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Digitalização e procedimento: debate em torno da herança digital

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Atualizado às 10:59

Nos dias 8 e 9 de novembro último, ocorreu em Karlsruhe, cidade sede dos Tribunais superiores da Alemanha - Bundesgerichtshof (BGH) e Bundesverfassungsgericht (BVerfG) - o Congresso Anual da Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung (DLJV) ou Associação Luso-Alemã de Juristas.

A associação fora criada pelo professor emérito da Universidade de Heidelberg, Erick Jayme, a fim de fomentar o intercâmbio jurídico entre os países de língua germânica e portuguesa.

Atualmente, é presidida pelo prof. Dr. Stefan Grundmann, catedrático da Humboldt Universidade de Berlim, e tenho a honra de ocupar o cargo de Secretária-Geral da associação.

O tema do congresso desse ano foi "Digitalisierung und Verfahren", ou seja, Digitalização e Procedimento. O objetivo era abordar, em última análise, alguns aspectos dos impactos da internet e do desenvolvimento tecnológico no Direito.

Dentre os participantes, professores, advogados e magistrados da Alemanha, Portugal, Brasil e da África portuguesa.

O prof. Ingo Sarlet, da PUC/RS, abriu o Congresso falando sobre o estado atual do Direito ao esquecimento na jurisprudência brasileira, expondo ao público presente, com precisão, os leading cases Aida Cure e Chacina da Candelária.

Em seguida, o prof. Reinhard Singer, titular da Humbold Universidade, abordou os entraves na Alemanha para o processamento do direito dos consumidores na era da digitalização, expondo em detalhes as frequentes operações de cessões das pretensões pelos consumidores a empresas especializadas na cobrança de créditos.

A ministra do BGH, Dra. Johanna Schmidt-Rätsch, que também é professora na Humboldt Universidade, abordou a problemática dos impactos da digitalização no direito obrigacional e processual. Segundo ela, a despeito de todo o desenvolvimento, as decisões automatizadas não são uma realidade na Alemanha, pois as máquinas não conseguem substituir o homem na realização de juízos de valores.

Esse é o mesmo sentir da ministra do BVerfG, Dra. Sibylle Kessal-Wulf, que, após o evento, fez uma belíssima visita guiada no Tribunal Constitucional aos participantes do congresso. Para ela, os juízes são insubstituíveis. Além disso, enquanto funcionários públicos custeados pelo contribuinte, são eles quem devem efetivamente julgar os casos que chegam para análise.

A Prof. Lisiane Wingert Ordy, da UFRGS, fez uma análise sobre processo e digitalização no Brasil, abordando os resultados positivos e negativos após uma década de processo eletrônico.

O prof. Eduardo Vera-Cruz, da Universidade de Lisboa, trouxe um contrapondo sobre o tema digitalização e procedimento à partir do direito angolano, que é fortemente influenciado pelo direito lusitano em razão da colonização. Falar de digitalização do direito em um país onde os estudantes não tem acesso à internet é um contrassenso, mas ao mesmo tempo uma necessidade, diante do processo - em curso - de desenvolvimento do Direito africano.

António Barreto Menezes Cordeiro, professor da Universidade de Lisboa, discorreu, de forma crítica e amparado em sólida doutrina, acerca das controvérsias em torno da natureza jurídica do direito à identidade informacional, mostrando que, sob a ótica da dogmática jurídica, não se pode, de plano, sustentar a natureza de direito fundamental, ao contrário do que apressadamente fazem alguns. Muito ainda há que se discutir a respeito.

Laura Schertel Mendes, professora do Instituto de Direito Público (IDP Brasília), falou sobre decisões automatizadas e os direitos dos jurisdicionados sob uma análise comparativa entre o direito de proteção de dados brasileiro e europeu.

A prof. Dulce Lopes, da Universidade de Coimbra, expos sobre a circulação dos documentos autênticos na União Europeia, abordando os problemas de sua autenticidade e veracidade.

Finalizando, houve um painel sobre os impactos da era digital no direito sucessório.

O dr. Carl Friedrich Nordmeier, juiz em Frankfurt a.M. e profundo conhecedor do direito brasileiro, falou sobre as recentes alterações em nosso direito das sucessões, abordando os reflexos da decisão do STF que equiparou a união estável ao casamento.

A dra. Lena Kunz, Professora em Heidelberg, falou sobre herança digital na jurisprudência alemã, comentando o leading case do assunto, o Caso Facebook (clique aqui), já comentado nessa coluna e decidido em 2018 pelo BGH. Ela é uma das maiores experts do assunto na Alemanha e comenta o tema no famoso comentário ao código civil alemão: Staudinger Kommentar zum BGB, publicado pela prestigiosa editora De Gruyter.

Tive a honra de encerrar o congresso, em mesa com a prof. Lena Kunz e a min. Johanna Schmidt-Räntsch, falando do tema da herança digital no Brasil.

Ilude-se quem pensa que os contratos de uso das grandes plataformas digitais de comunicação, como o Facebook, são gratuitos. Essa suposta gratuidade significa apenas que não há contraprestação em dinheiro.

Os contratos de uso de plataformas digitais se caracterizam pela existência do sinalágma prestação versus contraprestação.

De um lado, a empresa "cede" o uso da plataforma digital ao usuário e esse, de outro, cede gratuitamente o uso de todos os seus dados pessoais, os quais são lidos, analisados e processados pelos mais modernos programas e transformados em rico material comercializável.

Os dados pessoais viraram a moeda de troca ou o ouro do século 21.

Não se tratam de informações avulsas sobre um indivíduo, mas sim do perfil com as ideias e as preferências de bilhões de usuários da rede, os quais são comercializador para empresas que oferecem os mais variados tipos de produtos e serviços.

É ledo engano pensar que a exigência de criação de username e password visa proteger a privacidade do usuário. Isso visa, ao contrário, garantir a segurança da rede como um todo.

Nada tem a ver, portanto, com uma preocupação de proteger a intimidade e privacidade dos usuários. Menos ainda objetiva impedir os herdeiros de acessar a conta do titular falecido.

Tanto isso é verdade que os contratos de uso de plataformas são celebrados na internet sem qualquer consideração à pessoa do usuário, inclusive sem sequer a verificação acerca da (real) identidade do usuário. Os inúmeros perfis falsos o comprovam.

Não se sustenta, portanto, a ideia difundida pelos grandes conglomerados digitais de que o usuário tem uma expectativa maior de sigilo e privacidade no mundo digital que no analógico, pois enquanto no mundo digital suas correspondências seriam protegidas por senhas, no mundo físico ele sabe que cartas e diários serão transmitidos com a morte aos herdeiros.

A rigor, isso não passa de uma falácia, porque há milênios a humanidade conhece o fenômeno da sucessão hereditária, cuja função, aliás, não se limita à transmissão patrimonial, mas visa também garantir clareza e segurança jurídica.

Os conglomerados digitais não têm legitimidade para, afastando o princípio da sucessão universal, criar um cemitério digital, a cuja portão apenas eles têm a chave que - diga-se de passagem - dá acesso a um tesouro inestimável.

Assim, os contratos de uso de plataformas digitais são transmitidos automaticamente aos herdeiros do usuário falecido, que assumem sua posição jurídica e adquirem, dessa forma, o direito de ter acesso à contas dos perfis do de cujus.

Do contrário, todo o conteúdo lá armazenado - inclusive o conteúdo pessoal (existencial), como fotos, mensagens e vídeos íntimos - ficariam sob o poder do Facebook ou de qualquer outro gigante digital.

E o ordenamento jurídico brasileiro (a rigor, ocidental) não fornece qualquer subsídio que indique ter o Facebook maior legitimidade que os herdeiros para se apropriar do conteúdo existencial de seus usuários ou de decidir o destino dele.