulares e Suplentes, (ii) a dissolução do Sport, (iii) sua fusão com outra entidade, (iv) a alienação de bem cujo valor seja superior a 10% do patrimônio, (v) a destituição, com fundamento em descumprimento estatutário, daqueles que exercerem mandato por eleição, e (vi) a alteração do Estatuto. Já o Conselho Deliberativo representa permanentemente o corpo social, sendo, ao mesmo tempo, o seu órgão legislativo. É composto por 150 membros Titulares - todos sócios maiores de 21 anos -, dentre os quais, necessariamente, os Conselheiros Natos (Ex-Presidentes Executivos e Ex-Presidentes do Conselho Deliberativo). Sua eleição se dá a cada biênio, permitidas reeleições, oportunidade em que também são eleitos 50 Suplentes de Conselheiros. O Conselho Deliberativo é orientado por um Regimento Interno próprio, além do Estatuto Social do clube, com base nos quais são atribuídas ao órgão algumas competências específicas, como: i) dispor sobre organização, estrutura, disciplina, gestão e demais matérias de interesse do clube; ii) apreciar as prestações de contas e relatórios da Diretoria Executiva, mediante prévio parecer do Conselho Fiscal, e de auditoria externa independente; iii) aprovar as propostas orçamentária anual, do plano de obras e de outras matérias de relevância apresentadas pela Diretoria Executiva; iv) decidir sobre operações que possam direta ou indiretamente comprometer o patrimônio do clube; v) apreciar a abertura de créditos suplementares e extraordinários e a execução de obras de grande vulto; vi) resolver os casos de levantamento de empréstimos para o clube; etc. No âmbito do Conselho Deliberativo, foi prevista, ainda, a possibilidade de criação de Comitês especiais, visando o assessoramento do órgão em assuntos que demandem estudos e reflexões mais aprofundadas. Quanto à Diretoria Executiva, ela é exercida pelo presidente Executivo, eleito, juntamente com o Vice-Presidente Executivo, pela Assembleia Geral, para mandato de 2 (dois) anos, permitida apenas uma reeleição consecutiva. Com a competência principal de realizar a administração geral do clube, ele é o único representante do Sport em quaisquer de suas relações. São, ainda, atribuições do Presidente Executivo: i) contratar, demitir, suspender e licenciar funcionários e empregados do Sport, fixando, inclusive, os seus salários; ii) designar os Vice-Presidentes e nomear os Diretores indicados por eles; iii) apresentar ao Conselho Deliberativo, anualmente, o relatório das suas atividades, acompanhado do balanço financeiro e dos pareceres do Conselho Fiscal e de auditoria externa; iv) assinar títulos que envolvam responsabilidade financeira e administrar as finanças dentro dos limites orçamentários, podendo antecipar receitas apenas em casos excepcionais, no limite de 20% do previsto para o ano subsequente, mediante aprovação do Conselho Fiscal e homologação do Conselho Deliberativo; v) apresentar ao Conselho Deliberativo relatórios trimestrais sobre a situação financeira do clube e o desempenho desportivo; etc. Atualmente, o Sport conta com 11 Vice-Presidências (Executiva, Futebol, Social, Engenharia, Marketing, Responsabilidade Social, Esportes Olímpicos e Amadores, Comunicação, Jurídica, Médica e Relações Institucionais) e 8 Diretores subordinados às Vice-Presidências: 4 de Futebol, dos quais um "executivo", 1 Diretor Médico, 2 de Marketing, dos quais uma "executiva", e 1 Diretor Executivo. Dentre outras atribuições, cabem às Vice-Presidências, principalmente, a realização de atividades específicas, abrangidas pelas áreas que lhes dão nomes, e a apresentação ao Presidente Executivo das suas propostas anuais de orçamento e de planos de obras, acompanhadas dos pareceres do Conselho Fiscal. Por fim, há, ainda, o Conselho Fiscal, composto por 3 membros efetivos e igual número de suplentes, eleitos pelo Conselho Deliberativo, com mandato de 2 anos, sendo vedada a eleição de ascendentes, descendentes, cônjuge, irmão, padrasto e enteado do Presidente Executivo. A sua função precípua é fiscalizadora, como o próprio Estatuto reconhece. Ao Conselho Fiscal compete: i) emitir pareceres sobre as demonstrações financeiras do clube, abertura de créditos extraordinários, verbas suplementares, proposta orçamentária anual apresentada pelo Presidente Executivo, e operações de crédito, por antecipação de receita; ii) examinar os livros, documentos e balancetes; iii) apurar responsabilidades da Diretoria Executiva e comunicar suas conclusões ao Conselho Deliberativo; iv) denunciar ao Conselho Deliberativo irregularidades eventualmente verificadas e propor medidas e providências para saneá-las; etc. O Estatuto Social do Sport, além das previsões comentadas acima, dedica parte especial para as receitas, vinculando-as à aplicação integral na manutenção e no desenvolvimento dos objetivos sociais do clube. Destaca-se a formação de um "fundo especial", destinado preferencialmente a investimentos específicos, como feito, por exemplo, até o fim de 2009, no Centro de Treinamento. Essa estrutura, que se repete, com variação, nos demais times brasileiros, não oferece a possibilidade de ampliação de receitas, mediante, por exemplo, (i) emissão de títulos de dívida - como se faz em qualquer companhia - para financiamento do futebol, (ii) atração de investidor qualificado, que poderia contribuir para melhoria dos níveis de controle interno, governaça e compliance ou, no limite, (iii) abertura de capital, com a preservação, pelo clube, do controle societário de empresa que detenha os ativos do futebol e que permita aos seus torcedores tornarem-se acionistas e ganharem, em todos os sentidos, com o time. Os caminhos são vários e não se esgotam nessa curta enumeração. E podem, ademais, ser implementados de modo sucessivo, em função da adaptação às novidades que vierem a se impor, todas visando à criação de uma estrutura que permita transformar o Sport de potência estadual em potência nacional e, depois, internacional. Torcida para isso o time tem. História e tradição, também. Falta-lhe, porém, a proposição de um modelo transformador, que o coloque no radar do futebol mundial, e atraia recursos - que estão realmente disponíveis - para projetos dessa magnitude.
quarta-feira, 21 de junho de 2017

O projeto de libertação do futebol

O atual presidente do São Paulo Futebol Clube (SPFC), Leco, comandou, em 2016, a reforma do arcaico estatuto que, com modificações pontuais, regulou, por anos e anos, as relações entre os seus associados. O processo foi longo e envolveu várias etapas, dentre elas, especialmente, a convocação de assembleia geral para aprovar a constituição de uma comissão de associados para formular uma proposta de reforma estatutária, a apresentação e o debate da proposta com associados e conselhos deliberativo e consultivo, e, finalmente, nova convocação de assembleia de associados para votar o texto final. Dentre as novidades, destaca-se uma, que surpreende, aliás, não apenas em relação à história do SPFC, mas à estrutura do futebol brasileiro. Ela está expressa na seção II do capítulo XXI e trata da cisão das atividades futebolísticas da entidade jurídica associativa. De acordo com o art. 170, Leco deverá, "no prazo improrrogável de 12 meses contados da posse dos membros do Conselho de Administração, elaborar, com a assessoria de terceiros especialistas de notável reputação profissional em suas áreas, um estudo de viabilidade visando à separação societária do futebol (profissional e categorias de base), das demais atividades praticadas pelo SPFC". O estudo poderá contemplar qualquer estrutura que viabilize a separação, incluindo a constituição, pelo SPFC, de uma sociedade empresária que detenha os direitos relacionados ao futebol profissional e que opere as suas atividades. O Conselho de Administração, órgão criado com a reforma estatutária, composto de 9 membros, dentre os quais 3 independentes, acompanhará o trabalho, por meio de um Comitê Especial de Acompanhamento do Estudo de Separação, composto de 3 conselheiros. Ademais, o Regimento Interno do SPFC, aprovado pelo Conselho Deliberativo, estabelece, no art. 74, §2º, que o Presidente Eleito (ou seja, Leco) poderá designar assessores especiais, não remunerados, para acompanhamento e participação, como seus representantes, no processo de estudo de viabilidade de separação, previsto neste artigo. Leco nomeou, em 9 de junho, por meio do Ato Administrativo 15/2017, o Conselheiro José Francisco Cimino Manssur, e a mim, para cumprimento da função de assessoria, na forma regimental. Portanto, se dará início imediato aos trabalhos. Aliás, essa determinação estatutária foi concebida, pela Comissão que a redigiu, a partir de estudos realizados justamente pelos indicados de Leco, em dos livros publicados em 2016, intitulados, respectivamente, Futebol, Mercado e Estado - Projeto de Recuperação, Estabilização e Desenvolvimento Sustentável do Futebol Brasileiro: Estrutura, Governo e Financiamento e Sociedade Anônima do Futebol: Exposição e Comentários ao Projeto de Lei 5.082/16. Os estudos se iniciaram, em 2015, coincidentemente, por uma demanda de reforma do próprio estatuto do São Paulo. À época, no entanto, sob a presidência de Carlos Miguel Aidar, se tinha como objetivo apenas a coleta de proposições dos diferentes grupos políticos, e, provavelmente, embromá-las, durante anos. Essa percepção, combinada com a certeza de que um bom estatuto, ou mesmo um excelente estatuto, não teriam utilidade num ambiente coletivo decrépito, motivou a ampliação do projeto inicial para, em dupla, compreender os modelos exitosos na Europa e na América, bem como os acertos e erros de todas as tentativas legislativas de transformação do futebol brasileiro, desde a Constituição de 1988. O resultado dessas preocupações, que são, acima de tudo, ideológicas, talvez possam, com o comando estatutário do SPFC, ser testadas. E, a partir dos resultados empíricos, confirmadas ou negadas as possibilidades de libertação de um sistema secular, quase escravocrata, que impede a evolução social e o desenvolvimento de uma atividade que deveria ser pauta de políticas de Estado. A sociedade - e, como parte dela, a imprensa, que, ao contrário das abelhas, não cumpre, a função de polinizar as ideias dos consumidores do futebol, mas, lamentavelmente, insiste num debate que raramente extrapola dúvidas sobre impedimentos ou cartões amarelos - ainda não percebeu a extensão e a relevância do movimento que pode, eventualmente, ser promovido pelo SPFC. Aliás, os são-paulinos também não. O futebol não é, apenas, neste país, uma forma de alienação ou manipulação das massas; ao contrário. Sua banalização ou futilização é produto do permanente movimento de contenção da cultura popular. Por isso, o insucesso do projeto de isolamento do futebol da dominação cartolarial pode sacramentar a vitória do que esta aí, do que sempre esteve aí e que batalha, cotidianamente, para preservar interesses divorciados das preocupações e das necessidades populares e da nação. Leco tem sido criticado, por parte dos associados, pela forma como vem implementando os comandos do estatuto. Não vou entrar, sobretudo nesse espaço, apesar da tentação, em temas internos do clube. Mas não posso deixar de chamar atenção para a coragem com que ele, até agora, vem manejando o tema da separação do futebol, um tabu que jamais foi enfrentado nesse país. Espero, com o sentimentalismo de um cidadão que deposita no futebol as esperanças de uma sociedade mais justa e democrática, que se ofereçam as condições para que o estudo seja levado realmente a sério. Acredito nisso e, por isso, aceitei a indicação. Assim como, em minha opinião, Manssur, pelo mesmo motivo também nele embarcou. Talvez se plante, enfim, a partir dessa iniciativa, presidida por Leco, a semente para que os times brasileiros passem a disputar a liderança dos rankings mundiais, ou não. E, neste caso, as consequências serão inevitáveis: a consolidação, desafortunadamente, como exportadores de commodities.
quarta-feira, 14 de junho de 2017

Juventus: ressurgimento por meio da governança

Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo No "vale das sombras" em que se encontra, atualmente, o futebol italiano, a Juventus Football Club ("Juventus") desponta como o único time que honra a tradição futebolística de seu país, em relação aos demais times europeus. Após o título da UEFA Champions League conquistado pela Internazionale em 2010, os maiores êxitos foram obtidos apenas e justamente pela Juventus, em 2015 e 2017, em ambas as ocasiões se sagrando vice-campeã europeia. Seu protagonismo regional, confirmado pelos títulos consecutivos de 2012 a 2017 do campeonato italiano, e sua posição de destaque nos cenários europeu e mundial, decorrem, em grande parte, de seu modelo de governação, instituído após a maior crise de sua história. Após o escândalo de manipulação de resultados (Calciopoli) em 2006, que lhe rendeu o descenso à 2ª divisão, a Juventus implementou um projeto com o propósito de reequilibrar as contas e aperfeiçoar o modelo gerencial. Os resultados começaram a aparecer a partir de 20101, quando Andrea Agnelli, atual presidente, assumiu a gestão e provocou significativas mudanças estruturais, a começar pela reorganização do corpo diretivo. A Juventus, atualmente, é organizada sob a forma de sociedade anônima e tem suas ações admitidas à negociação no mercado de capitais italiano, a Borsa Italiana. Representa, portanto, um dos raros casos de clube de futebol com capital aberto2. A Companhia Juventus é controlada pela família do Presidente, a Agnelli, por intermédio da EXOR N.V., companhia com base na Holanda que detém 63,8% do capital social. Do restante das ações, 10% pertencem à Lindsell Train Ltd. e 26,2% são negociadas livremente no mercado. O organograma da Juventus revela uma distribuição de poderes entre a Assembleia de Acionistas, o Board of Directors (um híbrido de conselho de administração e diretoria, do Direito Brasileiro) e um corpo de Auditores Estatutários. No plano administrativo, o Board situa-se no topo de uma pirâmide organizacional, composta por outros órgãos de controle, responsáveis por auxiliá-lo na administração da companhia. Além disso, sem integrar essa pirâmide, foi criado um órgão de supervisão e fiscalização (Supervisory Body) e instituído um sistema de controle externo, por meio de auditores independentes. A estrutura é ilustrada pelo seguinte quadro: O Board é composto por, no mínimo, 3 e, no máximo, 15 membros. A presidência, como já adiantado, foi atribuída a Andrea Agnelli, enquanto a vice-presidência ao ex-jogador Pavel Nedved. Além deles, integram o órgão 10 outros membros: 2 CEOs (Chief Executive Officers), sendo um responsável pela gestão da área de esportes (inclusive o futebol) e outro pelos assuntos financeiros; e 8 Non-Executive Directors (que podem ser equiparados à figura de conselheiro, no Direito Brasileiro), dentre os quais 5 são independentes. De acordo com o Estatuto, o Board é investido de todo e qualquer poder para a gestão ordinária e extraordinária da Companhia. Ele define, aliás, as diretrizes para o sistema interno de controle de riscos (Internal Control and Risk Management System - ICRMS) e determina o nível de risco compatível com os objetivos estratégicos da Juventus. Um dos membros do Board deve ser o responsável pela supervisão do funcionamento do ICRMS: hoje, tal função cabe ao CEO competente para cuidar das questões financeiras. Abaixo da administração, situam-se 2 comitês: o de controle e risco e o de remuneração e compromissos. O primeiro opina em temas relacionados à identificação de riscos e ao funcionamento do ICRMS, reportando-se ao Board; já o segundo faz recomendações aos CEOs acerca dos planos de remuneração, observando as metas de performance, bem como revisa, periodicamente, a adequação e a consistência da política remuneratória da companhia. Na sequência, encontram-se os auditores internos, responsáveis por avaliar a adequação e a eficiência do ICRMS e a confiabilidade dos sistemas, incluindo o contábil. Mais abaixo, e no mesmo plano, estão o (i) Financial Reporting Office, o (ii) Risk Manager e o (iii) Privacy Officer, que cuidam, respectivamente, da (i) implementação de procedimentos administrativos e contábeis, para a elaboração das demonstrações financeiras, (ii) implementação de sistema para a identificação, o monitoramento e a governança dos principais riscos, e (iii) proteção de dados pessoais. O Supervisory Body supervisiona todo o modelo de organização, gestão e controle, além de poder sugerir mudanças no arquétipo do Board of Directors. Quanto aos Auditores Estatutários, eles são responsáveis pelo compliance, pela verificação da observância aos princípios de administração da Juventus e, também, por monitorar a correta implementação das regras de governança corporativa. Trata-se, sem dúvida, de estrutura complexa e minuciosa, composta de vários órgãos de controle com funções bem definidas. A gestão da Juventus é calcada, formalmente, ademais, em certos princípios, que destacam a ética (existindo um Código de Ética), a transparência, a distribuição de responsabilidades e, com maior ênfase, o controle de riscos. Seus números, apesar de não serem desprezíveis, ainda não impressionam, mas, tendem a evoluir, sobretudo com a intensificação do processo de resgate de sua credibilidade: em 2016, a Juventus auferiu 341,1 milhões de Euros, figurando como o 10º time de maior receita no mundo3. Enfim, foi do céu ao inferno, e quase voltou ao céu, não fosse o semideus Cristiano Ronaldo e sua vocação pela conquista. Mas, o que importa, é que a Juventus está de volta ao jogo, mais forte e estruturada no plano organizacional, o que contribuirá para que retome o protagonismo no futebol mundial. __________ 1 Juventus. 2 A KPMG, em seu estudo anual "Football clubs and the Stock Exchange", faz um apurado dos clubes que se aventuram no mercado de capitais e avalia os seus desempenhos. A edição de 2016 está disponível no endereço . 3 Deloitte.
quarta-feira, 7 de junho de 2017

A governança do Real Madrid

O Real Madrid Club de Fútbol ("Real") foi fundado em março de 1902, com o propósito de dedicar suas atividades e patrimônio a atingir, de modo primário e principal, o fomento do futebol, em suas distintas categorias e idades e, de forma geral, à prática de todos os esportes determinados por seus órgãos administrativos. Também era - e é - seu objetivo, de modo complementar, o desenvolvimento da educação física, moral e intelectual de seus associados, contribuindo para as relações sociais e o espírito de união entre eles. Trata-se, portanto, de entidade que, em sua forma jurídica, se assemelha aos clubes sociais brasileiros, sem fins lucrativos. Sua estrutura administrativa também reflete o histórico modelo clubístico, compondo-se de assembleia geral, presidente e "junta directiva" (aqui denominada conselho administrativo). Assembleia Geral A assembleia é o órgão supremo, composta de todos os associados com direito de voto e (i) dos membros do conselho administrativo, (ii) do presidente, (iii) dos ex-presidentes que tenham exercido o cargo por ao menos 1 ano e mantenham a condição de associado, (iv) dos 5 associados mais antigos de qualquer categoria de sócio honorário e (v) dos 100 associados mais antigos. A participação em assembleia é limitada ao número máximo de 2.000 associados. A definição dos participantes se dá mediante eleição, a cada "millar de sócios (...), de entre ellos, treinta y tres representantes (...)". As matérias de sua competência são desmembradas em ordinárias e extraordinárias. Nas primeiras incluem-se a aprovação anual de relatório da administração, demonstrações financeiras e planejamento do exercício seguinte, elaborado pelo conselho administrativo. Dentre as matérias extraordinárias relacionam-se: reforma do estatuto, aprovação de empréstimo, aprovação de emissão de títulos representativos de dívidas e moção de censura ao presidente ou ao conselho administrativo. Conselho Administrativo O conselho administrativo é o órgão responsável pela administração, governança, gestão e representação do clube. Integram-no pelo menos 5 e, no máximo, 20 membros, dentre eles o presidente. Os próprios integrantes poderão indicar um ou mais vice-presidentes. A eleição do conselho administrativo (e do presidente) se realiza mediante sufrágio pessoal, direto e secreto, de que participam todos os associados com direito a voto. O órgão é competente para praticar todo e qualquer ato, inclusive a celebração de contratos, exceto aqueles que são expressamente atribuídos à assembleia geral ou vedados por lei. Presidente O presidente é o representante legal do Real. Compete-lhe, especificamente, ademais: (i) a presidência e a direção do conselho administrativo e das assembleias gerais; (ii) resolver, em caráter de urgência, os temas de competência do conselho administrativo, informando-o, posteriormente; (iii) zelar e exigir o cumprimento do estatuto; (iv) zelar pelo bom nome da entidade; e (v) qualquer outra matéria que não seja de competência específica de outro órgão. Com esse modelo de governança, altamente politizado, o Real atingiu e se mantém no topo do planeta. Alguns motivos justificam essa posição: um deles, o beneficiamento de um sistema de repartição de direitos de transmissão televisiva que induziu a formação de um certo duopólio, do qual participa o Barcelona. A desigualdade distributiva é responsável, assim, pela formação de um ambiente econômico altamente concentrado, que impede uma concorrência justa e igualitária. O segundo, que está, aliás, atrelado ao anterior, decorre do fato de que Real e Barcelona disputam muito mais do que partidas de futebol; no fundo, o que se joga é um modelo de Espanha, unificada por um governo central, ou desmembrada, com a independência de regiões como a Cataluña. Essa tensão histórica, que possivelmente jamais se arrefecerá, catalisa a concentração econômica do futebol espanhol. Em 2017, por exemplo, de acordo com os dados divulgados pelo estudo "Football Money League", da Deloitte, seu faturamento foi de 620,1 milhões de Euros, o terceiro maior entre todos os times do mundo, atrás apenas do Barcelona, com 620,2 milhões de Euros (este, também uma associação civil), e do Manchester United, uma companhia com ações listadas em bolsa, que faturou 689 milhões de Euros. A pergunta que se faz, diante da magnitude desse cenário, parece evidente: se o Real fosse administrado com uma lógica empresarial, distante da politicagem clubística, seus feitos, futebolísticos, econômicos e sociais, seriam maiores ou menores? Respondo, parte com a experiência de quem atua no mercado, parte com base em pequena experiência nas relações internas de clubes e, grande parte, confiando em anos de estudos acadêmicos: o Real, assim como outros times, inclusive os brasileiros, poderiam ser muito, realmente muito mais exitosos em seus projetos. E, assim, cumprir a verdadeira função do futebol, inclusive da empresa futebolística de natureza lucrativa: o desenvolvimento e a integração dos seres humanos.
O São Paulo Futebol Clube ("SPFC") implementou um novo modelo de governação, que vem sendo apresentado como o mais moderno do Brasil. Uma das principais novidades é o Conselho de Administração. Composto por apenas 9 membros, dos quais 3 independentes, esse órgão tem, na estrutura do clube, funções análogas às dos Conselhos de Administração de companhias abertas. Outro clube brasileiro também instituiu, antes do SPFC, um órgão com a mesma denominação: o Clube de Regatas Flamengo ("Flamengo"). Porém, a composição, as funções e as competências previstas em seu estatuto revelam que o seu Conselho de Administração, em sua essência, se aproxima muito mais dos tradicionais órgãos políticos deliberativos do que dos órgãos de orientação e fiscalização das companhias. Seus integrantes são divididos em um (i) Corpo Permanente, constituído por ex-presidentes dos Poderes Sociais e sócios Grande-Beneméritos, e um (ii) Corpo Transitório, formado por, no mínimo, 48 membros efetivos e 24 suplentes, eleitos entre os sócios das categorias Benemérito, Emérito, Laureado, Remido, Proprietário, Patrimonial e Contribuinte, sendo 50% de Proprietários e a outra metade das demais categorias. O presidente e o vice-presidente do Conselho de Administração são eleitos pelo próprio Conselho. Ou seja, trata-se, primeiro, de órgão formado por número expressivo de associados e, segundo, sem a participação de membros externos e independentes. Dentre as várias atribuições, listam-se, principalmente: i) a votação anual da proposta orçamentária para o exercício seguinte, apresentada pelo Conselho Diretor, subsidiado pelos pareceres técnicos do Conselho Fiscal e da sua Comissão Permanente de Finanças; ii) aprovar a celebração de acordos, contratos, empréstimos e antecipação de receita nos casos em que estiver suspensa a autonomia do Conselho Diretor, como, por exemplo, nas hipóteses de falta de entrega, no prazo, da proposta orçamentária, de atraso na entrega dos balancetes mensais para apreciação do Conselho Fiscal, de inferioridade do superávit ou superioridade do déficit em 3% do faturamento previsto no orçamento aprovado, bem como de violação do limite de despesa total mensal com pessoal; iii) apreciar, anualmente, o Relatório do Presidente do Flamengo; iv) processar e julgar os seus próprios membros, os sócios Grande-Benemérito, Benemérito, Emérito, os membros das Mesas dos Poderes (exceto os do Conselho Fiscal), o Vice-Presidente do Flamengo, bem como revisar as decisões proferidas pelo Conselho de Administração; v) aprovar as alterações de estrutura dos departamentos; vi) votar a proposta de suplementação de verba e de aplicação de recursos disponíveis, em caso de insuficiência de dotação orçamentária; vii) decidir sobre responsabilidades financeiras, que gravem ou onerem o patrimônio do Flamengo; viii) autorizar a realização de obras de construção, reforma ou ampliação de imóveis, assim como assinatura de contratos, exceto os de prestação de serviços de futebol, desde que o valor exceda a duas mil e setecentas vezes e não ultrapasse a quatro mil e quinhentas vezes o valor do Salário Mínimo Nacional; ix) autorizar o Presidente do Flamengo a contrair mútuos e a fazer outras operações de crédito, que independam de garantia real imobiliária, acompanhado o pedido do parecer do Conselho Fiscal e ouvida a sua Comissão Permanente de Finanças; e x) autorizar, em caráter de exceção, a prática dos seguintes atos relacionados à gestão do orçamento, que são vedados ao Conselho Diretor: 1. contratação de crédito com membros dos órgãos sociais do Clube, associados, funcionários, sociedades empresárias das quais estes sejam sócios majoritários ou nelas exerçam cargo de gerência, além de fornecedores e prestadores de serviço; 2. a continuidade de despesa criada ou expandida que não for compensada nos exercícios seguintes; 3. atos que resultem em aumento de despesa com pessoal nos 180 dias anteriores ao final do mandato dos membros do Conselho Diretor, exceto demissões por justa causa; 4. a assunção de obrigações pecuniárias, por parte dos administradores do Flamengo, nos 180 dias anteriores à eleição dos membros do Conselho Diretor, que não possam ser cumpridas integralmente dentro do exercício, ou que tenham parcelas a serem pagas no seguinte, sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para esse fim; 5. a assunção de obrigações pecuniárias, pelos administradores do Flamengo, superiores a 10% do valor estabelecido no orçamento de caixa; 6. a contratação de operação de crédito por antecipação de receita, enquanto existir operação anterior da mesma natureza não integralmente resgatada, ou no último ano de mandado eletivo dos membros do Conselho Diretor; e 7. a Concessão, pelo Flamengo, de garantia em operação de crédito, sem o oferecimento de contragarantia pelo cocontratante, em valor igual ou superior ao da garantia a ser concedida. Todas as deliberações do Conselho de Administração são tomadas em reuniões, convocadas pelo Presidente ou substituto, por maioria simples dos votos dos presentes, instalando-se a reunião com a presença de, no mínimo, 40 Conselheiros, em primeira convocação, e, pelo menos, 25 Conselheiros, em segunda convocação. Por sua vez, o regimento interno dos Poderes do Flamengo, além de repetir algumas disposições do estatuto social, define regras mais procedimentais, a exemplo de (i) competências e atribuições do Presidente, Vice-Presidente, Secretários, (ii) funcionamento das reuniões, (iii) forma de deliberação, (iv) questões que precisam ser observadas sobre a reforma do próprio Regimento Interno, bem como (v) a regulação dos processos disciplinares, recursos, revisões, e dos procedimentos eleitorais. Merece destaque, ademais, a previsão de criação das Comissões Permanentes e Provisórias para o assessoramento do Conselho de Administração, sendo permanentes as responsáveis por opinar nas seguintes matérias: Finanças, Assuntos Jurídicos, Eleitoral e Esportes. Como visto, o Conselho de Administração do Flamengo - pelo menos no que se depreende da leitura do seu estatuto - tem, sim, relevância para a evolução da governança do Clube. Mas, o seu formato e a sua composição ainda revelam o apego à estrutura clássica de associações sem fins lucrativos, que se constrói, especialmente, pela política associativa. Aliás, a melhor forma de constar a sua eficácia seria por meio da verificação dos debates e das eventuais dissidências contidas em atas de reuniões do órgão. Em sentido inverso, a inexistência de divergências indicará, intuitivamente, que a sua função se resume a um formalismo validador das decisões diretoriais. Resumindo: apesar da coincidência de nomes, os Conselhos de Administração do SPFC e do Flamengo são, na essência, muito diferentes, e não se prestam ao mesmo fim. Enquanto o do primeiro se aproxima dos modelos das companhias, o do segundo, apesar de revelar um avanço em relação às estruturas tradicionais, estimula a politização.
quarta-feira, 24 de maio de 2017

Banco CBF

O objeto da CBF (ou os fins básicos, como previstos no estatuto) é tão amplo que o resumo dos 29 incisos que o compõem tomaria todo o espaço desta coluna. Esses incisos, em sua grande maioria, apresentam descrições abertas, que comportam uma série de atuações em favor e no interesse do futebol, da manutenção da ordem esportiva, de representação nacional e internacional, de combate de substâncias ilícitas, e de promoção da defesa dos interesses e direitos coletivos de seus filiados e das entidades de prática do futebol. Entre seus fins não se inclui a realização de empréstimos. Empréstimos, como regra, são realizados por instituições financeiras. A atuação dessas entidades é regulada pela lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e demais normas aplicáveis. Consideram-se instituições financeiras, de acordo com o art. 17, "as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros". O funcionamento de instituição financeira depende de prévia autorização do Banco Central, quando nacionais, ou de decreto do Poder Executivo, se estrangeiras. A CBF não é, definitivamente, uma instituição financeira; mas tem o hábito de realizar empréstimos aos filiados. As demonstrações financeiras relativas aos exercícios de 2015 e 2016, dela e de determinados clubes, revelam a existência desses negócios. Veja-se, inicialmente, a Nota Explicativa 4, da Administração da CBF: na rubrica "contas a receber", listam-se créditos contra filiados especiais, presumidamente clubes de futebol, no montante de R$ 44.020.000,00. Este valor sofreu uma redução substancial em relação ao exercício de 2015, em que se indicavam contas a receber, também de filiados especiais, de R$ 64.059.000,00. Veja-se, agora, a situação de alguns times, todos do Rio de Janeiro. Flamengo Ao término do exercício de 2015, o clube mantinha um empréstimo com a CBF no montante de R$ 4.323.000,00, contratado mediante o pagamento de uma taxa de juros expressiva, equivalente a 165% do CDI. A conta, em 2016, aparece zerada, de modo que se presume a liquidação da dívida com o credor. Aquele montante não era relevante, é verdade, no âmbito do estoque de empréstimos e financiamentos, que totalizava, em 2015, R$ 161.975.000,00. Como referência, este valor, em 2016, caiu para R$ 111.581.000,00. Vasco Ao cabo do exercício de 2015, a dívida com a CBF era de R$ 16.292.000,00, de um montante de R$ 69.661.058,00, relativo à soma de empréstimos de terceiros. Ao término de 2016, passou a R$ 13.964.000,00, de um montante de R$ 74.303.976,00. Botafogo No exercício de 2015, os empréstimos e financiamentos, obtidos pelo Botafogo, somavam R$ 116.101.000,00, dos quais R$ 11.107.000,00 foram captados junto à CBF. Em 2016, os recursos advindos dessa entidade totalizaram R$ 9.387.000,00, enquanto a dívida total de empréstimos e financiamentos foi reduzida para R$ 114.868.000,00. Fluminense Em 2015, seus empréstimos e financiamentos montavam a R$ 38.379.000,00, sendo que R$ 10.565.000,00 provinham da CBF; ou seja, quase 30% do total dos recursos advindos de terceiros. Como as demonstrações financeiras do clube, relativas ao exercício de 2016, ainda não foram divulgadas oficialmente, pois a votação das contas ocorrerá 25/05/20171, não se pode comentá-las. Resumindo, valores expressivos ou não, pouco importa, não é função da CBF prover recursos para os seus filiados. Esta prática revela, no entanto, um problema estrutural do futebol brasileiro: a ausência de um ambiente organizado, devidamente regulado, para captação de recursos para financiamento da empresa futebolística. Assim, as captações são limitadas, e, quando disponíveis, envolvem agentes que cobram taxas de juros muito elevadas. Enquanto não houver crédito para o futebol, não haverá crescimento; ao menos dos clubes. Pois, neste país que fica cada vez mais difícil de explicar, a CBF não para de crescer. __________ 1 Balanço de 2016 revela aumento de 48% com gastos no futebol e detalha crise financeira do Flu.
quarta-feira, 17 de maio de 2017

De Santos para o mundo

O Santos Futebol Clube ("Santos") já deu ao mundo Pelé, Robinho e Neymar, e muitos outros jogadores que maravilharam - e maravilham - multidões. Foi com Pelé e companhia, no entanto, que a mitologia se criou. E ainda resiste às décadas de aposentadoria do maior atleta da história. Jogadores que o sucederam contribuíram para manter a chama acesa, mas não foram - e não são - capazes de perpetuar esse estado de encantamento. O Santos deve reagir e se posicionar. Mostrar sua grandeza. No plano nacional, ele leva vantagens realmente importantes em relação aos demais times grandes: baixa rejeição e simpatia, quando em confronto com rivais de outras torcidas. Ou seja, se corretamente dirigido, poderia se tornar um time de expressão nacional e internacional, membro, talvez, do seleto grupo dos 10 maiores do planeta, inclusive em receitas. Para isso, haveria de imprimir um movimento transformacional e admitir, como muitos times europeus o fizeram, que sua vocação não é apenas local e regional, mas, sim, global. A bela cidade de Santos não o deve limitar, portanto; ao contrário, que sirva como o "porto" de lançamento para uma aventura, planejada, de dominação pelo futebol, pela arte do futebol. Não haveria nada de errado nisso. Assim como não houve com Manchester United, Barcelona, Bayern, PSG, Manchester City e outros que resolveram, em momentos distintos de suas histórias, expandir suas fronteiras. Conseguiram. A conquista, aliás, atinge meninos e meninas santistas, e torcedores de outros times, que, lamentavelmente, preferem acompanhar e torcer por times europeus, pelos conquistadores contemporâneos, em detrimento dos brasileiros. Revendo o estatuto do Santos, percebe-se que, em algum momento, tentou-se, timidamente, ou ao menos de modo formal, dar-se o primeiro passo. O artigo 5o, parágrafo terceiro estabelece que: "É facultado ao Santos, mediante prévia aprovação do Conselho Deliberativo, constituir sociedade, de qualquer tipo, ou deter participação societária em sociedade que tenha como objeto a prática esportiva profissional, e que seja classificada como entidade de prática desportiva participante de competições profissionais, nos termos definidos na lei 9.615/98 e suas alterações, inclusive a lei 10.672/2003, e transferir a ela os bens móveis e direitos relativos à modalidade profissional presente no objeto social da mencionada sociedade, que sejam necessários para o seu desenvolvimento, observando-se a legislação aplicável". O parágrafo quarto fixa as regras que devem ser observadas se o movimento se produzir: "Caso ocorra a transferência de bens e/ou direitos do clube à sociedade mencionada no parágrafo anterior, o Santos deverá deter, no mínimo, 75% das ações ou quotas em que se divide o capital social votante e total da sociedade, e sua participação societária não poderá ser onerada ou transferida, a qualquer título, e para qualquer fim, sem a aprovação do Conselho Deliberativo (...)". Também se impôs um modelo administrativo colegiado, por meio de um comitê de gestão, formado por nove membros. Mas, não se deu o passo rumo à contemporaneidade e se manteve atrelado ao sistema interno da tradicional política, que atrasa o futebol brasileiro. Assim, todos os membros (exceto o presidente e o vice, que são eleitos pela Assembleia) são indicados pelo presidente do Comitê de Gestão dentre os membros eleitos, efetivos e natos do Conselho Deliberativo. Não existe, portanto, uma estrutura de controle e fiscalização dos atos executivos, por órgão superior autônomo, a exemplo do conselho de administração de companhias. Aliás, o Conselho Fiscal, que é, de acordo com o estatuto santista o órgão independente de fiscalização da administração, é composto de cinco membros do Conselho Deliberativo, eleitos pelo próprio Conselho Deliberativo. Este Conselho fornece, assim, os membros do Comitê Gestor e os membros do Conselho Fiscal, que fiscalizam seus pares e colegas. Falta, como se nota, independência, e estimula a ocorrência de situações de conflito de interesses, especialmente no âmbito político. Complementa esse modelo a administração executiva, conduzida por profissionais remunerados, com qualificação comprovada, subordinada às decisões e determinações do Comitê de Gestão. Seus membros são, de fato, conforme se depreende do estatuto, executores, e não administradores, como se esperaria em uma empresa econômica. Resumindo, o potencial planetário do Santos não é aproveitado. Muito pelo contrário: parece que se empreende muito esforço para confiná-lo na bela cidade praiana. Um verdadeiro pecado. Para concluir, a estrutura do Santos, que não mantém equipamento clubístico social, facilita uma série de movimentos transformadores, como, no limite, a passagem do associativismo à forma da sociedade anônima, com a atribuição, a cada associado, de uma ação de nova companhia. Apenas o mundo, e os seus administradores, limitam o Santos.
quarta-feira, 10 de maio de 2017

Enfim, o estatuto do São Paulo será testado

Iniciou-se uma nova era no São Paulo Futebol Clube (SPFC), que o aproxima, no plano administrativo, das sociedades empresárias. A principal novidade - não a única, aliás - envolve a administração: abandona-se o modelo presidencialista e se inaugura uma estrutura dualista, composta de diretoria e conselho de administração. A administração, portanto, competirá a ambos os órgãos. Explica-se, a seguir, o funcionamento do conselho de administração. Trata-se se de órgão de deliberação colegiada, composto por 9 membros. O diretor presidente e o diretor vice-presidente terão, necessariamente, assentos, e exercerão as funções de presidente e vice-presidente do conselho, respectivamente. Os demais são indicados pelo conselho deliberativo (3), pelo conselho consultivo (1) e pelo diretor presidente (3). As três indicações do diretor presidente devem recair sobre membros independentes. O atual diretor presidente, Leco, eleito pelo conselho deliberativo em abril, indicou Saulo de Castro Abreu Filho, Júlio Conejero e Raí. Todos se enquadram, portanto, na definição de independentes. Saulo ocupou importantes cargos na administração pública. Júlio é um bem sucedido executivo de empresas. Raí, o maior jogador da história do SPFC, vem se preparando, de verdade, não apenas para essa função, mas para desafios maiores na gestão do futebol. Os conselheiros independentes poderão ser remunerados; os demais, não. A remuneração observará parâmetros de mercado, não podendo superar, no mês, 70% do teto do funcionalismo público federal. Qualquer conselheiro, exceto o presidente e o vice, poderá ser destituído pelo voto favorável de pelo menos 6 membros do próprio conselho. O órgão deverá se reunir ordinariamente uma vez por mês e, de modo extraordinário, sempre que convocado por seu presidente ou por pelo menos 5 conselheiros. Compete ao conselho de administração, conforme se extrai do estatuto: a) Fiscalizar a gestão da Diretoria Eleita, da Diretoria Social e da Diretoria Executiva; b) Aprovar a remuneração, se e quando o caso, de membros do Conselho Fiscal, do Conselho de Administração, do Presidente Eleito e/ou da Diretoria Executiva; c) Examinar, mediante solicitação, livros, papeis, contratos e documentos do SPFC, bem como solicitar informações a respeito de contratos em negociação; d) Manifestar-se, emitindo parecer fundamentado, previamente à submissão ao Conselho Deliberativo, sobre as contas e as demonstrações financeiras anuais do SPFC; e) Escolher e destituir os Auditores Independentes; f) Autorizar a prática de atos gratuitos, independentemente da motivação, inclusive a cessão do estádio ou outras dependências sociais, esportivas ou propriedades do SPFC; g) Aprovar a concessão de quaisquer garantias, de qualquer natureza, de qualquer valor, exceto de natureza judicial, cuja competência será exclusiva da Diretoria Eleita; h) Aprovar a proposta orçamentária anual elaborada pela Diretoria Eleita, e submetê-la para aprovação final do Conselho Deliberativo; i) Opinar, previamente à deliberação pelo Conselho Deliberativo, sobre propostas de separação societária do futebol profissional, bem como sobre a constituição de sociedade empresária, para qualquer finalidade; j) Aprovar a celebração de qualquer contrato, provisório ou definitivo, de montante total superior a 1.500 (mil e quinhentas) Contribuições Associativas, exceto relacionado às contratações de atletas e comissão técnica, observado o disposto nos parágrafos 1o e 2o deste artigo 106; k) Aprovar a celebração de qualquer contrato, provisório ou definitivo, cujo prazo seja superior ao prazo remanescente do mandato da Diretoria Eleita, exceto relacionado às contratações de atletas e comissão técnica, observado o disposto nos parágrafos 1o e 2o deste artigo 106; l) Aprovar a celebração de qualquer contrato, de qualquer natureza, de qualquer valor, que implique o pagamento de comissão, gratificação ou qualquer remuneração, a qualquer intermediário, exceto nos casos expressamente previstos nos parágrafos 1o e 2o deste artigo 106; m) Aprovar a celebração de qualquer contrato, de qualquer natureza, de qualquer valor, a ser celebrado com qualquer pessoa que integre o Conselho Deliberativo, o Conselho Consultivo, o Conselho Fiscal, o Conselho de Administração, a Diretoria Eleita, a Diretoria Social ou a Diretoria Executiva, ou que seja um Associado do SPFC; n) Aprovar a celebração de qualquer contrato, de qualquer natureza, de qualquer valor, a ser celebrado com qualquer pessoa que seja cônjuge ou companheira, ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 4o grau, das pessoas mencionadas no inciso anterior; o) Aprovar a celebração de qualquer contrato com sociedade empresária na qual as pessoas indicadas nas alíneas (m) e/ou (n) sejam controladoras; p) Aprovar a proposta de contratação, pela Diretoria Eleita, de qualquer espécie de apólice de seguro ou de garantia, incluindo seguro para exercício dos cargos de Diretoria Eleita ou Executiva, Conselho de Administração e Conselho Fiscal; q) Criar comitês executivos do Conselho de Administração, compostos de até 3 (três) membros, para acompanhar o cumprimento pela Diretoria Eleita de suas atribuições; e r) Aprovar a indicação, pelo Presidente Eleito, dos membros da Diretoria Executiva e suas respectivas atribuições e remunerações, fixas e/ou variáveis. Além de muitas, são matérias realmente relevantes. Antes, é bom recordar, essas matérias se decidiam, historicamente, de acordo com a vontade de uma pessoa; a partir da nova estrutura, passam a depender de dois órgãos: um, ainda individualista - a presidência da diretoria -, outro, colegiado e heterogêneo - o conselho de administração. Inicia-se, pois, assim se espera, uma fase mais democrática, sujeita a negociações saudáveis, ao convencimento pelas ideias, ao implemento de técnicas de planejamento, definição de metas e verificação de resultados, e a um moderno sistema interno de controle e fiscalização dos atos da diretoria. Como se fosse uma companhia. O estatuto do SPFC começa a ser, enfim, testado.
quarta-feira, 3 de maio de 2017

Está tudo errado. Exceto Tite

Paulo Francis escreveu que "um dos serviços mais importantes e em muitos casos semi-involuntário (...) que a imprensa presta aos poderes é dignificá-lo (...) porque o simples fato de relatar o que dizem e fazem os políticos (...) dignifica em parágrafos e imagens o que é em geral sandice absoluta". "O jornalista organiza a besteira do político". O autor disse, ainda, que o ataque confere ao atacado personalidade que não tem. E reconheceu, com imodéstia, que sua pena ajudara muita gente a sair da obscuridade. Não sou jornalista e o que escrevo não muda a vida de ninguém. O que me conforta, ao menos em relação ao tema tratado esta semana, é que, quem quer que discorra sobre ele, também não será ouvido por ninguém - mesmo que, formalmente, seja lido. É impossível falar sobre futebol sem, ao menos esporadicamente, abordar a sua organização política. E quando se fala de política do futebol, o grande - e talvez único - agente, responsável por tudo o que está aí, é a CBF. Essa é a deixa para tratar de um importante documento, publicado recentemente: suas demonstrações financeiras. A leitura do relatório da administração, capítulo introdutório do documento, parece querer resgatar aquela afirmação de que a CBF é o Brasil que dá certo. Diz-se, nele, que: "o resultado demonstra de forma clara o esforço continuado da administração da CBF em manter e ampliar os investimentos no futebol brasileiro, mesmo com a crise financeira do Brasil em 2016. A CBF aposta no futebol como um catalisador de investimentos com impactos financeiros e sociais para o país". Como já se podia supor, o efeito Tite é, de modo oblíquo, envolvido no discurso, mesmo que, em sua apresentação, parte dos resultados não tenha se realizado em 2016 - período a que se referem as demonstrações: "o ano de 2016 foi marcante para a história da seleção brasileira. Pela primeira vez, conseguimos a tão almejada medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Esta conquista é fruto de investimento massivo nas seleções de base, nas novas tecnologias e na preparação para a competição". E aí vem a apropriação de conquista futura, contabilizada nas demonstrações de ano anterior: "a seleção brasileira foi a primeira a se classificar para a Copa do Mundo da FIFA de 2018. A seleção pentacampeã conseguiu a vaga na 14a rodada, sua classificação, com maior antecedência desde a mudança no formato das eliminatórias sul-americanas". A peça também enfatiza os avanços no plano da governação: "nosso compromisso é estabelecer processos e modelos de governança com aderência às melhores práticas do mercado, sendo reconhecidos como uma entidade que adota os procedimentos mais modernos do mundo corporativo e esportivo". E finaliza: "a administração da CBF reitera seu desejo de encarar os desafios de 2017 com serenidade, mantendo e ampliando o debate participativo e democrático e trabalhando cada vez mais para que o Brasil consolide sua posição de destaque no futebol mundial". Relata-se um mundo encantado do futebol brasileiro. Nada mais inverídico, porém. Até a chegada de Tite, a situação da CBF, sob qualquer ângulo, era tenebrosa. Além disso, com poucas exceções, os times brasileiros, de todas as séries, estão atolados em dívidas, não encontram meios de se financiar e se curvam diante de concorrentes organizados e capitalizados, que protagonizam o esporte mundial. Os futebolistas e demais trabalhadores desse esporte enfrentam desemprego, dificuldades para receber seus salários ou se sujeitam a condições muito distantes daquelas oferecidas às poucas estrelas que se destacam em times de elite da série A ou que são exportados para clubes europeus ou chineses. A verdade é que, por um momento, os times brasileiros tiveram uma grande oportunidade, após o fracasso da Copa de 2014 e a multiplicação dos escândalos envolvendo os dirigentes da entidade, de impor - ou exigir - um novo modelo para o futebol brasileiro. Nunca, realmente nunca, na história recente do futebol, as oportunidades de transformação foram tão evidentes. Faltou, talvez, união. Ação coletiva. Abandono de condutas individualistas, em favor de um projeto maior: um projeto de contornos econômicos e sociais magníficos. Ninguém será realmente grande se a grandeza for isolada, não compartilhada e rivalizada. Atualmente, o discurso pseudo-ufanista, quase sem vergonha de acontecimentos que, se o futebol fosse um tema de Estado (ou ao menos de governo), teriam justificado intervenções ou manifestações públicas contundentes, sombreia condutas alcunhadas, pela imprensa, de maquiavélicas (cf. o jornal Lance!, edição eletrônica de 23/3/17). Esconde-se, atrás de suposta habilidade política e criatividade jurídica, o desrespeito ao Estado Democrático de Direito. A zombaria, no caso, atingiu o ápice com a atribuição de voto múltiplo às federações estaduais, para que prevalecessem sobre a somatória dos times de primeira e segunda séries, incluídos no colégio eleitoral por determinação de lei Federal que criou o Profut. Nada mais distante, deve-se registrar, do anunciado processo e modelo de governança com aderência às melhores práticas do mercado. Se esse é o procedimento mais moderno do mundo corporativo e esportivo, como se gaba o relatório da administração, criou-se um mundo próprio, hermético, para justificar todas e quaisquer condutas. Espanta, nesse processo, o silêncio dos clubes, que poderiam, enfim, dominar a entidade e orientá-la em benefício deles próprios, dos jogadores e demais agentes direta ou indiretamente dependentes do futebol. A brutalidade parece que foi aceita pela sociedade. Aliás, nem mesmo é digna de reflexão e contrariedade. No plano da política futebolística, infelizmente, ainda se reflete, com força histórica, o verdadeiro Brasil.
quarta-feira, 26 de abril de 2017

O modelo de governação do Borussia Dortmund

1. Introdução O Borussia Dortmund é um dos times de futebol mais tradicionais da Alemanha. Fundado em 19 de dezembro de 1909, o auri-negro - como é conhecido - soma diversos títulos, dentre os quais 1 troféu da liga dos campeões da UEFA e 8 da Bundesliga, a primeira divisão do campeonato alemão. Apesar da tradição, já passou por momentos de crise intensa. Durante as décadas de 70 e 80, experimentou temporadas na 2ª divisão alemã e jejum de títulos. Na segunda metade da década de 90, porém, resgatou o caminho vencedor. O processo de resgate envolveu a (re)estruturação societária e a implementação de novo modelo de governação, culminando na abertura de capital, no final do ano 2000. 2. Estrutura O Borussia Dortmund foi concebido como uma associação civil, denominada Ballspielverein Borussia 09 e.V. Dortmund. Em deliberações tomadas em 28 de Novembro de 1999 e 26 de fevereiro de 2009, os membros da associação decidiram cindir as operações econômicas do futebol profissional e incorporá-las a uma nova companhia, fundada especificamente para este fim: a Borussia Dortmund GmbH & Co. KGaA. Trata-se de um tipo de sociedade tipicamente alemão, que pode ser entendido como uma sociedade em comandita por ações (KGaA), gerida por um general partner ("sócio geral") que se organiza sob a forma de sociedade limitada (GmbH). No caso do Borussia, o general partner é a Borussia Dortmund Geschäftsführungs-GmbH ("Borussia GmbH"), sociedade limitada cuja única sócia é a BV. Borussia 09 e.V. Dortmund ("Borussia e.V."), associação civil, formada pelos torcedores auri-negros. Ou seja, o controle dos negócios relacionados ao futebol profissional do Borussia está vinculado - ainda que indiretamente - aos torcedores associados. 3. Abertura de Capital A abertura de capital da Borussia Dortmund GmbH & Co. KGaA (ou "companhia") ocorreu em 30 de outubro de 2000. As ações da companhia foram listadas e negociadas na Bolsa de Valores de Frankfurt. O preço inicial de lançamento foi de 11,00 EUR por ação. O capital atual é de 92.000.000,00 EUR, dividido em 92.000.000 de ações sem valor nominal. A maior parte das ações é negociada livremente no mercado ("free float"); por outro lado, menos de 40% das ações se distribuem entre a Borussia e.V. e alguns investidores, como se pode ver no quadro abaixo:  Sócios  % Ações livres para negociação em bolsa ("free float") 60,36% Evonik Industries AG 14,78% Bernd Geseke 8,90% BVB 09 e.V. Dortmund (Associação) 5,53% Signal Iduna  5,43% Puma SE  5,00% Total 100,00% 4. Objeto O objeto social da companhia é continuar e desenvolver as operações comerciais da BV. Borussia 09 e.V. Dortmund (associação desportiva que deu origem ao Borussia Dortmund), sujeitas a tributação, e, em particular, aquelas relacionadas ao futebol, inclusive o futebol profissional, sob a bandeira do Borussia Dortmund ou suas iniciais (BVB), bem como explorar ou utilizar todos os direitos atuais e futuros. A Companhia deverá deter todas as licenças que permitem aos times, em especial os de futebol, a participação em competições nacionais ou internacionais, inclusive as organizadas pela Federação Alemã de Futebol. Ademais, incumbe também à Companhia a aquisição e a administração de seus próprios ativos, em particular estabelecendo e investindo em outras empresas, nacional ou internacionalmente. É vedada, no entanto, a aquisição de participação em outras sociedades licenciadas junto à liga alemã de futebol. 5. Governação A Borussia Dortmund Geschäftsführungs-GmbH é a general partner da Companhia. Ela exerce a função de representante e administradora. O poder de gestão é controlado pelo Conselho, que deve avaliar e consentir a prática de determinados atos, como: (a) compra ou venda de imóveis e direitos equivalentes, caso a o valor individual da transação exceda 40.000.000,00 EUR (quarenta milhões de euros); (b) constituição de empresa ou aquisição de participação societária, caso o valor exceda 40.000.000,00 EUR; e (c) venda parcial de negócios ou de participações em outras empresas. 6. Remuneração O general partner tem direito ao recebimento do reembolso dos seus custos com pessoal e materiais, incorridos na gestão da Companhia, e uma remuneração equivalente a 3% do lucro líquido do exercício. No reembolso estão incluídas as despesas com a remuneração dos membros do Conselho Consultivo ("Advisory Board") indicados pelo general partner, limitadas ao total de 126 mil euros por exercício. 7. Conselho Fiscal O Conselho Fiscal é composto por 9 membros, com mandatos de 4 anos. Exceto nos casos em que a legislação ou o próprio Estatuto determine de forma diversa, as deliberações do Conselho serão tomadas pela maioria dos votos presentes, correspondendo cada membro a um voto. Compete ao Conselho Fiscal, por exemplo, a revisão das demonstrações financeiras e do relatório da administração anuais e a emissão de um relatório com suas conclusões. 8. Remuneração Além do reembolso das despesas suportadas no desempenho das suas funções, cada membro recebe uma remuneração fixa anual no valor de 12.000,00 EUR, paga ao final do exercício social. O Presidente do órgão recebe o dobro e o Vice-Presidente o equivalente a uma vez e meia.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e José Francisco C. Manssur A regra conhecida como 50+1, prevista no estatuto da Bundesliga (a liga de futebol alemã) determina, em seu §16c, que a associação formadora de sociedade empresária que opera ativos do futebol deve manter o controle majoritário - ou seja, 50%, mais uma ação - da referida sociedade. Essa regra, porém, não foi aproveitada pelo PL 5.082/16, que introduz, no Brasil, a Sociedade Anônima do Futebol ("SAF" e "Modelo Brasileiro"). Não que a motivação da mencionada regra fosse reprovável. Ao contrário, pois se atribui à associação a função de zelar pelas tradições clubísticas e pelas relações com torcedores. O Modelo Brasileiro, todavia, reflete a realidade e as características locais. Por isso, não se operou uma cópia de um ou outro sistema, como o alemão ou modelos ibéricos, costumeiramente citados como referências positivas. Todos têm suas qualidades; mas, o que é muito relevante: foram construídos para pacificar situações e condutas detectadas nos respectivos países e que envolviam os agentes locais. A reprodução, portanto, de um ou de outro, ou a produção de uma colcha de retalhos, não resultaria num marco adequado para organização do futebol brasileiro. Daí a opção pela liberdade organizacional. Assim, qualquer associação que opera um time de futebol poderá, a partir do momento em que o PL 5.082/16 for convertido em lei, constituir uma SAF pela: a) transformação (de associação em SAF); b) transferência de direitos e ativos relacionados à prática do futebol para formação do capital da SAF; c) iniciativa de uma pessoa, física ou jurídica, que assuma direitos, de qualquer natureza, de associação existente, ou a fim de iniciar atividades relacionadas ao futebol; ou d) transformação de sociedade empresária que tenha por objeto a prática do futebol e que participe de competições desportivas profissionais, organizadas por federação, liga ou confederação. A decisão de (i) manter-se sob a forma associativa ou (ii) adotar uma das vias empresariais será tomada, soberanamente, pelos associados, os quais decidirão a estrutura societária mais adequada, também de modo soberano. Muitas serão as possibilidades estruturais, como as que, apenas como exemplos, se citam: (i) constituição, pelo clube, de uma SAF, que será integralmente controlada por ele; (ii) ingresso, na SAF, de investidor estratégico, com participação minoritária; (iii) ingresso, na SAF, de investidor estratégico, com participação majoritária, atribuindo-se, no entanto, poder de veto à associação em relação a determinadas matérias; (iv) constituição de SAF e abertura de seu capital; (v) constituição de SAF e alienação de todas as ações; e (vi) constituição de SAF e adoção de instrumentos de mercado para captação de recursos por meio de debêntures, sob controle do clube. A liberdade de decisão deve ser preservada. Não cabe ao Estado interferir ou limitar o processo reorganizacional, sob qualquer pretexto, inclusive de preservar a tradição do time. O ato de preservação se imputará aos associados. Eles, e somente eles, devem decidir a estrutura apropriada para detenção dos ativos e prática profissional do futebol. Essa proposição é reforçada pela falta de uniformidade estrutural dos clubes brasileiros. De acordo com números da CBF1, consolidados em 2016, havia 766 clubes profissionais e 313 amadores registrados na entidade, totalizando 1.079. Do total - e especialmente dos profissionais - 234 integraram o ranking nacional. O Estado de São Paulo apareceu no topo, com 28 times, seguido dos Estados do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, com 15 cada. Na última colocação apareceram 4 Estados (Acre, Amazonas, Amapá e Roraima), com 4 ranqueados cada. A tabela 1 aponta a participação, por Estado. A tabela 2, o percentual representativo de cada Estado. A diversidade e, mais importante, a enorme quantidade de entidades futebolísticas repelem uma solução única. O que é bom para Flamengo, Atlético Mineiro ou Corinthians pode não ser adequado para São Paulo, Grêmio ou Sport. Menos ainda para Ituano, Chapecoense ou Bahia. O controle de adequação deve ser feito, portanto, por quem tem legitimidade e interesse: os associados. É por aí que se escrutinará eventual proposta formulada pela administração. Em relação a esse tema, é importante que a lei regule e fixe um quórum mínimo de deliberação pelos associados, que se aplicará, porém, apenas nas hipóteses de inexistência de determinação estatutária. É o que propõe o art. 55 do PL 5.082/16: "Art. 55. A Lei 9.615, de 24 de março de 1976, passa a vigorar com a seguinte alteração: "Art. 27. ............................................................................................ .......................................................................................................... § 2º. A entidade a que se refere este artigo poderá utilizar seus bens patrimoniais, desportivos ou sociais, inclusive imobiliários ou de propriedade intelectual, para integralizar sua parcela no capital de sociedade ou oferece-los em garantia, na forma de seu estatuto. No caso de o estatuto não dispor sobre essas matérias, a integralização ou o oferecimento em garantia deverá ser aprovado pelos associados que representem a maioria dos presentes à assembleia geral, especialmente convocada para deliberar o tema. ....................................................................................................... ." Esses são, enfim, alguns dos motivos para que o Modelo Brasileiro siga o seu curso, olhando, claro, ao que se pratica em outros países, mas sem se curvar ou incorporar institutos ou conceitos que não se integram à sua realidade. __________ 1 Ranking nacional dos clubes.
quarta-feira, 12 de abril de 2017

A governação do futebol na Alemanha

A Alemanha apostou num modelo de governação do futebol diferente, por exemplo, do inglês, sem ignorar, contudo, a necessidade de imposição de uma nova ordem. Enquanto os clubes da ilha se sujeitam a um modelo de irrestrita liberdade organizacional, os alemães se submetem a um sistema híbrido: que reforça a importância cultural da figura associativa, de um lado, mas, de outro, impõe, como necessidade de sobrevivência e de competitividade, a adoção de formas empresariais. O resultado pode ser extraído do estatuto (satzung) da Bundesliga, que estipula, no §16c, a regra conhecida por 50+11. Esta regra determina que, na constituição de sociedade empresária pela associação, esta mantenha pelo menos 50% + 1 dos votos. A associação, assim, preserva o controle societário e se torna uma espécie de guardiã das tradições e das relações com os seus torcedores. Analisando-se sob outro ângulo, eventuais investidores, que ingressam na sociedade mediante negociações privadas, ou seja, mediante aquisição de ações ou subscrição privada de ações em aumento de capital, ou mediante subscrição pública em aberturas de capital, não poderão deter o controle majoritário da empresa futebolística. A regra dos 50%+1 admite uma exceção: caso um investidor financie substancialmente o clube há mais de 20 anos, poderá, à critério da Liga Alemã de Futebol (DFL - Deustche Fussball Liga), aumentar sua participação acima do limite estatutário e tornar-se titular da maioria do capital social. Atualmente, 3 times, que são operados por sociedades empresárias, se enquadram no regime da exceção2-3: Wolfsburg, Bayer Leverkusen e Hoffenheim. A tabela 1, abaixo, relaciona os times da primeira divisão. E a tabela 2 a composição do capital social dos times que adotaram a forma empresarial: Tabela 1: FC Köln FSV Mainz 05 Bayer 04 Leverkusen Borussia Dortmund Borussia Mönchengladbach Eintracht Frankfurt FC Augsburg FC Bayern München FC Ingolstadt 04 FC Schalke 04 Hamburger SV Hertha Berlin RB Leipzig SV Darmstadt 98 SV Werder Bremen SC Freiburg TSG 1899 Hoffenheim VfL Wolfsburg Tabela 2: Nome Composição social Tipo societário Bayer 04 Leverkusen Fussball AG 100% Bayer AG Aktiengesellschaft (AG) - Sociedade Anônima HSV Fussball AG 91% Hamburger SV e.V.7,5% Klaus-Michael Kühne1,5% Helmut Bohnhorst Aktiengesellschaft (AG) - Sociedade Anônima Eintracht Frankfurt Fussball AG 62,9 % Eintracht Frankfurt e. V.28,55 % Freunde der Eintracht Frankfurt AG5 % BHF-Bank3,6 % Wolfgang Steubing AG Aktiengesellschaft (AG) - Sociedade Anônima FC Bayern München AG 75,01% FC Bayern München e.V.8,33% Adidas AG8,33% Allianz SE8,33% Audi AG Aktiengesellschaft (AG) - Sociedade Anônima FSV Mainz 05   Eingetragener Verein (e.V) - Associação FC Ingolstadt 04   Eingetragener Verein (e.V) - Associação FC Schalke 04 Gelsenkirchen   Eingetragener Verein (e.V) - Associação SC Freiburg   Eingetragener Verein (e.V) - Associação SV Darmstadt 98   Eingetragener Verein (e.V) - Associação Borussia VfL 1900 Mönchengladbach GmbH 100% Borussia VfL 1900 Mönchengladbach e.V. Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) - Sociedade Limitada RasenBall Leipzig GmbH 99% Red Bull GmbH1% RasenBallsport Leipzig e.V. Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) - Sociedade Limitada TSG Hoffenheim Fussball-Spielbetriebs GmbH 4% TSG1899 Hoffenheim e.V.96% Dietmar Hopp Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) - Sociedade Limitada VfL Wolfsburg-Fussball GmbH 100% Volkswagen AG Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) - Sociedade Limitada FC Köln GmbH & Co. KgaA 100% FC Köln 01/07 e.V. Kommanditgesellschaft auf Aktien (KGaA), deren Komplementär eine Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) (Gmbh & Co. KGaA) - Sociedade em comandita por ações (KGaA), cujo "parceiro geral" é uma Sociedade Limitada (GmbH) Borussia Dortmund GmbH & Co. KGaA 60,36% free float14,78 % Evonik Industries AG9% Bernd Geseke5,53% BVB 09 e.V. Dortmund5,43% Signal Iduna5% Puma SE Kommanditgesellschaft auf Aktien (KGaA), deren Komplementär eine Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) (Gmbh & Co. KGaA) - Sociedade em comandita por ações (KGaA), cujo "parceiro geral" é uma Sociedade Limitada (GmbH) FC Augsburg 1907 GmbH & Co. KGaA 100 % FC Augsburg 1907 e.V. Kommanditgesellschaft auf Aktien (KGaA), deren Komplementär eine Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) (Gmbh & Co. KGaA) - Sociedade em comandita por ações (KGaA), cujo "parceiro geral" é uma Sociedade Limitada (GmbH) Hertha BSC Berlin GmbH & Co. KgaA 90,3% Hertha BSC e.V.9,7% KKR&Co. L.P. Kommanditgesellschaft auf Aktien (KGaA), deren Komplementär eine Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) (Gmbh & Co. KGaA) - Sociedade em comandita por ações (KGaA), cujo "parceiro geral" é uma Sociedade Limitada (GmbH) Werder Bremen GmbH & Co. KGaA 100% SV Werder 1899 e.V. Kommanditgesellschaft auf Aktien (KGaA), deren Komplementär eine Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) (Gmbh & Co. KGaA) - Sociedade em comandita por ações (KGaA), cujo "parceiro geral" é uma Sociedade Limitada (GmbH) Do ponto de vista organizacional, adotam-se as seguintes formas jurídicas: a Sport Association (associação esportiva) e três espécies empresariais: AG, GmbH e GmbH & Co. KGaA. A AG se equipara à sociedade anônima brasileira. Tem seu capital social dividido em ações que podem ser negociadas, ou não, em bolsa. A GmbH se assemelha à sociedade limitada, tipificada e regulada no Código Civil. Já a GmbH & Co. KGaA é um tipo híbrido, que pode ser enquadrado como uma sociedade em comandita por ações (KGaA) cujo general partner é uma sociedade de responsabilidade limita (GmbH). Apenas 5, dos 18 clubes da 1ª divisão, mantêm a forma associativa. Os demais optaram por uma das espécies destinadas ao exercício da empresa. Desses 13, somente 1 abriu seu capital: o Borussia Dortmund. Os demais contam com investidores externos. O exemplo mais emblemático (e exitoso) é o Bayern de Munique, que recebeu investimentos de 3 investidores - Adidas, Audi e Allianz -, sendo que cada um passou a deter 8,33% do capital social, totalizando, assim, uma participação externa de apenas 25%. Apesar de apenas 5 times terem faturado menos de Euros 100 milhões na última temporada, a disparidade entre os dois maiores times e os demais evoca o modelo de duopólio construído na Espanha: Bayern e Borussia apuraram faturamentos consolidados de quase Euros 1 bilhão - pouco menos de 1/3 da liga toda. Aliás, o faturamento da liga, na temporada 2015/2016, foi de aproximadamente Euros 3,24 bilhões. Um montante realmente expressivo, especialmente pelo fato de a maioria dos times não ostentar tradição ou prestigio futebolístico. __________ 1 "(.) Sports associations (...) must have minimum of 50%+1 of share in the company of commercial law at the general meeting (in the case of a limited partnership, the parent association must have 100% of shares in the subsidiary company and not less than 50% of the votes on general meeting (Lizenzierungsordnung, pp. 7-9, Satzung die Liga, p. 8). (.) The characteristic of the German professional football is the legal solution commonly know as "the principle of the 50%+1": Sports associations, which are converted into commercial companies should have a majority of shares in the newly established business entity (...)" (GRABOWSKI, Artur. Institutional and legal order's effect oneconomic situation of the german sector of sports enterprises). 2 Um caso merece atenção especial: RB LEIPZIG. Essa sociedade seria, de fato, controlada pela Red Bull e o corpo de associados consistiria em apenas uma fachada para atender à formalidade da lei. 3 "RB Leipzig sign up to the letter of the 50+1 rule but - so their critics allege - corrupt its spirit: while membership at Dortmund costs adults ?62 per annum, being a "gold" member at Leipzig will set you back ?1,000 a year - and that still only makes you a "supporting" or non-voting member. Even after being forced by the German FA to open up their membership structure in order to get a licence for the first division, RB Leipzig only have 17 members proper - the majority of whom are either employees or associates of Red Bull."
Alex Atala, provavelmente o mais talentoso cozinheiro que o país produziu, afirma que o ingrediente alimentar que une os brasileiros, independentemente de origem, classe ou região, é a mandioca e as suas farinhas (e não o arroz com feijão)1. Essa revelação, que foi precedida de intensa pesquisa e visitação, contribui para o resgate de hábitos alimentares que marcaram a formação de nossa cultura. Partindo-se da classificação de Ezra Pound2, Alex Atala se enquadra no tipo de pessoas caracterizadas pela maestria. Os mestres se diferenciam dos inventores - que são os homens descobridores de novos processos - pois, apesar de não terem inventado tais processos, os usam tão bem ou melhor que os próprios inventores. Sua maestria, contudo, mesmo associada à sua capacidade inata de comunicação e encantamento, sobretudo pela paixão que envolve suas proposições, não produzirá um país melhor a partir da mandioca. Tite também se classifica entre os mestres. Um mestre ainda em evolução, mas que poderá, talvez, se sentar ao lado de outros, sagrados e consagrados, como Telê Santana e Pep Guardiola. Ou almejar um posto maior. O produto que ele maneja, no entanto, ao contrário da mandioca - e de qualquer outro elemento que reúne expressão de cultura e alguma relevância econômica - é dotado de poder transformacional. A expressão dessa realidade se acentua nos momentos de necessidade de afirmação nacional. É exatamente o que se passa com o processo de beatificação de Tite, desde o início de seu trabalho na liderança da seleção brasileira. Ao treinador se tenta conferir o crédito pelo início do resgate da confiança e do orgulho de ser brasileiro, num momento extremamente delicado da história política e econômica do país. A transformação do ambiente se opera, portanto, pelo futebol, e não pelo prometido resgate da economia. E decorre, vale ressaltar, da atuação de um novo líder, um quase-Messias, e não de um processo de reformulação das bases do esporte, especialmente para colocá-lo no mesmo patamar de seus oponentes internacionais. Desse processo não participaram os donos do futebol, que nada fizeram - e nada fazem, efetivamente - para a operação do quase-milagre. Foi obra do acaso, ou de Deus, que é, afinal, brasileiro. Esse diagnóstico é assustador: Tite é efêmero; sua vontade e sua energia para produzir o bem podem se esgotar; e, num cenário que não se pode desprezar, a convergência e união grupal podem se dissipar, e os resultados positivos tornarem-se menos frequentes. De todo modo, esse lampejo ufanista que o brasileiro começa a reverberar, de certa forma tributário de um modelo de país que não se quer ver nem pintado de verde e amarelo, revelam, no entanto, a força da maior expressão cultural do país: seu futebol. O futebol não solucionará todos os problemas do país. Mas poderá integrá-lo e promover pujança econômica e avanços sociais. Porém, pessoas que se deliciam com as extravagâncias culinárias alienígenas, quando a conta se apresenta em euros ou dólares, mas que são incapazes de compreender a proposta revolucionária de um cozinheiro (ou chef) local, quase macunaímico, que oferece produtos em reais, mantêm-se curvadas à secular dominação europeia, agora sob a forma do jogo de bola. A incapacidade - ou falta de vontade - de transformar o país é enaltecida pelo empenho na formação de um novo símbolo transformador que, paradoxalmente, reforça o status quo. A seleção deveria pertencer aos brasileiros. Tite vem se apresentando, realmente, como o instrumento de aproximação e fiador de um novo romance. O problema é que ele representa, institucionalmente, os algozes das milhões de pessoas que sonham, de modo legítimo, com uma vida melhor a partir do futebol, com um futebol melhor ou apenas com a sua devida valoração no plano econômico. O conflito está posto. Se Tite atingir seu objetivo como técnico - o título da Copa do mundo, ou uma participação reconhecidamente encantadora, como a da seleção de 1982 -, não poderá ignorar o dever de protagonizar a revolução da governação do futebol brasileiro. E, assim, tornar-se, além de mestre, um grande inventor. __________ 1 Nada de arroz e feijão: saiba qual alimento une o Brasil, segundo Atala. 2 Pound, Ezra. ABC da literatura; organização e apresentação da edição brasileira Augusto de Campos; tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes - 11. ed. - São Paulo: Cultrix, 2006, p. 42.
quarta-feira, 29 de março de 2017

Basta

Qual é a relevância da federação de Roraima para o futebol brasileiro? E a do Acre? Ou a de Mato Grosso? Não se tem nada, absolutamente nada contra os Estados mencionados e outros que, no plano do futebol, jamais tiveram qualquer papel relevante em sua organização e funcionamento. Mas não se pode admitir que, no âmbito da política do futebol, suas federações tenham a mesma relevância que a federação paulista, com seus 4 grandes times e quase uma dezena de outros com alguma tradição e importância econômica; ou que a carioca, com uma estrutura, de certo modo, semelhante; ou, ainda, que a federação gaúcha e a mineira, que hospedam, pelos menos, dois times de expressão cada. Sem contar a pernambucana e a baiana que, se impusessem uma organização adequada aos seus times, poderiam almejar a dominação nacional. Também não se pode admitir que as federações dos inexpressivos Estados no plano futebolístico tenham mais força do que Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Atlético, Cruzeiro, Grêmio, Internacional, Bahia, Vitória, Sport ... Esse foi o sistema arquitetado, semana passada, certamente com base em robustas opiniões jurídicas, para preservar o modelo de dominação e apropriação do futebol brasileiro: a atribuição de 3 votos às federações, enquanto os times da primeira divisão carregam 2 votos e os da segunda, apenas um. Ou seja, os clubes jamais conseguirão controlar a organização do futebol. A situação é grave. A gravidade se revela pelo incessante distanciamento do torcedor, do brasileiro em geral, do estádio, de seus times. São reflexos evidentes de que os donos do poder não conseguem - ou não querem - estabelecer uma relação de afinidade com a torcida, com a sociedade. Pretendem, ao contrário, o distanciamento, para, assim, manter a dominação. Há quem diga e projete o fim do esporte no país. Ou que questione a dimensão da paixão que realmente se nutre pelo jogo de bola. Qualquer que seja o ângulo de análise, o espectro costuma ser negativo, e expressa, de certo modo, a resignação coletiva. O que não se percebe, com raríssimas exceções, é que o futebol não é mais brasileiro, do brasileiro. Ele pertence a um grupo de interesse que se apropriou não apenas do próprio futebol, mas de símbolos nacionais: o hino, as cores e a bandeira. Esse grupo, ademais, se beneficia de um monopólio artificial, criado pela adesão a um sistema planetário que impede a entrada de novos concorrentes, em qualquer um de seus níveis organizacionais, sem oferecer um sistema local de contrapartidas. Não há saída, portanto, para essa situação, enquanto o brasileiro não gritar basta. Um grito individual, às margens de um córrego, já foi, segundo a história oficial, capaz de impor um novo modelo político, sem guerra, sem sangue, sem morte. Um grito coletivo, nos dias de hoje, com a penetração das novas mídias e das redes sociais seria, é bem provável, capaz de produzir transformações mais profundas. Serão elas desejadas, no entanto? Jogadores, torcedores, treinadores, dirigentes de clubes, jornalistas, profissionais liberais, professores, empresários, artistas, agentes de mercado, enfim, estará a sociedade em busca da libertação do maior patrimônio cultural do país? Ou preferirá continuar a testemunhar a desconstrução de sua história? Ou será que preferirá continuar a esquentar os sofás, nas tardes ensolaradas de sábado e domingo, diante do mundo encantado do futebol europeu?
O anteprojeto de Lei Geral do Esporte Brasileiro, objeto da coluna da semana passada (16/3/2017), propõe a criação, no capítulo V, seção II, da Sociedade Anônima Esportiva ("SAE"). O art. 144 estabelece, nesse sentido, que ela terá "capital dividido em ações, e a responsabilidade dos acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas". Em seu conteúdo, adotam-se, em grande parte, o modelo e a redação que constam do Projeto de lei 5.082/16, de autoria do Deputado Federal Otavio Leite ("PL 5.082"), que cria, no Brasil, a sociedade anônima do futebol ("SAF"). Aliás, o art. 1º do PL 5.082 prevê que a "sociedade anônima do futebol - SAF terá o capital dividido em ações, e a responsabilidade dos acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas". Há, porém, um propósito estrutural, que motiva a criação da SAF, que não se conseguirá absorver na SAE: a formação de um ambiente organizado, estruturado e regulado, que estimule e incentive o desenvolvimento de determinada atividade. Uma atividade, no caso do futebol, que pode, pela sua dimensão e capilaridade, transformar-se em um efetivo elemento de integração nacional, de geração de empregos e de renda, de atração de investimentos e de arrecadação de tributos. Esta é a perspectiva que justifica a concepção de um novo tipo societário, como a SAF. A SAF não é, portanto, a finalidade do PL 5.082. Ela é o instrumento de viabilização de um projeto maior e mais audacioso, que consiste, como já indicado, na formulação de um sistema, um "ecossistema" sustentável, construído sobre os pilares de preservação do futebol como bem cultural e de sua potencialidade econômica e de mercado. Caso contrário, não haveria necessidade de criação de uma nova via de direito para organização da atividade futebolística. Note-se, nesse sentido, que qualquer entidade esportiva já pode - e sempre poderá - adotar algum dos tipos societários já existentes, como a sociedade anônima ou a sociedade limitada, para organização de empresas esportivas. Esses tipos societários, além de conhecidos, já foram testados e contam com extensa jurisprudência e doutrina, oferecendo certa previsibilidade e segurança. Isso faz com que a inserção de uma nova via somente se justifique se vier a fazer parte das soluções para problemas socioeconômicos. As tentativas de induzir a transformação do clube em empresa, protagonizadas a partir dos anos 1990, demonstraram - e demonstram -, na prática, a correção dessa afirmação: projetos mal engendrados, conflitos culturais, problemas éticos, projeções irreais, apropriação de ativos intangíveis, equívocos contratuais, dentre outros fatores. Não basta, portanto, a forma e o surgimento de uma onda formal. Não basta induzir a mudança de modelo, sem tratar do ambiente em que a entidade esportiva será lançada e no qual ela passará a se relacionar com agentes preparados e experientes. O processo deve ser cuidadosamente organizado e estruturado. Esses são alguns motivos que justificam a existência do PL 5.082/16 e a necessidade de seu trâmite de modo autônomo de qualquer tentativa de regulação genérica do esporte. Aliás, ambos os tipos societários - a SAF e a SAE - podem, em tese, conviver. Porém, o que o Poder Legislativo deve avaliar (e a sociedade civil também, pois se trata de tema de seu interesse) é a necessidade de criação de mais um tipo societário, que se somaria aos demais que já existem e, também, à SAF, a partir do momento em que vier a ser aprovada e inserida no sistema, sem que, para ele, se dê uma finalidade social e econômica. Ficam, assim, algumas perguntas: qual o propósito da SAE? A que se prestará? Quais serão os benefícios sociais e econômicos? E os custos envolvidos em sua concepção e integração ao sistema? Essas perguntas devem ser respondidas para que o debate possa prosseguir de forma saudável e útil à sociedade.
Em 27 de outubro de 2015, o presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, instituiu, por meio do Ato n. 39, uma Comissão de Juristas ("Comissão"), com o propósito de elaborar uma Lei Geral do Esporte Brasileiro. De acordo com o Presidente da Comissão, Caio Cesar Vieira Rocha, os seus membros procuraram "sistematizar de forma mais adequada e atualizar a miríade de normas que regulamentam o desporto". De modo que se buscou "ainda instituir o marco regulatório de matérias não disciplinadas, mas que constituem realidade da vida esportiva". A referida Comissão propôs, assim, estabelecer um "Sistema Nacional do Esporte, com a criação de um Fundo Nacional do Esporte, com a ideia de que mais recursos sejam utilizados para fomentar o esporte, no âmbito nacional, estadual e municipal". O anteprojeto também pretende regular vias de direito para organização da empresa esportiva. Afirma, neste sentido, o seu Relator, Wladimyr Vinycius de Moraes Camargos, que "a criação de organizações esportivas na forma de sociedades empresárias continua a ser facultativa. Trago como novidade - (ele afirma) - (1) a criação das Sociedades Anônimas Esportivas, com regulação própria e (2) a extensão dos benefícios tributários hoje disponíveis apenas às organizações esportivas sem fins econômicos para as que se organizam como sociedades empresárias"1. A iniciativa merece profundo e intenso debate. O ponto de partida deve ser, em minha opinião, a sua principal premissa: faz sentido uma Lei Geral organizadora de toda e qualquer forma de manifestação ou prática esportiva, independentemente de sua penetração, relevância cultural e importância econômica? Na mesma linha, não seria o caso de reconhecer as especificidades de certas atividades e tratá-las autonomamente, por conta, justamente, da mencionada relevância cultural e econômica? Entendo que sim. E o grande motivador dessa afirmação é o futebol. Parece-me que, enquanto o mundo ocidental criava as bases para formulação de uma nova ordem futebolística mundial, já assimilada pelos principais centros europeus e vários países latino-americanos (como México, Chile e Colômbia), e enquanto a China assombra o planeta com os investimentos milionários voltados à dominação futura do mercado da bola, o Brasil patina em seus velhos dogmas e na tentativa de erigir um modelo heroico que, a um só tempo, resolva todos os seus problemas e que se construa sobre conceitos utópicos. Não se faz aqui, é bom registrar, uma crítica aos membros da Comissão. Apenas se lança luz sobre a necessidade, sobre a urgência, de, em um ato de generalizada humildade, reconhecer que a formação do novo mercado do futebol deve ter um tratamento próprio, sem que se perca em conceitos e princípios éticos e estéticos, reflexivos da atual conjuntura político-econômica, e insuficientes para solucionar um problema epidêmico. O futebol brasileiro não se recuperará e não assumirá o papel transformador a que se destina pelo simples fato de se sujeitar a uma lei geral, grandiosa em sua pretensão e em seu conteúdo. A solução virá de outra dimensão: do mercado, de um novo e organizado mercado. Falta ao país, porém, um conjunto normativo adequado, direcionado, compacto e capaz de organizar e disciplinar o mercado, e que ofereça instrumentos eficientes de fiscalização e sanção de seus agentes. Sem este encaminhamento não se evitarão novas experiências negativas, tais quais aquelas protagonizadas a partir da Lei Zico e, sobretudo, após o advento da Lei Pelé, que partiam da incorreta premissa de que a simples transformação do clube em empresa solucionaria as mazelas da secular estrutura associativa. Também lhe falta, como afirmou Ludwig Von Mises - em palestra em que aborda as necessidades das "nações subdesenvolvidas" -, capital; falta-lhe capitalismo2. Ao que se poderia, casuisticamente, acrescentar: falta a substituição do modelo de capitalismo cartolarial - que despreza a força econômica dos competidores e o livre mercado, e privilegia os conflitos e benefícios privados - pelo capitalismo arquitetado pelo Estado, para atração de agentes que poderão, enfim, financiar o desenvolvimento do futebol e, consequentemente, contribuir para integração e evolução da sociedade. Aliás, a sociedade brasileira deve participar desse debate, inclusive por sugestão do próprio Presidente da Comissão, que anota, em sua apresentação, que "não há a pretensão de apresentar-se aqui um diploma perfeito, pronto e acabado". Somente com a sua participação - e reivindicação - o Congresso Nacional atentará para a necessária instituição de uma via de direito arquitetada com o propósito de resgatar a mais profunda e intensa manifestação cultural do brasileiro e, sem descaracterizá-la, projetar sua transformação em um poderoso produto nacional. __________ 1 O relator aponta, em relação a estas matérias, que as contribuições dos autores intelectuais do anteprojeto que cria a sociedade anônima do futebol, que se converteu no Projeto de Lei n. 5.082/16, de autoria do Deputado Otavio Leite, foram "importantes para a redação da parte referente às S.A.s esportivas". 2 Mises, Ludwig von. O livre mercado e seus inimigos: pseudo-ciência, socialismo e inflação; tradução de Flavio Quintela - Campinas, SP: VIDE Editorial, 2017, p. 73.
quarta-feira, 8 de março de 2017

Barbarians at the gate

O título desta coluna foi extraído de uma fascinante narrativa, contada por Bryan Burrough e John Helyar. Trata-se, aliás, de uma espécie de literatura, realmente farta em países anglo-saxões, sobretudo nos Estados Unidos, mas que, no Brasil, ainda não despertou a devida atenção de jornalistas, editores e leitores. O livro, cujo título completo é Barbarians at the gate - the fall of RJR Nabisco, relata uma sucessão de histórias que se passam no ambiente das grandes companhias americanas. O pano de fundo é a RJR Nabisco, uma companhia com atuação nos setores de fumo e alimentos; nos planos frontais, narram-se as tramas envolvendo seus administradores e acionistas e seus planos de dominação empresarial. O clímax da narrativa envolve a decisão do CEO da companhia, com apoio de um consórcio de financiadores, de realizar uma oferta para aquisição das ações da própria companhia e, assim, tornar-se, em conjunto com outros agentes, o seu controlador. O negócio, à época - anos 80 -, representava a maior transação da história corporativa. Mas não decolou da forma planejada e os bárbaros, que abalaram as estruturas de uma companhia com ampla penetração, deixaram de ocupar lugares de destaque na sociedade corporativa. Evidentemente que os arquitetos desse take over, de bárbaros, não tinham nada. Eram profissionais extremamente talentosos, sofisticados e ambiciosos. Mesmas características de outros bárbaros que, apesar de não terem batido às portas do futebol brasileiro, já se lançaram em aventuras nos países vizinhos. Os bárbaros, no caso, são mexicanos. Especificamente um grupo empresarial, chamado Pachuca, que se lançou em terras portenhas para adquirir o Club Atlético Talleres, da cidade de Córdoba. E há mais: em 2016, adquiriu 80% da equipe chilena Corporación Deportiva Everton de Viña del Mar, da cidade de Viña del Mar. Não são times expressivos, é verdade; mas as iniciativas têm como propósitos transformá-los em máquinas de formação de jogadores e verdadeiros aspirantes ao sucesso. Essa afirmação se sustenta na própria história do Grupo que, em 1995, adquiriu o Pachuca Club de Fútbol, pertencente ao Estado de Hidalgo. Em 1998, o time subiu para primeira divisão, colecionando, desde então, 6 títulos da Liga, 4 títulos da Liga de Campeões da Concacaf e 1 da Copa Sul Americana. Em 2010, o Grupo adquiriu outro time mexicano, o Club León. Em 2012, após passar 10 anos na segunda divisão, subiu à primeira. Em 2013, conquistou o título Apertura e, em 2014, o Clausura. Outro time, o Tecos Fútbol Club, foi adquirido em 2014. Seu nome passou para Mineros de Zacatecas e sua base transferida para Zacatecas. Em sua primeira temporada na Liga de Acesso, alcançou o segundo lugar. A proposta dos dirigentes do Grupo é levar o modelo de negócios para os demais times investidos, a começar pelo chileno e o argentino, e, em três ou quatro anos, fornecer muitos de seus jogadores às seleções dos respectivos países. O próximo passo do Grupo, seria, conforme rumores de mercado, a aquisição da Corporación Deportiva Once Caldas, da Colômbia. Respaldo para isso o Grupo aparentemente tem: em 2012, Carlos Slim, o homem mais rico do México e o 4º do planeta, associou-se ao projeto. Pois bem, quando chegará a vez do Brasil? Qual será o alvo da invasão bárbara? Intuitivamente, caso o Grupo realmente se dirija para cá, o alvo inicial deverá ser um time menor, com alguma organização interna e poucos conflitos políticos. E que, com capital e uma sólida governança, seja capaz de trilhar uma história de ascensão e conquistas. Para concluir, talvez seja mais um alerta para os times tradicionais. Se não acordarem para nova ordem mundial, poderão, a médio ou longo prazo, se tornar parte de livros de história.
A BM&FBOVESPA ("Bolsa") é a maior bolsa da América Latina. Organiza-se como uma companhia aberta, cujas ações de sua emissão são negociadas na própria Bolsa. Compete-lhe a administração de mercados organizados de títulos, valores mobiliários e contratos derivativos, e a prestação de serviços de registro, compensação e liquidação. A Bolsa oferece, conforme seu sítio eletrônico, "ampla gama de produtos e serviços, tais como: negociação de ações, títulos de renda fixa, câmbio pronto e contratos derivativos referenciados em ações, ativos financeiros, índices, taxas, mercadorias, moedas, entre outros; listagem de empresas e outros emissores de valores mobiliários, depositária de ativos, empréstimo de títulos e licença de softwares". A estruturação jurídica atual, sob a forma de companhia, é relativamente recente, e fruto da integração, realizada em 2008, da Bovespa e da BM&F. A integração não abalou o processo de criação e implementação dos segmentos especiais de listagem, surgidos no ano 2000. Aliás, os segmentos Bovespa Mais, Bovespa Mais Nível 2, Novo Mercado, Nível 2 e Nível 1 foram instituídos com a convicção de que contribuiriam para o desenvolvimento do mercado de capitais, pois exigiam normas mais aguçadas de governança das companhias que neles voluntariamente se listassem. O desenvolvimento se daria pela atração de investidores dispostos a aplicar seus recursos em papeis de companhias que assegurassem diretos, garantias e informações mais detalhadas e sofisticadas. Segundo a própria Bolsa, "desde a criação desses segmentos, a BM&FBOVESPA tem atuado no sentido de identificar o 'estado da arte' da governança corporativa. Com esse objetivo, a BM&FBOVESPA vem realizando pesquisas intensas sobre as melhores práticas adotadas internacionalmente". O Novo Mercado, por exemplo, tornou-se um padrão de referência e, de certo modo, empresta, às novas aberturas de capital, credibilidade e confiabilidade. Ao listar-se nesse segmento, a companhia deve (i) emitir apenas ações ordinárias, com direito a voto, (ii) oferecer a todos os acionistas o direito de vender suas ações pelo mesmo preço atribuído às ações de controle, (iii) criar conselho de administração composto de pelos menos 20% de conselheiros independentes, dentre várias outras regras mandatórias. Para as companhias de menor porte e que almejam realizar captações menores, criou-se o Bovespa Mais. Pretende-se, com ele, na outra ponta, atrair investidores que busquem um maior potencial de desenvolvimento do negócio - e, consequentemente, se disponham a correr maior risco. Em textos recentes, publicados nesta Coluna, sugeri a criação, pela Bolsa, de mais um segmento especial: o Bovespafut, com o propósito de listar e negociar papeis de companhias do futebol. Sua criação parte de algumas premissas. Primeira, de que o futebol, no Brasil, é grandioso e pode tornar-se uma atividade econômica realmente pujante. Segunda, de que há espaço para criação do Novo Mercado do Futebol. Terceira, de que, sendo a Bolsa uma companhia aberta, a criação do segmento justifica-se apenas se mostrar-se viável do ponto de vista econômico. Quarta, e não menos importante, de que a nova ordem do futebol brasileiro somente se iniciará com a produção de uma regulação capaz de oferecer os meios para induzir um novo modelo de propriedade dos ativos futebolísticos e uma governança própria e específica. Não existe na experiência internacional, é bom registrar, um país ou uma bolsa que tenha criado um segmento especial para o futebol. As emissões realizadas em países europeus ou nos Estados Unidos ocorrem nos ambientes disponíveis a qualquer companhia. Assim, o Bovespafut, como segmento destinado ao futebol, seria uma iniciativa pioneira da Bolsa brasileira. Há outro modelo, porém, que poderia ser instituído pela Bolsa, em paralelo ou em substituição à segmentação. Trata-se, aliás, de iniciativa já existente para determinado setor: o programa de certificação, que estabelece certos padrões de controle, conduta e governança às companhias que pretendem obter o certificado emitido pela Bolsa. Neste sentido, foi criado, em setembro 2015, o Programa Destaque em Governança de Estatais, destinado às companhias de economia mista abertas ou em processo de abertura de capital. De acordo com a Bolsa, "a iniciativa tem por intuito contribuir para a restauração da relação de confiança entre investidores e estatais, apresentando medidas objetivas e concretas com o fim de colaborar para a redução de incertezas relativas à condução dos negócios à divulgação de informações, notadamente quanto à consecução do interesse público e seus limites, além do componente político inerente a essas empresas". A adesão ao programa é voluntária, assim como seria, também, às companhias do futebol, em um eventual Programa de Certificação das Sociedades Anônimas do Futebol. Ademais, ao implementar parcial ou totalmente as medidas sugeridas pela Bolsa, as sociedades anônimas do futebol receberiam um certificado de governança que indicaria o padrão de implementação e o comprometimento com a adoção de boas práticas de governança. Esse programa de certificação, que também pode ser batizado de Bovespafut, talvez seja o passo inicial para aproximação de dois mundos que, apesar de historicamente distantes, poderão protagonizar o casamento econômico do século: o futebol e o mercado de capitais.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O fenômeno dos grupos no âmbito do futebol

A receita dos principais times do planeta impressiona. Conforme números da temporada 2015/2016, o Manchester United apurou uma receita de 689 milhões de euros. Em segundo lugar veio o Barcelona, com receita de 620,2 milhões de Euros, seguido pelo Real Madrid, com 620,1 milhões de euros. O Bayern se colocou em quarto, com 592 milhões de euros. Na sequência o Manchester City, com 524,9 milhões de euros e, em sexto, o PSG, que atingiu 520,9 milhões de euros1. Dentre os top 20 da temporada, apareceu o pequeno Leicester, que apurou 172,1 milhões de euros. Este número foi afetado pelo inédito título do campeonato inglês, fato que justifica um acréscimo de 25,6% em relação ao ano anterior, de 137 milhões de euros para o montante acima mencionado. Voltando ao grupo dos 6 maiores, o caso do Manchester City merece atenção. Não apenas pelo montante apurado, mas, também, pelo modelo de negócios da empresa que o controla. Em 2008, o clube foi adquirido pelo Abu Dhabi United Group. O grupo, posteriormente, constituiu uma holding, a City Football Group, que passou a deter ativos ligados ao futebol. Além do próprio Manchester City, somam-se ao portfólio o New York City F.C., o Melbourne City F.C. e o Yokohama Marinos. Como esse exemplo poderia ser aproveitado para o desenvolvimento do futebol brasileiro? Veja-se uma situação: o Brasil é o país que mais exporta jogadores. Em 2016, foram 806. O maior importador do produto brasileiro foi Portugal, com 1682. As exportações têm como origem, em sua maioria, países menos relevantes ou, em muitos casos, inexpressivos no contexto mundial. Isso justifica o baixo valor de negociação. O brasileiro sai do país por, em média, R$ 1,02 milhão3. Em outras palavras, produz-se e se negocia, por aqui, commodity. Esta commodity, após se conformar em mercados europeus, é negociada por preços muito mais expressivos. A média do valor de negociação do jogador que sai da Espanha, por exemplo, é de R$ 3,26 milhões. Essa diferença poderia ser aproveitada pelos times brasileiros. De que forma? Simples: fosse o time operado por uma sociedade anônima do futebol, ele poderia captar recursos para investir, por exemplo, na aquisição de um time europeu de país menos expressivo ou de times de segunda divisão dos principais campeonatos. A aquisição poderia ser parcial ou total. O time adquirido - ou os times, se a captação fosse relevante e as oportunidades aparecessem - seria o destino de certos jogadores, que se habituariam ao jogo e às condições continentais. Após o devido "estágio", seriam negociados com times mais expressivos, capturando-se o excedente que, atualmente, se dispersa entre intermediários. O modelo financeiro das negociações dependeria algumas diversas variáveis, podendo se tratar de uma cessão efetiva direitos, com o pagamento do preço pelo cessionário ao cedente, o qual, futuramente, receberia os dividendos decorrentes dos lucros apurados, ou de empréstimo. A criação do novo mercado do futebol, que vem sendo proposta nesta Coluna, por via, especialmente, da instituição da sociedade anônima do futebol, na forma do PL 5.082/16, oferecerá os mecanismos necessários para que se criem, a partir de times brasileiros, grupos futebolísticos mundiais. Aliás, essa proposição não é fruto de devaneio. Já está em curso, sob diversas formas. Além da experiência do Manchester City, que tem como controladora uma holding de investimentos, o Atlético de Madri segue o seu caminho. Em janeiro de 2017, seu presidente manifestou interesse na aquisição do Club San Luis, do México, para que tivesse uma presença comercial e desportiva no país4. Não foi o primeiro caso, pois seus investimentos se espalham. Em 2016, por exemplo, já se havia anunciado a aquisição de participação equivalente a 34,6% do time francês Lens, da segunda divisão5. Enfim, o futebol se insere, queiramos ou não, numa nova ordem. Se os times brasileiros não se adaptarem, eles se consolidarão, nessa ordem, como exportadores de commodity. E nada além disso. __________ 1 Deloitte Football Money League 2017. 2 O Globo. 3 Idem. 4 Atlético de Madrid espera cerrar en breve la compra del Club San Luis mexicano. 5 La Junta de Accionistas del Atlético aprueba la compra del 34,6 del Lens.  
Não é fácil explicar, mesmo aos operadores do Direito, que a empresa não pertence aos sócios da sociedade empresária. De modo sucinto, os sócios são titulares de ações (ou quotas) emitidas pela sociedade, que lhe conferem direitos políticos (voto) e econômicos (expectativa ao dividendo). O dono da empresa (bens organizados para produção e circulação de produtos ou serviços) é a própria sociedade. Por isso, um acionista da Petrobras não é o dono dos barris de petróleo e das plataformas e não pode dispor ou fruir dos bens que compõem o patrimônio social. Da mesma forma, o associado de um clube (que é, no plano jurídico, uma associação civil) não é dono de seus ativos, incluindo o time de futebol. O dono, no caso, é o próprio clube. Esse modelo se aplica tanto às grandes companhias, com suas centenas (ou milhares) de sócios, como às pequenas sociedades, constituídas por dois ou poucos sócios. Toda pessoa jurídica - sociedade empresária ou associação civil - é composta de órgãos. Os órgãos não têm autonomia ou personalidade; eles compõem o organismo societário ou associativo. A administração é órgão vital da pessoa jurídica. Um sócio pode ser administrador da pessoa jurídica. Neste caso, sua atuação como sócio não se confunde com seus atos como administrador. O administrador representa a pessoa jurídica e assume obrigações em nome dela. Essas obrigações podem ter como contraparte (i) um sócio, (ii) um administrador, (iii) uma pessoa ligada aos administradores ou (iv) uma pessoa ligada aos sócios da sociedade. Esse grupo de pessoas é denominado parte relacionada. No âmbito do mercado, há uma série de diretrizes ou normas que tratam das negociações entre sociedades empresárias e partes relacionadas. Uma forma eficiente de tratamento consiste na vedação, prevista em estatuto da sociedade empresária, de negócios com partes relacionadas sem a aprovação de um órgão colegiado (conselho de administração ou assembleia geral de sócios). Essa prática não costuma ser adotada pelas associações civis que operam os times de futebol. Mas é justamente nessas entidades, em que nenhum associado detém mais de um voto, igualando-se a todos os demais, independentemente de sua condição financeira e poder político, que os negócios com partes relacionadas podem servir para obtenção indevida de privilégios e benefícios pessoais. O ambiente do clube pode, assim, tornar-se um centro facilitador e indutor de negócios entre associados ou suas partes relacionadas e o próprio clube. Esses negócios não são, por definição, ilícitos ou desvantajosos ao clube. Mas devem, em qualquer circunstancia, ser verificados previamente e tornados públicos, para que todos saibam que (i) uma parte relacionada está contratando com o clube e (ii) em quais condições. Essa sugestão deve se aplicar a qualquer relação que envolva o futebol, desde uma simples prestação de serviço a um complexo contrato de fornecimento. O controle desse mecanismo se dá por duas vias: a primeira, como condição de realização do negócio, consiste, conforme já se apontou acima, na aprovação prévia, por um órgão colegiado, de negócios com partes relacionadas. A segunda, de natureza informativa, mediante a instituição de um relatório periódico, que se consolida na prestação de contas anuais, no qual se indica (i) o tipo da relação, (ii) o valor do contrato, (iii) o prazo do contrato, (iv) a justificativa para contratação da parte relacionada, (v) a demonstração de que a contratação se realizou no interesse do clube e em condições de mercado, sem favorecimento ao contratado, e (vi) a data da aprovação e os nomes dos membros do órgão colegiado que participaram da deliberação, e a forma como votaram. Essa proposta pode ser implementada por qualquer clube, imediatamente. Não há necessidade de reforma ou imposição legislativa. Aliás, um clube brasileiro já adotou esse processo por via estatutária e, espera-se, venha a utilizá-lo para trazer transparência e boa governança ao futebol. Trata-se do São Paulo Futebol Clube, e o tema está regulado no artigo 106 do seu estatuto, aprovado na assembleia geral de associados realizada no dia 3 de dezembro de 2016. As letras (m), (n) e (o) do mencionado artigo determinam que compete ao conselho de administração, órgão colegiado formado por nove membros, dentre eles três independentes: "m) Aprovar a celebração de qualquer contrato, de qualquer natureza, de qualquer valor, a ser celebrado com qualquer pessoa que integre o Conselho Deliberativo, o Conselho Consultivo, o Conselho Fiscal, o Conselho de Administração, a Diretoria Eleita, a Diretoria Social ou a Diretoria Executiva, ou que seja um Associado do SPFC"; "n) Aprovar a celebração de qualquer contrato, de qualquer natureza, de qualquer valor, a ser celebrado com qualquer pessoa que seja cônjuge ou companheira, ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 4o grau, das pessoas mencionadas no inciso anterior"; "o) Aprovar a celebração de qualquer contrato com sociedade empresária na qual as pessoas indicadas nas alíneas (m) e/ou (n) sejam controladoras". Aí já se vê que, enfim, as boas práticas de governança, reconhecidas pelo mercado, começam a influenciar o funcionamento da empresa futebolística.
No dia 9 de fevereiro de 2016, o Conselho de Administração do Sporting, de Portugal, emitiu o seguinte comunicado ao público: "Comunicado da Sporting SAD sobre prorrogação do vínculo de William. Nos termos e para efeitos do cumprimento da obrigação de informação que decorre do disposto no artigo 248.º, n.º 1 al. a) do Código de Valores Mobiliários, o Conselho de Administração da Sporting Clube de Portugal - Futebol, SAD informa que o atleta William Silva de Carvalho prorrogou o seu vínculo contratual com a Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD até à época de 2019/2020, fixando-se a cláusula de rescisão em ?45.000.000,00 (quarenta e cinco milhões de euros). Lisboa, 9 de Fevereiro de 2016. O Conselho de Administração". No dia 16 de junho de 2016, o Benfica, outro time de Lisboa, Portugal, emitiu o seguinte comunicado ao público: "COMUNICADO. A Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD, em cumprimento do disposto no artigo 248o do Co'digo dos Valores Mobilia'rios, informa que chegou a acordo com o Atle'tico de Madrid para a transferência a ti'tulo definitivo dos direitos do atleta Osvaldo Nicola's Fabia'n Gaita'n pelo montante de ? 25.000.000 (vinte e cinco milho~es de euros). Mais se informa que o jogador ira' proceder a` realizac¸a~o de exames me'dicos e a` celebrac¸a~o de um contrato de trabalho com o Atle'tico de Madrid. O Conselho de Administrac¸a~o 16 de junho de 2016" No dia 8 de janeiro de 2016, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários ("CMVM"), órgão que regula e fiscaliza o mercado em Portugal, emitiu o seguinte comunicado: "O Conselho de Administração da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) deliberou, nos termos do artigo 214º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 213º do Código dos Valores Mobiliários, a suspensão da negociação das ações do Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD até à divulgação de informação relevante sobre o emitente". (grifou-se) No mesmo dia, o Porto publicou o seguinte comunicado em resposta ao comunicado da CMVM, com o propósito de reverter a suspensão da negociação com ações de sua emissão: "A Administração da FC Porto - Futebol, SAD tomou a decisão de substituir a equipa técnica liderada por Julen Lopetegui. Nesse sentido, o treino desta sexta-feira será orientado por Rui Barros, que assume interinamente a direcção técnica da equipa profissional de futebol. O FC Porto e Julen Lopetegui estão neste momento a negociar os termos da rescisão do contrato". Após o imbróglio de janeiro, o Porto passou por nova reformulação de sua equipe técnica, ocasião em que emitiu o seguinte comunicado, antecipando-se a uma possível ação do órgão regulador: "COMUNICADO. A Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD, nos termos do artigo 248o no1 do Co'digo dos Valores Mobilia'rios, vem informar o mercado que chegou a acordo com o treinador da equipa principal de futebol, Jose' Peseiro, para a cessac¸a~o do seu vi'nculo contratual no final da presente e'poca desportiva. O Conselho de Administrac¸a~o. Porto, 30 de maio de 2016". Todos esses comunicados servem para atender às normas de organização do mercado acionário português. Os três times mencionados se sujeitam a essas normas porque optaram, em algum momento de suas histórias, pela abertura de seus capitais e a consequente captação de recursos junto ao público investidor. A abertura de capital é um ato voluntário do emissor das ações, deliberado pelos seus acionistas. Emissor é a companhia cujas ações são negociadas no mercado. Nos casos em referência, são emissoras as sociedades anônimas desportivas constituídas pelos clubes esportivos Porto, Benfica e Sporting, respectivamente. Além de emissoras, as sociedades anônimas desportivas passaram a exercer a empresa futebolística e são elas, e não os clubes, que entram em campo, disputam campeonatos e, eventualmente, ganham títulos. Os clubes esportivos, por outro lado, continuaram a existir, na qualidade de acionistas das sociedades anônimas desportivas e organizadores de (i) atividades não vinculadas ao futebol e (ii) puramente associativas, de interesse dos associados dos clubes. Em um ambiente de mercado, costuma-se regular a divulgação e o uso de informações, pelas emissoras de valores mobiliários, sobre atos ou fatos relevantes que possam, de algum modo, afetar (i) a cotação das ações e (ii) a decisão de investidores de comprar, vender ou manter valores mobiliários. Esse chassi também está presente na regulação do mercado brasileiro. Por isso, os principais agentes que vierem a participar da criação do novo mercado do futebol para o Brasil, incluindo os clubes (e as futuras sociedades anônimas do futebol, previstas no PL 5.082/16), a CVM e a BMF&Bovespa deverão, para que o processo funcione, refletir sobre as peculiaridades desse novo ambiente e as tradições do futebol, e reconhecer que ajustes serão necessários. Assim, se o regulador quiser tratar o futebol da forma que trata uma indústria ou um banco, dificilmente funcionará. E o motivo é simples: o futebol se sujeita ao assédio de torcedores e jornalistas que, legitimamente, buscam e divulgam a informação com o propósito meramente informativo, sem qualquer pretensão econômica ou especulativa, e a passagem ao modelo de mercado não mudará essa conduta. Por outro lado, os clubes e as futuras sociedades anônimas do futebol não poderão abusar do mesmo argumento, de que o interesse e a cobertura da mídia são incontroláveis, para evitar qualquer tipo de comunicação e deixar rolar a especulação em relação a negócios que possam afetar a cotação de ações. Uma conclusão já se pode extrair desse processo: ele contribuirá para trazer transparência e credibilidade ao futebol brasileiro.
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O football americano e o nosso futebol

Apesar das (inúmeras) diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos, que se expressam em praticamente qualquer aspecto da sociedade, da economia e também do esporte, o futebol americano - que não se compara com o verdadeiro futebol, jogado com os pés - tem algumas lições a ensinar ao Brasil. O esporte não resolverá os problemas éticos e morais que sempre foram tolerados por uma sociedade que, repentinamente, tornou-se intolerante (sem olhar para si e revisitar suas próprias condutas cotidianas), mas pode, como nenhuma outra atividade, servir como elemento de integração e de desenvolvimento social e econômico. No entanto, o nosso futebol não cumprirá essas funções enquanto os modelos de propriedade e de governança permanecerem caracterizados por uma lógica colonial e extrativista. O que fazer e qual caminho seguir são dilemas que não deveriam povoar a imaginação de poucos jornalistas esportivos, sociólogos ou jogadores; esse é um tema que envolve a (re)formação da nação. E, para que se possa chegar às respostas adequadas, não há como deixar de investigar o modelo do esporte mais popular (futebol americano) do país mais poderoso do planeta e, eventualmente, dele extrair alguns elementos que sejam copiáveis ou adaptáveis. O ponto de partida é a edição norte-americana da Revista Forbes, de outubro de 2016. Nela se oferece uma fotografia da economia do football. Destacam-se alguns dados interessantes: 1. Dezoito das quatrocentas pessoas mais ricas do país detêm participação societária relevante no capital de sociedades que atuam no football. 2. Metade da fortuna de dez desses dezoito investidores se deve a esse esporte. 3. Do exercício de 2014/2015 para o de 2015/2016, o valor médio dos times teve um acréscimo de 19%, passando a US$ 2,3 bilhões. 4. Um acordo nacional de difusão garante a cada time, anualmente, antes mesmo que "one ticket, watery beer or replica jersey was sold", o montante de US$ 215 milhões. 5. Desde 1998, ano em que a Forbes começou a avaliar o valor de cada franquia (ou time), a apreciação média do setor foi quatro vezes maior do que a verificada nos ramos imobiliários (housing) e de ações (stocks). 6. Na última década, o controle societário de apenas 5 times foi trocado, revelando, aparentemente, a satisfação de quem está investido. 7. O time mais valioso é o Dallas Cowboys, avaliado em US$ 4,2 bilhões, e o menos valioso é o Buffalo Bills, estimado em US$ 1,5 bilhões. 8. O Dallas Cowboys teve receita, no último exercício, de US$ 700 milhões. 9. Investem no esporte, por exemplo: Paul Allen (Microsoft), no Seattle Seahawks; Stephen Ross (Related Cos.), no Miami Dolphins; Stanley Kroenke (NBA Nuggets, NHL Avalanche e real estate), no Los Angeles Rams; Terrence Pegula (Natural Gas), no Buffalo Bills; Joan Tisch (Loews), no New York Giants; e Robert McNair (Cogent Technologies), no Houston Texans. O ambiente do futebol brasileiro apresenta características diametralmente opostas: 1. Ausência de interesse de investidores, qualificados ou não, incluindo torcedores fanáticos, em investir no futebol. 2. Com a exceção de poucos jogadores, as únicas pessoas que ganham com o modelo vigente são os intermediários, alguns dirigentes que se apropriam das coisas dos clubes e as entidades de administração. 3. Apesar de se tentar estimar o valor dos times, eles, na prática, não conseguem se aproveitar da força de suas marcas para estruturar captações de recursos. 4. A ausência de um mercado de financiamento do futebol reduz o poder de barganha individual e inviabiliza a união dos times para, em conjunto, negociar pacotes de transmissão com as redes de televisão e outros meios, e de direitos perante a CBF. 5. O futebol é considerado pelos governantes uma atividade marginal, sem interesse econômico e social, e não constitui uma alternativa de aplicação da poupança privada. 6. O modelo de propriedade, concentrada na esfera patrimonial de associações civis sem fins econômicos, (i) estimula a apropriação, por poucos dirigentes, das decisões e, eventualmente, de parcela das riquezas dos clubes, (ii) incentiva a manutenção da falta de controle e governança para que o poder interno se concentre em um ou poucos dirigentes e (iii) impede a geração de riquezas por meio da captação de recursos, para emprego no desenvolvimento da atividade futebolística. 7. Ausência de planejamento e recursos para expansão e internacionalização dos produtos do futebol (jogadores, marcas, times, campeonatos, seleção). 8. Certeza de que o ambiente regulatório existente é inviável para formação de um mercado do futebol. É verdade que se está fazendo uma comparação entre esportes distintos. Também é verdade que os mercados e os estímulos de consumo são diferentes. E, também, que a relação que o brasileiro mantém com o seu time é mais afetiva do que comercial. E, ainda, que certas práticas, admitidas no norte, como a venda do time a um dono, sofreriam resistências nessas bandas. Mas não é menos verdade que o futebol no Brasil atrai mais de 140 milhões de torcedores, um número expressivo até para o padrão norte-americano; e que o seu mercado não se limita a esse contingente, abrangendo o público mundial, o que o eleva à casa do bilhão. Seu potencial, assim, é maior do que qualquer um dos principais esportes de massa praticados nos Estados Unidos. Aliás, maior do que todos juntos. O futebol do Brasil, a partir de um modelo de propriedade e de governança próprio, que respeite suas características e certas demandas de seus torcedores, poderia exercer um papel de protagonismo mundial que nenhum outro produto nacional jamais exerceu - ou exercerá. Produto de ponta, e não commodity, como atualmente é tratado. O sucesso dos times e do projeto norte-americanos para o football demonstram, portanto, que o futebol não precisa ser organizado de modo amador e como uma atividade quase folclórica. Demonstra, ainda, que ele pode atrair o interesse de pessoas que dispõem de recursos para financiar sua estruturação e expansão. E, como consequência, inserir-se em um ambiente, um novo ambiente, adequadamente regulado, a partir do qual possa cumprir suas funções econômicas e sociais. Esse é um verdadeiro tema nacional, que deveria atrair a atenção e a indignação do povo, que convive, passivamente, com a expropriação de um bem que, de algum modo, lhe pertence.