Regime jurídico dos bens públicos empregados na geração de energia

   

Floriano de Azevedo Marques Neto*

 

O presente estudo versa sobre questões relacionadas à exploração de potencial hidrelétrico para construção de uma Pequena Central Hidrelétrica – PCH e aos aspectos jurídicos envolvidos na conseqüente utilização dos bens públicos concernentes a esse potencial.

 

Há algum tempo, estuda-se o aproveitamento do potencial hidrelétrico localizado no Rio Taquari, estado do Rio Grande do Sul. Tal potencial não é proporcionado exclusivamente pelas condições hidrológicas ou topográficas, mas decorreria da construção da Barragem-Eclusa de Bom Retiro. Do represamento das águas, necessário à construção daquela infra-estrutura - voltada a viabilizar o transporte hidroviário -, proveio o potencial de geração de energia com aproveitamento inferior a 30.000 KW. Tal barragem-eclusa, por  se tratar de infra-estrutura

 de transportes aquaviários, tem sua regulação situada no âmbito do Ministério dos Transportes e sua administração cometida a Concessionária de Serviço Público.  

Os estudos e projetos necessários à viabilização da exploração do referido potencial hidrelétrico, já se encontram ultimados. O projeto básico do empreendimento foi inclusive aprovado pela ANEEL. Licenças ambientais (prévia e de instalação) encontram-se expedidas. Áreas lindeiras ao trecho do rio, onde dar-se-ia a sobredita exploração, foram adquiridas ou objeto de cessão de direitos.

 

Como a exploração daquele potencial de geração de energia envolve uso secundário de bens afetos à área de transportes, foram desenvolvidas tratativas com o Ministério dos Transportes e com a Concessionária. Chegou-se a entabular um Termo de Cooperação Técnica, envolvendo até a ANEEL. No curso destas negociações, as autoridades do setor de transporte e a concessionária dos serviços públicos estabeleceram uma série de exigências que devem ser observadas para que a exploração do potencial hidráulico não prejudique a utilização da barragem-eclusa em sua função primacial (viabilizar o transporte hidroviário).

 

Porém, ainda segundo elementos informativos que me foram fornecidos, a ANEEL e a Consultoria Jurídica do Ministério de Minas e Energia posicionaram-se contrariamente à outorga de autorização para exploração daquele potencial hidrelétrico, entendendo que sua exploração dependeria de concessão precedida de licitação. Isso malgrado o Ministério dos Transportes, até por intermédio de sua douta Consultoria Jurídica, ter se manifestado no sentido de não ver óbice em que a ANEEL autorizasse a exploração nos termos dos marcos regulatórios do setor elétrico, desde que observadas as referidas condições que preservassem a navegabilidade daquele curso d’água.

 

ANEEL e MME, respectivamente por intermédio de sua Procuradoria-Geral e Consultoria Jurídica, vislumbraram óbices jurídicos não substancialmente distintos e que podem ser sumulados da seguinte forma:

 

i.        o potencial de energia hidráulica em referência não cuida de potencial hidráulico natural mas decorre de obra pública, o que afastaria a aplicação do regime de autorização previsto nos marcos regulatórios do setor elétrico;

 

ii.       seria “juridicamente frágil” o empreendimento se amparado por mera autorização do Ministério dos Transportes, sendo, pois, necessária a outorga de concessão do direito de uso da barragem-eclusa, necessariamente precedida de licitação;

 

iii.      tal licitação seria imprescindível também por “envolver interesses de terceiros”’;

 

iv.      a UHE Bom Retiro fora incluída no Programa Nacional de Desestatização como objeto de futura licitação para sua concessão, o que interditaria a sua exploração mediante simples autorização da ANEEL.

 

É nestes quadrantes de renhido debate jurídico que passo a abordar a matéria. De modo a tornar mais objetivo o presente trabalho, creio que pode-se resumir toda a questão nas seguintes indagações:

 

1.      É correto o entendimento de que na exploração do potencial hidráulico de Bom Retiro do Sul, no rio Taquari, RS, estão envolvidos dois bens públicos distintos ?

 

2.      O fato do potencial hidráulico não decorrer das condições naturais do curso d’água e sim da construção prévia de uma barragem-eclusa afasta o regime legal de autorização presente nos marcos legais do setor elétrico ?

 

3.      A expedição de autorização pelo MT, ensejando a utilização de água represada pela barragem-eclusa para exploração do potencial hidráulico a ela inerente, predicaria alguma fragilidade jurídica para o empreendimento ?

 

4.      A inclusão anterior da UHE Bom Retiro no Programa Nacional de Desestatização - PND - teria o condão de obrigar que o direito de exploração daquele potencial hidráulico seja necessariamente objeto de concessão ?

 

5.      À luz das respostas anteriores, é lícito sustentar que o  direito de exploração do potencial de geração hidráulica em apreço possa ser outorgado sem necessidade de prévia licitação pública?

 

Antes de passar ao desenvolvimento da argumentação que, a meu ver, suporta as respostas, cumpre-me registrar que os temas postos já foram percuciente e exaustivamente enfrentados pelos diletos colegas David Waltemberg e Ives Gandra da Silva Martins. Os dois ilustres juristas, cada qual a seu tempo, deram respostas eruditas e insuperáveis para as questões enredadas. A precedências de tais dois escólios facilita sobremaneira a empreitada ora a meu cargo, tornando-a até despicienda não fosse ainda perdurar, no âmbito da administração federal, alguma polêmica em torno das opiniões antes proferidas. Deste modo, se aqui não farei remissões constantes aos pareceres referidos, não é por desconsiderá-los ou deles discordar. É simplesmente porque imagino a utilidade do presente trabalho em agregar meu entendimento àqueles, palmilhando caminho diverso, mas chegando ao mesmo ponto de conclusão. Ao trabalho.

 

Dar resposta suficiente às questões postas envolve enfrentar o instigante, mas nem sempre assaz desenvolvido, tema do uso privativo de bem público por particular. Creio serem necessárias reflexões sobre os seguintes temas: i) natureza jurídica dos bens envolvidos; ii) os diversos institutos aptos a outorgar o direito de uso privativo de bem público por particular (autorização, permissão e concessão), especialmente nos setores regulados; iii) a possibilidade de usos múltiplos sobre um mesmo bem público (uso primário e usos secundários); iv) as conseqüências jurídicas das mudanças legislativas no âmbito do PND; v) a relação entre a AGU e as autarquias de regime especial. Creio que, após deitar alguma atenção sobre estes temas, será possível responder tranqüilamente às perguntas antes formuladas.

 

I. NATUREZA JURÍDICA DOS BENS EM APREÇO

 

I.1. É fora de dúvidas que os potenciais de energia hidráulica constituem bens públicos da União. Isso vem expresso no artigo 20, VIII, da Constituição1. Temos, pois, que a capacidade de geração de energia originada dos potenciais hidráulicos, qualquer que seja o recurso hídrico em que esteja alocado (mesmo que se trate de cursos d’água que não sejam de titularidade da União), será um bem público e integrará o plexo patrimonial da União. É dizer: o fato de, num curso d’água, existir um potencial de geração de energia (capacidade potencial de aproveitamento para geração de energia por meios hidrelétricos), faz surgir um bem pertencente à União e explorável apenas por ela, direta ou indiretamente2.

 

I.2. Previu, portanto, a Constituição um regime de autonomização do potencial hidroenergético em relação tanto a) à titularidade dos bens públicos (recursos hídricos) em que se situam – pois que o potencial de geração de energia pertence à União independente de qual ente federado é titular do recurso hídrico -- quanto b) ao direito de propriedade dos bens em torno dos quais se aloca tal potencial. No primeiro caso, isso decorre da previsão constante do rol do artigo 20, em que os recursos hídricos foram tratados em separado do potencial hidroenergético. No segundo, deflui do constante no artigo 176 da CF, onde está consignado o regime de propriedade destes recursos de forma independente da propriedade do solo3.

 

I.2.1. Portanto, temos que o potencial de energia hidráulica tem uma natureza autônoma em relação aos bens materiais a eles relativos. Se um rio nasce e deságua dentro de um mesmo Estado da federação e possui potencial de hidroenergético, ter-se-á sobre este recurso natural dois bens distintos, sujeitos a autônomos regimes de titularidade. Neste exemplo, o recurso hídrico pertencerá ao domínio do Estado membro4 que a ele poderá dar vários usos possíveis, respeitados os ditames da Lei nº 9.433/97. Já o potencial hidráulico para os fins de geração de energia elétrica, pertencerá à União e somente ela poderá explorá-lo nos termos do artigo 21, XII, b, da CF.

 

I.2.2. Ao estabelecer que os potenciais de energia hidráulica “constituem propriedade distinta da do solo” a Constituição operou um profundo corte no regime de propriedade, outorgando à União a prevalência da propriedade destes potenciais por sobre mesmo ao direito de propriedade constitucionalmente assegurado (cf. artigo 5º, caput, e artigo 170, II). Ainda que o potencial hidroenergético pudesse ser considerado como integrante da propriedade (nos termos do artigo 524 do CCB5), a Constituição segregou tal potencial como um bem autônomo, cujo domínio independe da titularidade do bem material, imóvel, ao qual está atrelado.

 

I.2.3. Esse entendimento exsurge ainda mais patente à luz do artigo 21, XII, b, já citado, quando lembramos lá estar prevista a competência material da União para explorar os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos d’água em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos.

 

I.2.4. Ou seja, no regime da Constituição vigente, há um bem público autônomo aos recursos hídricos e à propriedade imobiliária por ele eventualmente afetada que é o potencial hidroenergético. Este bem pertence à União a quem exclusivamente compete explora-lo, direta ou indiretamente, nos termos e regimes predicados no artigo 21, XII, da CF. Note-se: é bem da União não o rio ou curso d’água, mas o potencial hidroenergético, bem intangível (porquanto imaterial e autônomo em relação aos bens que lhe conformam e caracterizam) porém dotado de conteúdo econômico.

 

I.3. Bens públicos também são todos aqueles que pertençam ou venham a ser adquiridos por qualquer ente federado6. Há, sabemos todos, bens que são públicos pela sua própria natureza (é dizer, aqueles que não comportariam titularização privada), como são o mar territorial, os rios, a plataforma continental, o espectro de radiofreqüência, as posições orbitais, etc.7.

 

Outros, embora pela sua natureza admitissem a titularidade privada, integram o domínio público: i) por aquisição imemorial (por exemplo, as terras devolutas); ii) por instrumentos de aquisição próprios ao regime de direito público (desapropriação, herança jacente, confisco8, reversão de bens ao final da concessão de serviços públicos); iii) ou ainda por institutos comuns ao direito privado (p.e., permuta, doação fora dos processos de parcelamento do solo, dação em pagamento9, compra e venda).

 

I.4. No mais das vezes as obras públicas se alocam sobre bens públicos (de uso comum ou de uso especial), incrementando-lhes o seu uso (como quando se procede uma obra viária já sobre um logradouro público) ou conferindo a estes bens uma afetação específica (como quando se constrói um ponte ligando as margens de um rio).

 

I.4.1. Nesta segunda situação, pode ocorrer que uma determinada obra pública (entendida como qualquer intervenção realizada, direta ou indiretamente, com recursos públicos10 ou conversíveis a tal11), ao ser executada num bem público, altere-lhe a destinação. É o que ocorrerá se um alcaide resolver construir uma enorme avenida dentro de um parque. Embora aquele próprio siga sendo um bem público de uso comum, no terreno onde se construir a avenida haverá a transfiguração do parque (bem público destinado ao lazer de toda gente) em uma via pública (bem público destinado à circulação de veículos). Em outras situações há uma transformação ainda mais significativa, passando o bem de uso comum a um uso especial. É o que ocorreu no Parque do Ibirapuera em São Paulo quando nele foram edificados pavilhões destinados a funcionar como museus, sede da Prefeitura e mesmo repartições públicas.

 

I.4.2. Porém, em outras situações, a edificação de uma obra pública não altera a destinação do bem, nem transforma o seu uso. É o que ocorre quando a obra inaugura um outro uso, suplementar ou ancilar ao uso original, que não resta substancialmente alterado ou desnaturado. É, por exemplo, o que ocorre quando se implanta um determinado mobiliário urbano (v.g., um abrigo de ônibus) num logradouro público. A rua não deixará de ser rua (bem público de uso comum do povo e finalidade primacial para a circulação de pessoas), mas ser-lhe-á agregado um uso não prejudicial naquele ponto específico (abrigar os usuários dos transportes coletivos, protegendo-os das intempéries).

 

I.5. Pois bem. Postas estas notas acerca do regime de bens públicos na Constituição e no direito pátrio, posso já registrar meu entendimento sobre a natureza dos bens públicos envolvidos neste estudo. No caso, estamos diante de três bens públicos distintos. Dois bens de uso especial (o potencial hidráulico e a barragem-eclusa), alocados num bem de uso comum do povo (o Rio Taquari).

 

I.5.1. O potencial hidroenergético, assim como os recursos minerais, é bem público pela própria natureza, mas que não pode ser classificado como de uso comum do povo. Sua única utilização possível é incompatível com a fruição geral de toda gente. A única finalidade que lhe pode ser dada já vem predicada na sua definição: gerar energia a partir de processo hidroelétrico12. Ou sê-lhe dá esta finalidade ou tal bem não se constitui enquanto tal, permanecendo mera possibilidade (potencial, como o nome diz). Se aproveitado, este bem público, poderá integrar a infra-estrutura de produção de energia. É bem que pertence ao domínio da União por definição constitucional expressa (artigo 20, VIII) e cuja administração se insere dentro das competências da ANEEL por disposição legal (artigo 3º, I, da Lei nº 9.427/96).

 

I.5.2. Já a barragem-eclusa é um bem público de uso especial constituído a partir da execução de uma obra pública. Sua finalidade específica, primacial, é permitir condições de navegabilidade hidroviária naquele ponto do Rio Taquari. Como tal, integra a infra-estrutura dos transportes aquaviários do país. É um bem integrante do patrimônio da União por disposição constitucional genérica (artigo 20, I) e que se encontra sob administração de concessionária dos serviços públicos portuários (CODESP), malgrado sua gestão se encontrar sob a égide do Ministério dos Transportes (artigo 77 do Decreto-lei nº 9.760/46). Insista-se que a barragem-eclusa (bem material que não se confunde com o recurso hídrico Rio Taquari) tem por finalidade específica permitir o uso daquele curso d’água na navegação fluvial e que não é por outra razão que tal bem (fundamentalmente as obras públicas realizadas para este fim específico) encontra-se sob administração do MT e operação de concessionária de serviços de transporte aqüaviário.

 

I.5.3. Por fim, há um terceiro bem público envolvido, do qual não podemos esquecer. Arrolar este terceiro bem, antes de dificultar o deslinde da questão, serve, afortunadamente, para facilitá-lo. Estou me referindo ao próprio rio Taquari. Pelo que depreendi dos elementos que me foram trazidos, trata-se de bem público do domínio hídrico do Estado do Rio Grande do Sul, já que este curso d’água nasce e deságua nas terras gaúchas. Como todos os rios, o Taquari se constitui como um bem público de uso comum13, malgrado este uso esteja sujeito a condicionantes regulamentares14, geográficas e ambientais15.

 

I.6. Da mesma forma como o potencial de energia hidráulica (bem público da União) não se confunde com o recurso hídrico específico de que depende sua existência (bem público do Estado do RS), submetendo-se cada qual a um regime próprio de administração e uso (ressalvado o dever de articulação entre os entes federados previsto no artigo 21, XII, b, da CF), quer me parecer também inconfundíveis o potencial hidroenergético e a infra-estrutura de transportes hidroviários ali alocada pelo MT ou pela Concessionária.

 

I.6.1. A existência de um potencial energético de um curso d’água (admitindo-se, por agora, como válida a distinção entre estes potenciais -- diz-se alhures -- naturais e aquel’outros fruto da empreitada humana) depende, por óbvio, da existência de outro bem público (o curso d’água), o qual pode pertencer a outrem que não a União. E isso não predicará qualquer alteração no regime constitucional e legal previsto para utilização deste bem (potencial hidroenergético). Isso porque a Constituição ao separar, no seu artigo 20, as duas classes de bens (de domínio hídrico e o potencial de energia hidráulica) foi sábia e clara: o potencial de aproveitamento energético é bem autônomo e independente dos recursos materiais que lhe tornam possível (existente enquanto potencial).

 

I.6.2. Mais ainda. Lembremos que a Constituição (cf. artigo 176, caput) assegurou que o potencial de energia hidráulica (bem autônomo da União) independe mesmo da propriedade imobiliária sobre a qual ele se verifique (“os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo”), subtraindo a possibilidade de exploração destes potenciais do direito de propriedade dos titulares dos imóveis (solo) onde eles se verifiquem. Ora, se a Constituição foi tão adiante, nenhum sentido haveria em condicionar o regime de exploração do potencial hidroenergético ao regime de uso de um bem acessório (a barragem), só porque foi ela construída com recursos da União.

 

I.7. Interpretar a Constituição é algo muito sério. Perigoso mesmo. Ao fazê-lo, o jurista deve ter em mente consciência das conseqüências de uma exegese mais descomprometida ou de uma teleologia por interesses. Deve se haver refletindo sempre sobre as conseqüências de uma ou outra linha hermenêutica. O teor do artigo 21. VIII, não dá margens para dúvidas, mitigações, restrições ou distinções. Onde o legislador não destinguiu não cabe ao intérprete fazê-lo (ubi lex non distinguit nec interpes distinguere debet).

 

I.7.1. Pela Constituição são bens da União (inconfundíveis com os bens imóveis onde se situam) os potenciais de energia hidráulica. Ou seja: essa classe de bens é constituída não pelos bens materiais que possibilitam a exploração desse potencial. Não. São bens da União as condições geográficas, geológicas, topográficas, hídricas, ambientais, naturais ou não, que podem, em tese, ser utilizadas para gerar energia elétrica por processos hidráulicos. Se tal potencial existe exclusivamente em função das forças da natureza ou se teve a participação do homem (com recursos públicos, privados, pouco importa), a Constituição não diferencia. Havendo potencial hidroenergético, estaremos diante de um bem da União, segregado dos bens que lhe suportam e passível de ser só por ela explorado, direta ou indiretamente.

 

I.7.2. Consigne-se que a ação humana apenas irá criar condições para que o potencial hidroenergético seja melhor explorado. Será sempre a natureza quem conferirá a uma dada conformação geográfica a possibilidade (potencial) dela se extrair energia hidráulica. Se se fez uma barragem e esta enseja a possibilidade de geração de energia, é porque naquela localidade havia um potencial (capacidade de geração in fieri) hidroenergético. A construção da barragem não se confundirá com o potencial de produção de energia por processo hidráulico. A obra humana não cria tal potencial. Incrementa-o, potencializa-o, o faz avultar. Mas não o faz surgir do nada. Naquela conformação hidrológica já existia um potencial de geração de energia (por si um bem público da União), utilizável de forma autônoma aos bens que lhe viabilizam a exploração.

 

I.8. Note-se que o que constitui bem da União não é a energia que será gerada. É o potencial de geração de energia, quaisquer que sejam os fatores (naturais ou não) que o propiciam. Portanto, todas as obras, equipamentos, meios, investimentos, obras que se realizem e que favoreçam a exploração de um potencial hidroenergético serão ancilares, acessórias a este.

 

I.8.1. O potencial de energia hidráulica, como bem público da União - objeto de expressa e específica referência constitucional -, ditará o regime de utilização e exploração destes bens abjetos. E isso porque, fundamentalmente, sua exploração haverá de se dar de forma autônoma e independente. É, pois, o regime de exploração dos potenciais hidroenergéticos que ditará o regime de utilização dos bens materiais (recursos hídricos, propriedade do solo ou obras e equipamentos) que lhes são inerentes ou ancilares. Não o contrário.

 

I.9. Tenho como certo, portanto, que existem enredados naquele ponto do Rio Taquari três bens públicos distintos, de titularidade diversa e exploráveis (ou utilizáveis, se pensarmos em uso sem conteúdo necessariamente econômico) a partir de regimes jurídicos distintos. Isso inobstante a existência de cada um destes bens se imbrique na dos demais. Da mesma forma que é impensável a existência de um potencial hidroenergético sem um recurso hídrico (o rio ou curso d´água), pode-se ver relação de interdependência entre este mesmo potencial e a obra pública já construída para represamento das águas16.

 

I.9.1. A imbricação (poderíamos dizer até interdependência) entre estas três classes de bens não é suficiente para elidir duas características essenciais i) que se trata de bens distintos, sendo o potencial de energia hidráulica um bem imaterial associado aos bens materiais que lhe dão suporte físico, mas distinto e autônomo em relação a eles; ii) que se trata de bens com destinações e finalidades distintas, as quais predicam o regime jurídico de sua exploração.

 

I.10. Em assim sendo, o uso de cada bem seguirá um regime jurídico próprio e inconfundível com aquele atinente aos demais. Poderá haver a necessidade de concatenação dos usos para que um não elida o outro. Poderá, ainda, se falar em obrigações de compensação, de modo a que aquele que explora um dos bens compense o explorador de outro, neutralizando eventual oneração ou apropriação desigual de benefícios. Entretanto, descabe falar que o regime jurídico do uso de bem subsuma às regras de utilização de outro.

 

II. O USO PRIVATIVO DE BEM PÚBLICO POR PARTICULAR

 

II.1. Vários são os institutos jurídicos que permitem conferir a um particular o direito de uso privativo17 de um bem público. Odete Medauar18 lista oito instrumentos jurídicos aptos a ensejar que sobre um bem público recaia alguma utilização privativa (especial) pelo particular. São eles: i) a autorização de uso; ii) a permissão de uso; iii) a concessão de uso; iv) a concessão de direito real de uso; v) a locação; vi) o arrendamento; vii) o aforamento ou enfiteuse; viii) a cessão de uso.

 

II.2. Os três primeiros institutos encontram referência no texto Constitucional, de forma assistemática, e tiveram seus contornos inicialmente delineados na doutrina e, mais recentemente, em legislações específicas. O quarto veio tipificado originalmente no Decreto-lei nº 217/67, contando posteriormente com referência na Lei de Licitações (cf. artigo 17, I, f). Os quatro últimos tiveram sua referência original no Decreto-lei nº 9.760/46 e remanesceram desde então no direito positivo, malgrado com utilização cada vez mais rara19. O instituto da enfiteuse ou aforamento em particular veio a ser recentemente tratado pela Lei nº 9.636/96 (artigos 99 a 124), assim como também a cessão (artigo 18).

 

II.2.1. Cumpre asseverar, como se necessário fosse, que estamos tratando aqui de instrumentos de uso privativo que não se confundem com instrumentos de alienação dos bens do domínio público. No direito de uso o particular beneficiário tem em seu favor outorgado um privilégio na utilização do bem público (o que pode se dar por prazo certo ou indeterminado), porém não assume o domínio do bem, que sequer é público e sujeito ao regime derrogatório do direito privado. Maria Sylvia Zanella Di Pietro20 é quem melhor define o uso privativo: “Uso privativo, que alguns denominam de uso especial, é o que a Administração Pública confere, mediante título jurídico individual, a pessoa ou grupo de pessoas determinadas, para que o exerçam, com exclusividade, sobre parcela de bem público”. Neste sentido é que vai a prescrição constante do artigo 18 da Lei nº 9.433/97, que prevê expressamente que a outorga do direito de uso de recursos hídricos “não implica a alienação parcial das águas, que são inalienáveis”, importando no simples direito de uso.

 

II.3. Mais comuns (e, de resto, relevantes para o presente) são os instrumentos gerais de outorga de uso privativo: a concessão, permissão e autorização, com destaque para o primeiro e o último em torno dos quais ora se debate no presente estudo. Malgrado freqüentarem todos os manuais de direito administrativo e a praxe da Administração Pública, estes institutos geram controvérsias e imprecisões. Isso fundamentalmente pelo fato de não ter o direito positivo precisado (como fez, por exemplo, com a concessão de serviços públicos) os contornos do regime jurídico de cada qual.

 

II.4. Na ausência de prescrições no direito positivo, a doutrina cuidou de construir a definição do que seriam os regimes de autorização, permissão e concessão de uso de bens públicos. Fiquemos aqui apenas na apresentação dos contornos dos dois instrumentos em torno dos quais se controverte no presente.

 

Assentou-se, então, o entendimento de que, regra geral, a autorização seria um ato administrativo, unilateral por excelência, discricionário e precário, pelo qual a Administração, a critério seu, franquearia ao particular, por prazo necessariamente curto, o uso privativo de qualquer tipo de bem21.

 

Já a concessão de uso teria natureza contratual (ato bilateral), não teria caráter discricionário (em regra carecedor de prévio certame licitatório) nem precário (pois estabilizado durante o prazo de vigência do contrato). Por meio dela (concessão) se outorga ao particular o direito de uso privativo, por prazo certo e determinado, de um bem público (de qualquer tipo). Imperativo notar que estas definições vieram construídas na doutrina e se consolidaram sem, contudo, serem patenteadas no âmbito do direito positivo.

 

II.5. Sem embargo, a doutrina não é fonte do direito. Por mais que os escólios doutrinários balizem a interpretação da norma e guiem a sua aplicação, a definição doutrinária não tem caráter vinculante ao intérprete. Menos ainda ao legislador. E nos últimos tempos o direito positivo passou a, em algumas legislações específicas, prever regimes especiais de autorização de uso de bem público apta a esvaziar o seu caráter precário e discricionário que se lhe era conferido pela doutrina.

 

II.5.1. Assim aconteceu, por exemplo, com a autorização de uso de recursos de radiofreqüência pela Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações) que expressamente cunhou definição discrepante daquela encontradiça na doutrina22.

 

II.5.2. Igual ocorreu no setor elétrico. O artigo 26 da Lei nº 9.427/96 (alterada posteriormente pela Lei nº 9.648/98) adotou o instituto da autorização para outorgar aos particulares o direito de exploração (uso privativo com finalidade econômica) dos potenciais hidroenergéticos até uma determinada potência (originalmente até 10.000 KW e posteriormente elevada até a potência máxima de 30.000 KW). E, obviamente, ao fazê-lo, previu alguma estabilidade jurídica ao particular, pois o autorizatário haverá de fazer vultosos investimentos para explorar o potencial de geração de energia por processos hidráulicos (o bem público objeto da autorização).

 

II.5.3. Vê-se, pois, que o regime de autorização de uso de potenciais hidroenergéticos para fins de geração de energia recebeu, nos marcos legais do setor elétrico, um tratamento discrepante da precariedade que lhe era conferida pela doutrina. Tanto que o artigo 10 da Lei nº 9.074/95 previu que a ANEEL poderia declarar de utilidade pública, para fins de desapropriação, as áreas necessárias à implantação de instalações de autorizatários de energia elétrica, em típica disposição que predica um regime de reversibilidade dos bens subjacentes à autorização23. E, no tocante às autorizações para geração independente ou por autoprodutor, a regulamentação preconizou um regime de reversão de bens e o direito do interessado (autorizatários) de receber indenização por “investimentos não amortizados”24.

 

II.6. Fato é, portanto, que, na ausência de normas gerais definindo o regime jurídico da outorga de direito de uso privativo de bem público ou precisando quais sejam os contornos de cada um dos institutos que lhe dão ensejo (concessão, permissão, autorização), o intérprete deverá buscar tais limites e condicionantes dentro do sistema jurídico e regulatório de cada setor. No caso do setor elétrico, estes contornos provêm já da própria Constituição.

 

II.6.1. O artigo 21, XII, predica a competência material da União para explorar os serviços (atividades), instalações e potenciais energéticos dos cursos d´água (bens) mediante concessão, autorização ou permissão. Daí decorre que a exploração dos potenciais energéticos (bens públicos ao lume do artigo 20, VIII, da mesma CF) admite o regime de concessão, permissão ou autorização conforme a lei viesse a definir.

 

II.6.2. Ainda na Constituição encontramos previsto no artigo 176, § 1º, que o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica (ou seja, todos os potenciais decorrentes de recursos hídricos -- cursos d´água ou não -- aptos a gerar energia elétrica) “poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União”. Daí advém que, pela Constituição, haveria dois regimes reservados para outorgar ao particular o direito de uso privativo do bem público potenciais de energia hidráulica: a concessão ou a autorização.

 

II.6.3. Parece-me, nesta toada, absolutamente insustentável o entendimento de que a Constituição reservaria a possibilidade de recurso ao regime de autorização apenas para a exploração de potencial hidroenergético originado de curso d´água, determinando a outorga de concessão para as situações em que tal potencial não fosse “natural”, seja qual for a acepção dessa naturalidade. A menos que, por distração ou distorção hermenêutica, se queira obumbrar a existência de um parágrafo primeiro no artigo 176 da Carta, parece-me que a única interpretação possível vai exatamente em sentido contrário. A expressa possibilidade de exploração de potencial de energia hidráulica (mesma expressão que o constituinte utilizou para definir, no artigo 21, tal potencial como bem público da União) mediante autorização ou concessão (artigo 176, parágrafo único) afasta cabalmente tal entendimento25.

 

II.7. Por seu turno, a lei ordinária (inicialmente a Lei nº 9.074/95 -- artigo 7º --, depois a Lei nº 9.427/96 -- artigo 26 -- e posteriormente a Lei nº 9.648/98) foi definindo os contornos de quais os potenciais hidráulicos cuja exploração dar-se-ia mediante autorização e não concessão. E nunca o fez segregando potenciais naturais de potenciais artificiais (até porque, ressalte-se, mesmo que incrementados ou facilitados pela indústria humana, o potencial hidroenergético sempre decorrerá de condições naturais).

 

II.8. Analisando estes marcos legais e constitucionais, verifica-se que nada há em lei ou na Constituição que determine ser a autorização necessariamente precária e vulnerável. Na doutrina mais abalizada, por seu turno, colhe-se entendimento exatamente em sentido contrário.

 

II.8.1. Mais uma vez, recorremos ao ensino de Maria Sylvia Zanela Di Pietro que assevera: “Diante, pois, do direito positivo brasileiro, inegavelmente a autorização de uso privativo pode ser conferida com ou sem prazo, dando margem à classificação, adotada por José Cretella Júnior, entre autorização qualificada e autorização simples. A primeira é a que se outorga com prazo assinalado e, a segunda, sem qualquer prazo.”

 

Na seqüência, o ensino é ainda mais veemente: “A fixação de prazo, em muitos casos, tira à autorização o caráter de precariedade que permite à Administração utilizar-se da faculdade de revogação, ad nutum, do ato de outorga. Na autorização qualificada, confere-se ao uso privativo certo grau de estabilidade, uma vez que se vincula a Administração à obediência do prazo por ela mesma estabelecido, e cria-se, para o particular, direito público subjetivo ao exercício da utilização até o termo final previamente fixado; em conseqüência, se razões de interesse público obrigarem à revogação extemporânea - .... – ficará o Poder Público sujeito ao pagamento de importância correspondente à diminuição patrimonial sofrida pelo usuário, em decorrência do sacrifício de seu direito.”

 

II.9. Nenhum sentido há, portanto, em dizer que a autorização fragilizaria o empreendimento. Da mesma forma que a autorização de uso de bem público potencial hidroenergético não só é prevista na constituição e na legislação do setor elétrico como cabente à espécie e que ela não impede que investidores disponham-se a construir pequenas centrais hidrelétricas (fazendo significativas inversões), igualmente me pareceria descabido dizer que uma autorização de uso (secundário) de outro bem público, ancilar ao potencial hidrelétrico, pudesse ser inquinada de frágil, precária ou instável. Se o recurso ao instituto de autorização conferisse, de per se, uma fragilidade institucional e jurídica, isso aplicar-se-ia, então, a todos os potenciais inferiores a 30.000 KW. Seriam empreendimentos frágeis praticamente todas as PCH´s objeto de outorga pela ANEEL.

 

II.10. O que prediz a maior ou menor precariedade ou fragilidade de uma autorização não é o fato de não ser ela uma concessão ou de parte da doutrina vir repetindo, inadvertidamente, ao longo do tempo, que autorização é “discricionária, precária ou instável”. Se a autorização for conferida com prazo certo, compromissos de investimento, obrigações para o particular, cláusulas de reversão e indenização, procedimentos para sua extinção, etc. (como, insisto, permitem os marcos regulatórios do setor elétrico), restará esvaziada a aludida fragilidade do instituto.

 

II.10.1. Doutra forma dizendo: nada impede que (como faz já a ANEEL), a administração pública federal outorgue uma autorização qualificada (para utilizar o termo de Cretella Jr., recuperado por Maria Sylvia) para uso dos bens cuja utilização se faz necessária à exploração do potencial hidroenergético em apreço, vinculando essa autorização à própria autorização de exploração do potencial, como adiante exporei.

 

II.11. Temos, portanto, que, ao contrário do que poder-se-ia imaginar, a partir de uma leitura mais apressada da doutrina, o direito positivo não estabeleceu uma hierarquia entre os institutos da concessão e da autorização. Sendo, como de fato são, instrumentos para outorga do uso privativo de bens públicos por particulares, poderão ser eles utilizados na forma que a lei predisser. E a legislação aplicável ao setor elétrico não interdita, muito ao contrário, a outorga de autorização para exploração de potencial (genericamente tratado) hidroenergético, nem confere a este instituto precariedade ou instabilidade imaginada.

 

III. A POSSIBILIDADE DE MÚLTIPLOS USOS SOBRE UM MESMO BEM PÚBLICO

 

III.1. Vimos no tópico primeiro que, em torno da questão, estão enredados três bens públicos distintos (o curso d´água -- Rio Taquari --, a barragem-eclusa e o potencial hidroenergético). Já no tópico segundo, vimos que o uso privativo de bem público pode ser outorgado mediante vários instrumentos jurídicos distintos e que o regime de concessão ou de autorização de uso, para além das tertúlias doutrinárias, poderá ser adotado nos termos e condições que predisser a lei aplicável a cada classe de bens. Cumpre, agora, analisar como se relacionam os usos possíveis sobre os bens acima referidos, mais particularmente, os usos possíveis do bem cuja existência ensejou toda a polêmica (a Barragem-Eclusa de Bom Retiro do Sul).

 

III.2. Ressalvados os bens públicos de natureza dominical26, que não estão afetados a qualquer finalidade pública, os bens de uso comum ou especial têm destinação voltada a alguma finalidade de interesse público. Essa finalidade predica um uso específico para o qual o bem está vocacionado e destinado.

 

III.2.1. Porém, o fato de um bem estar voltado a um uso específico, a uma finalidade primacial (diz-se em direito administrativo, ser o bem objeto de afetação, estar afetado a uma dada finalidade de interesse público), não impede que a ele se lhe dê outros usos, assessórios, complementares ou por vezes temporariamente excepcionáveis do uso principal.

 

III.2.2. Tomemos o exemplo de um bem integrante do viário municipal. Uma rua ou avenida, que seja. Eis um bem de uso comum do povo (artigo 65, I, do CCB), afetado à finalidade de circulação de pessoas ou veículos. Isso não impedirá, nem importará em sua desafetação27. Sem nos afastarmos do uso (finalidade) principal de uma avenida, poderemos dar a esse bem também um uso acessório quando, mediante permissão, autorização ou concessão, franqueamos a um particular dele se utilizar para instalar uma banca de jornais, um quiosque de campanha cívica ou um painel de informações turísticas ou metereológicas.

 

III.2.3. Da mesma forma, pode se dar a esse bem um uso complementar, caso a municipalidade pretenda ver explorado o potencial desse bem para servir de leito para instalações de redes de utilidades públicas subterrâneas, cabeamento de fibra óptica ou postes de distribuição de sinais de televisão por assinatura ou energia elétrica. A rua ou avenida continuarão a ser bens de uso comum para deslocamento de pessoas ou coisas, mas um outro uso será ensejado, podendo ser facultado a um particular, exclusivamente ou não, explorar esse uso secundário.

 

III.2.4. Por fim, mesmo num bem de uso comum, como o do exemplo, poderemos ter outros usos, excepcionais, que não aqueles correspondentes à sua finalidade precípua e que, temporariamente, a ela exclua. É o que ocorrerá, por hipótese, quando se admitir, numa data festiva, que tal avenida se preste a uma parada, a um show ou comício, interditando-se, por breve período, mesmo a sua utilização principal.

 

III.3. Ou seja, temos com essas notas  que o uso de um bem público não há de ser única ou exclusivamente aquele que integra a sua finalidade ou afetação. Outros usos são admitidos, possíveis e mesmo freqüentes, ainda que a doutrina, por vezes, disso não se aperceba. Tenho cá comigo -- e venho me dedicando academicamente ao assunto -- que o próprio poder público, por olvidar desse potencial de usos dos bens, que integram seu acervo patrimonial, por vezes gere seu patrimônio ao arrepio do princípio da economicidade. Age com timidez e até mesmo com tibieza, talvez por distração, talvez mesmo por se aferrar a concepções doutrinárias vetustas e ultrapassadas. Mas isso é tema para outras reflexões.

 

III.4. Os distintos usos que se pode admitir sobre um mesmo bem público podem ser classificados tendo em vista um critério de normalidade ou um critério (que prefiro) de prevalência.  

III.4.1. Sob o prisma da normalidade temos que “uso normal é o que se exerce de conformidade com a destinação principal do bem; e uso anormal é o que atende a finalidades diversas ou acessórias, às vezes em contradição com aquela destinação
28”. No exemplo acima, será uso normal da avenida a sua utilização por carros ou pessoas que precisem por ela transitar. Será o uso anormal a reunião da multidão para comemorar, protestar ou se divertir.

III.4.2. Doutro bordo, a partir de um critério de prevalência, podemos divisar o uso primário como aquele correspondente à finalidade para a qual o bem foi instituído ou afetado, enquanto os usos secundários são aqueles que podem ser dados ao bem sem prejudicar, nem menos excluir, a sua regular utilização com vistas à finalidade primária, que sempre irá prevalecer em relação àqueles usos outros (acessórios ou complementares). Os usos secundários sempre deverão observar os aspectos regulamentares voltados a proteger o uso primário e a assegurar que este não será afetado. Temos uso secundário quando, no exemplo acima, admite-se utilizar a faixa de domínio de uma rodovia para instalar um posto de gasolina ou se utiliza o seu subsolo para implantar uma rede de telecomunicações.

 

III.5. Conforme estivermos diante de um bem de uso comum, mais forte será a proteção do uso normal ou primário pois a finalidade destes bens assume, à luz do direito, maior densidade e relevância do que a finalidade de interesse público especial. Porém, destaque-se, ser particularmente comum que se dê uso anormal (atípico) ou secundário a bens de uso especial. Tomemos o exemplo de um estádio de futebol (bem de uso especial destinado a servir de arena de espetáculos esportivos). O uso normal ou primário daquele bem é ensejar a realização de competições esportivas que reunam público, assistência. Isso não impede que se utilize aquele próprio público para recolher e tratar enfermos numa calamidade pública ou de receber espetáculos musicais (usos anormais). Nem interdita que se lhe dê usos secundários, como por exemplo, alugando boxes para venda de alimentos, espaços publicitários etc.

 

III.6. A aplicação da classificação do uso dos bens em primários e secundários assume particular relevância quando a adotamos para o regime de uso dos bens públicos do domínio hídrico. A lei, já asseverei acima, define o que seja a finalidade primária dos recursos hídricos: assegurar o atendimento às necessidades essenciais à existência humana29. Não é por outro motivo que a Política Nacional de Recursos Hídricos contempla como princípio fundamental a regra de que “em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais”30.

 

III.6.1. Porém, os recursos hídricos, particularmente os cursos d´água, admitem, pelas suas próprias características, uma multifuncionalidade: pode-se, e deve-se, combinar, para um mesmo potencial hídrico, várias utilizações racionalmente articuladas (navegação, irrigação, destinação de esgotamento sanitário, pesca, captação, geração de energia, etc.). É o que vemos expressamente constante do artigo 1º, IV, da Lei nº 9.433/9731.

 

III.6.2. O que se haverá de observar é a adequada articulação entre os múltiplos usos da água, de forma organizada, racional e articulada de forma que: i) nenhum deles prejudique o uso primário (água é um bem essencial à vida humana), ii) um determinado uso secundário interfira o mínimo possível nos demais32.

 

III.6.3. Fato é que a outorga de um determinado uso do bem público recurso hídrico não interdita que, sobre este mesmo bem, haja outra outorga para uso distinto. Da mesma forma, a infra-estrutura afeta a um determinado uso não determinará o regime a ser adotado para outorga do direito de uso privativo para finalidade distinta. Tanto assim é que a Lei nº 9.433/97, no seu artigo 12, prevê um regime geral de outorgas para utilização de recursos hídricos por particular (sem precisar qual o instrumento de outorga) e já no § 2º determina que a outorga do direito de utilização do potencial hidroenergético subjacente a estes recursos terá um regime jurídico autônomo (obedecerá “a disciplina da legislação setorial específica”).

 

III.7. Em suma: os bens públicos admitem, em geral, uma diversidade de usos e destinações para além de sua finalidade primacial (primária ou predominante). Estes usos deverão ser, sempre, articulados e combinados, para evitar prejuízo ou impedimento da utilização primária do bem. Admitindo-se usos múltiplos, cada qual se regerá pelas regras, condicionantes e pressupostos afetos à sua área de regulação, inclusive observando regimes de outorgas peculiares.

 

III.7.1. Quanto a este último ponto, creio ser possível lançar mão de um exemplo que -- prima facie -- poderia parecer um óbice à tese ora esposada. Trata-se de dispositivos constantes da Lei nº 9.074/95. Neste documento legal, vemos previsto no artigo 1º, V, que dependerão de concessão “a exploração de obras e serviços federais de barragens, contenções, eclusas, diques e irrigações, precedidas ou não de execução de obras públicas”. Porém, pouco mais adiante, no artigo 4º vemos estabelecido que “as concessões, permissões e autorizações de exploração de serviços e instalações de energia elétrica e de aproveitamento energético de cursos d´água” terão o regime previsto na Lei nº 8.987/95.

 

E mais adiante, víamos a primeira referência à autorização como regime cabível para outorga do direito de exploração de ”potencial hidráulico de potência”33.

 

III.7.2. Ora, a menos que se queira imputar ao legislador a pecha de estulto34, há que se buscar a exegese que compatibilize as normas dentro de um próprio diploma. E a tese simplória de tentar divisar diferença entre potencial de curso d´água e potencial hidráulico mostra-se aqui inservível, pois há expressa referência do regime de autorização para o segundo caso (tese já rechaçada no tópico II.5.3. supra, então com argumentos constitucionais).

 

III.7.3. A única -- e ao meu ver correta e irreprochável – interpretação possível para compor os textos é aquela segundo a qual o que haverá de ser objeto de concessão é a exploração da barragem ou da eclusa para a sua finalidade primária (aquela que justifica ou justificou a sua construção), conforme o seu uso para captação de água, para navegação fluvial, para reserva de manancial, etc. Já a sua utilidade acessória -- criação de um potencial hidroenergético (atributo que vimos, se faz autônomo do próprio bem material, seja curso d´água, seja barragem) --- se sujeitará a um regime jurídico próprio, independente ou, nos dizeres da Lei nº 9.433/97, obedecerá “a disciplina da legislação setorial específica”.

 

III.8. Não se pode, portanto, sob pena de incorrer em desvirtuamento das normas legais, pretender apartar, afastar, o regime aplicável, no setor elétrico, para uso (exploração) de um bem público especial (potencial de geração de energia por processos hídricos) apenas porque se nota a utilização – secundária, é bem dizer – de um outro bem, cuja finalidade é, no caso, servir para a infra-estrutura de transportes fluviais.

 

III.9. Seria de rigor que, se estivéssemos a discutir a outorga do direito de uso privativo por particular da barragem-eclusa de Bom Retiro do Sul para explorar sua finalidade primária, teríamos sim que concordar que o instrumento correto seria a concessão. Porém, como estamos discutindo ou o uso secundário deste bem, ou então o aproveitamento (uso com finalidade econômica) de um bem intangível, ancilar e autônomo a ele (o potencial hidroenergético), em qualquer das hipóteses, não estaríamos diante da necessidade de concessão.

 

III.9.1. Na primeira hipótese, tratando-se de um uso secundário da barragem (presumindo-se que tal destinação não afetaria o uso primário), calharia outorgar o direito de uso mediante permissão ou autorização. Permissão, aliás, seria o instituto mais coadunado com tal aplicação. Como assevera a melhor doutrina “quando o uso do bem, comportado em suas destinações secundárias, compatível, portanto, com sua destinação principal e até mesmo propiciando uma serventia para a coletividade, implicar ocupação de parte dele com caráter de exclusividade em relação ao uso propiciado pela sobredita ocupação. (...) Nestas hipóteses a sobredita utilização depende de permissão de uso de bem público”35. Sendo porém, como visto acima, absolutamente próximos os regimes de permissão ou autorização de uso do bem (ambos inclusive, no entender da doutrina, prescindem de licitação), por-se-ia irrelevante a adoção de qualquer dos dois instrumentos.

 

III.9.2. Doutra feita, se entendermos que o que se está outorgando é apenas o direito de uso (exploração) do potencial hidroenergético subjacente e assessório à barragem (surgido, pois, como derivação autônoma desta), então, neste caso, estaríamos, indubitavelmente, diante de uma autorização, por expressa disposição legal (artigo 26, da Lei nº 9.427/96 com redação dada pela Lei nº 9.648/98).

 

III.10. Não mudam meu entendimento alegações de que haveria a obrigação de se concertar com o Ministério dos Transportes ou de que a exploração predicada pelo particular decorreria de investimentos públicos.

 

III.10.1. Sempre que a exploração de um potencial hidroenergético envolver interface com outras utilizações dos recursos hídricos, dos quais decorrem tais potenciais, sempre haverá a necessidade de entendimentos com os órgãos e atores envolvidos. É o que prediz a Lei nº 9.433/07. De resto, envolvendo a exploração uso acessório, secundário disse eu, de um outro bem público, seria de rigor que o particular fosse pelejar por esta outorga. Isso não creio caber negar. O que não me faz convencido da tese da submissão ao regime de  concessão por via reflexa.  

III.10.2. Doutro lado, se investimentos públicos houve na construção de uma barragem e de uma eclusa, a amortização destes investimentos deverá ser perseguida no âmbito da sua exploração com vistas à sua finalidade primaria. Outros usos (secundários) podem e devem gerar receitas, recursos ou benefícios, Mas estes terão a natureza que devem ter: serão de receitas acessórias. E neste sentido quer me parecer que o MT se acautelou de estabelecer alguns ônus para autorizar o uso secundário da barragem.

 

III.11. Fosse isso pouco e encontramos, nos documentos que me foram trazidos, a afirmação de que o projeto de aproveitamento do potencial hidroenergético sequer envolveria utilização da água represada pela barragem. Nem adentrarei nessa questão pois, se assim for, creio que nem caberia discutir todas as teses jurídicas acima expendidas. Já restaria resolvida a questão pelos seus próprios pressupostos fáticos: nem do uso da barragem cogitar-se-ia.

 

III.12. Portanto, como não se pretende explorar a barragem-eclusa na sua finalidade primária, mas apenas explorar um outro bem público, de natureza e regime jurídico distintos, não calha pretender submeter a exploração ao regime de concessão. Fosse assim e teríamos duas concessões possíveis de recair sobre um mesmo bem, uma para sua finalidade primária e outra para a secundária. Doutra feita, não há base legal para se afastar o regime próprio de outorga do direito de exploração do potencial hidroelétrico, fazendo derrogar o regime específico de autorização.

 

IV. A INCLUSÃO NO PND

 

IV.I. Eventuais questionamentos quanto à obrigatoriedade de ser direito de uso objeto de concessão, em decorrência do fato do potencial de aproveitamento hidrelétrico de Bom Retiro ter sido incluído no Programa Nacional de Desestatização – PND pelo Decreto nº 2.249/97 não me parecem sustentáveis.

 

IV.2. É óbvio que o Decreto, como norma infra-legal, não pode contrariar o texto legal. Também não pode inovar no mundo jurídico. Portanto, o Presidente da República, ao editar o Decreto nº 249/97, manejou a sua competência constitucional prevista no artigo 84, IV, da CF, dando contornos regulamentares ao que previra a Lei nº 9.491/97, que instituiu o Programa Nacional de Desestatização.

 

IV.3. Tal lei definira que nos processos de desestatização de atividades, que envolvessem serviço público36, deveriam ser objeto de normatização específica “adotados os procedimentos previstos em legislação específica, conforme a natureza dos serviços a serem desestatizados”.37 Portanto, havendo a definição de que seria objeto de cometimento à iniciativa privada da exploração do potencial hidrelétrico de Bom Retiro, o Presidente da República, seguindo recomendação do CND, incluiu este potencial no rol de bens a serem objeto de desestatização. E fê-lo observando o procedimento e as regras constantes na legislação específica da época.

 

IV.4. Vigente que estava o artigo 26 da Lei nº 9.427/96 (com a redação anterior ao advento da Lei nº 9.648/98), os potenciais hidráulicos com potência superior a 10.000 KW (caso de Bom Retiro) deveriam ser objeto de concessão.

 

IV.5. Com  a alteração legislativa propiciada pela Lei nº 9.648/98, passou a ser definido que os potenciais até 30.000 KW não seriam mais objeto de concessão e sim autorização (ver redação que foi dada ao artigo 26 da Lei nº 9.427/96). Sendo assim, perdeu completamente a eficácia a inclusão do potencial de Bom Retiro no PND. Afinal, ao ficar definido na lei que tais potenciais passavam a ser objeto de autorização, a sua submissão ao regime de concessão passou a ferir a própria lei que instituiu o PND, a qual obrigava que o CND observasse a legislação específica do setor (no caso, a legislação do setor elétrico).

 

IV.6. Assim, como não calha a cauda abanar ao ser canino, não pode o Decreto criar condicionantes à lei. Da permanência da prescrição legal depende a existência do Decreto que a vem regulamentar. Alterando-se ou suprimindo-se aquela, perde a eficácia este. A inclusão do potencial hidrelétrico de Bom Retiro no PND, como objeto de futura concessão, prendia-se ao fato de que a legislação específica previa que potenciais com tal potência seriam objeto de concessão. Se, após alterada a lei para modificar o regime de outorgas (de concessão para autorização), pretendêssemos dar eficácia plena e autônoma à prescrição do Decreto, estaríamos por consagrar a tese de que o regulamento prescinde da lei. Mais ainda, estaríamos consagrando uma indigitada hipótese de regulamento autônomo sem nem mesmo haver um processo de delegiferação.

 

IV.7. E nem se venha dizer que, se a lei franqueou o regime de autorização, poderia o executivo optar por outro instrumento de outorga, mais rigoroso, público e controlador. Tal assertiva é falsa, pois, ao ampliar os potenciais hidroenergéticos passíveis de exploração mediante autorização, o legislador ampliou direitos dos particulares -- retirando maiores restrições de acesso à exploração de bem e serviços públicos. Feito isso na lei, não poderia o ato infralegal vir a amesquinhar essa liberdade, impondo aos particulares um regime de maior restrição à exploração de atividade econômica.

 

IV.8. Assim, a inserção do potencial hidroenergético em apreço, no rol de ativos passíveis de concessão tem, para desfecho da questão, a relevância que possui um regulamento contrário à lei: rigorosamente nenhuma.

 

V. A PRESCINDIBILIDADE DE LICITAÇÃO

 

V.1. Por qualquer linha de entendimento que se adote, parece-me que descabe falar na obrigatoriedade de realização de licitação para outorga do direito de exploração do potencial hidrelétrico de Bom Retiro.

 

V.2. Se entendermos que o objeto da outorga é o bem público intangível subjacente ao curso do Rio Taquari ou intrínseco à barragem – eclusa Bom Retiro (que com eles não se confunde), então estaremos diante de outorga de autorização, nos termos da redação vigente para o artigo 26 da Lei nº 9.427/96. Houvesse alguma ilegalidade na outorga de autorização de potenciais hidráulicos de potência inferior ao limite legal diretamente, sem licitação, não seria ilegal apenas a autorização de Bom Retiro. Sê-lo-iam todas as autorizações outorgadas ao longo do último lustro.

 

V.3. Se, por outro lado, pensarmos não no potencial subjacente (como bem autônomo) à barragem – eclusa, mas entendermos necessária uma licença para uso secundário daquelas instalações , então tampouco caberia falar em licitação. Isso porque, como visto, não estamos tratando de concessão para exploração da atividade primária, mas de simples autorização para possibilitar o uso secundário. E nestas situações há consenso na doutrina no sentido da desnecessidade de licitação.38

 

V.4. Portanto, problema algum vejo em que a autorização – como é regra no setor elétrico – seja outorgada em favor de quem já cumpriu os requisitos legais e regulatórios e não seja condicionada a uma prévia licitação.

 

VI. CONCLUSÃO E RESPOSTA OBJETIVA ÀS QUESTÕES SUSCITADAS

 

1. É correto o entendimento de que na exploração do potencial hidráulico de Bom Retiro do Sul, no rio Taquari, RS, estão envolvidos dois bens públicos distintos ?

 

1. Não. Na verdade, três são os bens que podem ser divisados. Primeiro, o próprio recurso hídrico, Rio Taquari, bem de uso comum integrante do patrimônio estadual gaúcho. Depois, a barragem - eclusa de Bom Retiro -, bem integrante da infra-estrutura de transportes, afeto às competências regulatórias do Ministério dos Transportes e sob administração da concessionária. Por derradeiro, o potencial hidroenergético daquela conformação hídrica, bem autônomo e independente, integrante também do patrimônio da União e afeto à administração e regulação da ANEEL. Cada um destes bens se submete a um regime jurídico próprio que não contamina ou subsume os demais.

 

2. O fato do potencial hidráulico não decorrer das condições naturais do curso d’água e sim da construção prévia de uma barragem-eclusa afasta o regime legal de autorização presente nos marcos legais do setor elétrico ?

 

2. Não. Primeiro, porque nem a Constituição nem a legislação fazem esta distinção. Ao contrário, o artigo 176, § 1º, da CF alude expressamente ao regime de autorização para exploração de potenciais de energia hidráulica e não apenas potencial de cursos d´água. Depois, porque o potencial hidroenergético tem seu uso (exploração) previsto em legislação específica (artigo 26 da Lei nº 9.427/96 com redação dada pela Lei nº 9.648/98), a qual não se confunde nem elide o uso que se venha a dar aos outros bens a ele abjetos ou que lhe sirvam de suporte material.

 

3. A expedição de autorização pelo MT, ensejando a utilização de água represada pela barragem-eclusa para exploração do potencial hidráulico a ela inerente predicaria alguma fragilidade jurídica para o empreendimento ?

 

3. Não. O instrumento da autorização, assim como o da permissão, é apto e adequado a ensejar usos secundários de bem público, quando não prejudicial ao uso primário (no caso da barragem-eclusa em apreço, sua finalidade primaz é permitir a navegação fluvial). Ademais, é perfeitamente possível se entabular autorizações qualificadas, as quais esvaziam o caráter precário e instável lobrigado pela doutrina no instituto. Por fim, sendo tal autorização vinculada àquela outra, ensejadora do direito de exploração do potencial, descaberia falar em tal fragilidade.

 

4. A inclusão anterior da UHE Bom Retiro no Programa Nacional de Desestatização - PND - teria o condão de obrigar que o direito de exploração daquele potencial hidráulico seja necessariamente objeto de concessão ?  

4. Não. Tal prescrição restou derrogada pela mudança perpetrada pela Lei nº 8.648/98, que ampliou o regime de autorização para exploração de potencial hidroenergético. Pretender dar validade e eficácia ao Decreto nº 2.249/97 seria afrontar o disposto no artigo 6º, § 1º, da Lei nº 9.491/97 ou conferir foros de lei a ato infra legal.

 

5. À luz das respostas anteriores, é lícito sustentar que o direito de exploração do potencial de geração hidráulica em apreço possa ser outorgado sem necessidade de prévia licitação pública ?

 

5. Sim. Lícito, lídimo e legítimo. À luz do tanto quanto arrazoado, a outorga do direito de exploração do potencial hidroenergético de Bom Retiro deve seguir a regra de todas as autorizações expedidas nos termos do artigo 26 da Lei nº 9.427/96, nada havendo que justifique tratar diferentemente este potencial.

 


1Artigo 20. São bens da União. (...) VIII – os potenciais de energia hidráulica;...”  
2 Isso vem regrado, como adiante cuidaremos, no artigo 21, XII, b, da Constituição que define competir à União “XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão (...) b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;...”  
3 É o texto da Constituição: “Artigo 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra”.  
4 Nos termos do Decreto nº 24.636/34 – Código de Águas – artigo 29, II.  
5 É o texto: “A Lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem injustamente os possua”.  
6 Não me move aqui expor as diversas possíveis classificações dos bens públicos. Por isso, inclusive, não me aterei à clássica divisão destes bens pelo uso, conforme legado da tradição civilista, presente no artigo 65 do Código de 1917 e mantida inalterada no novo Código. Para fins do presente estudo não se põe relevante discernir entre bens de uso comum ou de uso especial ou bens dominicais, embora adiante vá recorrer a esta classificação para demonstrar algumas das fragilidades de entendimento contrário.  
7 Notemos que o fato do bem ser por essência público não predica que ele não possa ser objeto de outorga de uso privativo, como ocorre com as posições orbitais ou faixas de freqüência. O que se quer afirmar é que pela natureza do bem não se cogitaria que o mesmo fosse do domínio privado.  
8 Cf. artigo 243, da CF.  
9 Cf. artigo 17, I, a, da Lei nº 8.666/93.  
10 Esquivo-me propositadamente de recorrer às definições constantes da Lei nº 8.666/93 (artigo 6º, I) e da Lei nº 8.987/95 (artigo 3º, III) por serem, ambas, insuficientes para o raciocínio aqui desenvolvido já que definem obra pelas ações que enreda e não pela sua natureza em face dos bens públicos.  
11 Estou a me referir à implementação de obras públicas que se constituem em bens reversíveis, regendo-se pelo regime de direito público qualquer que seja o instrumento que vincule o particular (concessão, permissão, autorização ou ainda, no setor de portos, arrendamento) passando a incorporar o patrimônio público.  
12 Note-se mais uma vez e sempre que estamos nos referindo ao potencial hidroenergético e não ao recurso hídrico em si pois este, sabemos, admite multiplicidade de usos.  
13 Assim é porquanto o artigo 34 do Código de Águas franqueia a todos o uso gratuito das águas para prover as necessidades da vida. Tal disposição veio corroborada pelo artigo 12, § 1º, da Lei nº 9.433/97. De resto, embora se admita que as águas públicas possam ser bens de uso comum e bens dominicais (Cf. artigo 1º do Código de Águas), bem dominical um rio não será pois que não se enquadraria na definição do artigo 6º daquele Decreto nº 24.643/34.  
14 Diz o Código de Águas: “Artigo 36. É permitido a todos usa de quaisquer águas públicas, conformando-se com os regulamentos administrativos”.  
15 Sigo considerando que os recursos hídricos são bens de uso comum do povo, malgrado a crescente escassez destes recursos cada vez mais faça sobrevir restrições ao uso ou torne onerosa sua fruição. Porém, como já sustentei em várias oportunidades, o fato de se admitir o uso oneroso não faz de per si o bem deixar de ser de uso comum. Veja-se, por exemplo, o que ocorre nas rodovias pedagiadas onde, malgrado a cobrança pelo uso, seguem delas podendo se utilizar, a qualquer hora, qualquer um do povo sem condição outra que não a remuneração da tarifa.  
16 Aliás, esta multiplicidade de regimes e de finalidades é própria do direito das águas, predicando a sua multifuncionalidade. A esse respeito ver meu “Aspectos jurídicos enredados na implantação do programa de inspeção veicular”, in Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, Brasília, julho a setembro de 2001, ano 38, nº 151, páginas 183 a 189.  
17 Usamos aqui o conceito de “uso privativo” para diferença-lo do uso exclusivo (em sentido de prejudicial, excludente, ao uso por outrem). Na acepção aqui utilizada, o uso privativo se aproxima da concepção de exclusividade esposada por Raimundo Nonato Fernandes que, há quase trinta anos, asseverava que a exclusividade no uso de bem público decorria “de um modo particular de fruição da coisa, que não coincide com o da generalidade dos habitantes, e, por outro lado, do fato da atribuição a terceiro do poder de uso de seu titular originário. O poder de uso deve ser entendido no sentido de gozo das utilidades das coisas, cujo domínio permanece com a entidade concedente. Em alguns casos, o utente exerce também poderes de gestão, como ocorre nas concessões de minas e de obra pública” (in “Da Concessão de Uso de Bens Públicos”, RDA, Volume 118, Outubro a Dezembro de 1974, página 2).  
18Direito Administrativo Moderno”, São Paulo, RT, 4ª edição, 2000, páginas 293 e seguintes.  
19 Exceção merece ser feita ao regime de arrendamento, revigorado que foi pela Lei nº 8.630/93, que dispôs sobre o regime jurídico da exploração dos portos organizados e das instalações portuárias e previu a possibilidade de arrendamento destas instalações como forma de parceria com os empreendedores privados.  
20 Cf. “Direito Administrativo”, São Paulo, Atlas, 13ª edição, 2001, pagina 549.  
21 Em sentido muito semelhante, definiu-se a permissão de uso também como um ato administrativo, unilateral, discricionário e precário, porém sem duração necessariamente curta, e que se prestaria a conferir o direito de uso privativo não correspondente à destinação principal e originária do bem.  
22 Pela Lei nº 9.472/97 o espectro de radiofreqüências é um bem público. E o artigo 163, § 1º, da mesma lei define: “Autorização de uso de radiofreqüência é o ato administrativo vinculado, associado à concessão, permissão ou autorização para prestação de serviço de telecomunicações, que atribui a interessado, por prazo determinado, o direito de uso de radiofreqüência, nas condições legais e regulamentares”.  
23 O que depois veio expressamente previsto no artigo do Decreto nº 2.003/96.  
24 Este é o texto do artigo 20 do Decreto nº 2.003/96: “Artigo 20. No final do prazo de concessão ou autorização, os bens e instalações realizados para a geração independente e para a autoprodução de energia elétrica em aproveitamento hidráulico passarão a integrar o patrimônio da união, mediante indenização dos investimentos ainda não amortizados”.
25 Veja-se o texto completo “Artigo 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º. A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão autorização da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa brasileira constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas”.  
26 Ou seja, aqueles “que integram a parcela de bens que pertence ao Estado em sua qualidade de proprietário” (cf. José Cretella Jr., “Tratado de Domínio Público”, Rio de Janeiro, Forense, 1984, página 336).  
27 Como é sabido, a desafetação "é a mudança da destinação do bem. De regra, a desafetação visa a incluir bens de uso comum do povo ou bens de uso especial na categoria de bens dominicais para possibilitar a alienação” (Odete MEDAUAR, "Direito Administrativo Moderno", RT, página 270).  
28 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Direito Administrativo”, cit., página 546.  
29É o que se vê no artigo 34 do Código de Águas – Decreto nº 24.643/34. No mesmo sentido caminhou a Lei nº 9.433/97 que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (cf. artigo 12, § 1º, I).  
30 Cf. artigo 1º, I, da Lei nº 9.433/97.  
31 Diz o texto “a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas”.  
32 Cf. artigo 2º, II, da Lei nº 9.433/97.  
33 À época, como vimos, a potência passível de autorização estava limitada em 10.000 KW, o que foi aumentado por legislação posterior.  
34 Algo que mesmo para a atabalhoada, tecnicamente ruim, casuística e assistemática legislação do setor elétrico não se pode admitir como pauta hermenêutica.  
35 Celso Antônio Bandeira de Mello, “Curso de Direito Administrativo”, São Paulo, Malheiros, 13ª edição, página 766.  
36 Notemos que a concessão do direito de exploração de um potencial hidroenergético envolve necessariamente a prestação do serviço público de geração de energia, ainda que mediante autorização.  
37 Cf. artigo 6º, § 2º, in fine. No mesmo sentido veio o artigo 15 do Decreto nº 2.594/98.  
38 Poder-se-ia argumentar com o artigo 23, § 1º, da Lei nº 9.427/96, dizendo que este dispositivo interditou o enquadramento de permissões ou concessões nas hipóteses de inexigibilidade ou dispensa de licitação. O argumento não quadra pois i) não estamos cogitando de permissão nem concessão; ii) da forma como redigido o dispositivo, permite-se concluir que autorização poderá ser firmada sem licitação (onde a lei não proíbe, permite).

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*Advogado do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques, Advocacia.

 

 

 

 

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