A posição dos usuários e a estipulação da
remuneração por serviços públicos
Cesar
A. Guimarães Pereira*
1) Proposta metodológica: o serviço público com foco no usuário. 2) A inserção da contraprestação na relação jurídica de serviço público. 2.1) A inserção da remuneração mediante tarifa (e os efeitos do inadimplemento do usuário). 2.2) A inserção da remuneração mediante taxa. 2.3) A peculiaridade do regime jurídico da taxa e a questão da comutatividade. 2.4) A compulsoriedade da fruição não afeta a qualificação jurídica da remuneração. 3) A estipulação do montante da tarifa. 3.1) A relevância da identificação do usuário para a estipulação da tarifa. 3.2) O regime de fixação das tarifas: princípios aplicáveis (limites do exame). 3.3) Princípio da igualdade entre os usuários. 3.3.1) Aproximação com a noção de capacidade contributiva. 3.3.2) As dificuldades na apuração do “custo do serviço”. 3.3.3) A questão do “financiamento antecipado de obras”: a solidariedade entre gerações. 3.3.4) Tarifas sociais e “extrafiscais”. 3.3.5) Distribuição de ônus e igualdade: limites das tarifas e subsídio público. 3.3.6) Ainda o subsídio público: o regime das PPPs e a realização concreta da solidariedade. 3.4) Princípio da modicidade de tarifas. 3.5) Princípio da manutenção da equação econômico-financeira da delegação de serviço público. 3.6) O objetivo de eficiência. 3.7) Tarifa como elemento caracterizador da relação direta. 3.8) Risco de arbitrariedade na estipulação da tarifa. 4) distinção entre os critérios para fixação de taxas e de tarifas. 4.1) Os critérios para a criação de taxas de serviço. 4.2) Os conceitos de ‘especificidade’ e de ‘divisibilidade’. 4.3) Distinção entre os pressupostos e critérios para a criação de taxas de serviço e tarifas. 4.4) Os fatores adicionais envolvidos na criação de tarifas: equilíbrio e viabilidade econômica da concessão. 4.4.1) A tarifa não é uma espécie tributária. 4.4.2) O equilíbrio econômico do serviço e a possibilidade de delegação. 4.4.3) A possibilidade de concessão (e remuneração mediante tarifa) de serviços públicos compulsórios e meramente fruíveis (postos à disposição dos usuários). 4.4.4) Serviços fruíveis e serviços aparentemente fruíveis: a questão do uso complexo. 5) Conclusão. 6) Bibliografia
I
- PROPOSTA METODOLÓGICA: O SERVIÇO PÚBLICO COM FOCO NO USUÁRIO
Este trabalho
pressupõe uma alteração de perspectiva na visão do serviço público,
retirando-se o foco da prestação do serviço público e situando-o
no
usuário1.
Identifica o serviço público como uma atividade administrativa de satisfação
concreta de necessidades individuais ou transindividuais, como faz Marçal Justen Filho2.
Porém, ressalta que a caracterização de uma
atividade como serviço público em sentido estrito exige que a utilidade
prestada seja passível de fruição singular pelo usuário. Com isso, põe-se o
usuário no centro da noção de serviço público.
A consagração cada vez mais intensa da dignidade
da pessoa humana como fundamento da ação do Poder Público conduz à
valorização do indivíduo, da pessoa, como finalidade da atuação do Estado3.
Isso se reflete sobre a compreensão que se deve ter do serviço público, visto
assim como prestações públicas de que cada indivíduo pode desfrutar
singularmente.
Esta proposta
traduz a evolução de uma corrente de pensamento acerca do lugar ocupado pelo
serviço
público no campo das atividades que caracterizam a função pública.
Sempre se aludiu a serviços públicos uti singuli e uti
universi, conceitos consolidados no pensamento nacional e
estrangeiro. Porém, Celso Antônio Bandeira de Mello passou a sugerir uma visão restritiva, com destaque específico para os ditos
serviços uti singuli–
embora admitindo a possibilidade de um conceito amplo de serviços públicos
que abrangeria também os serviços uti universi4.
Este trabalho parte do pressuposto de que o serviço público referido na
Constituição Federal, ou seja, o serviço público em sentido próprio e
jurídico, é o chamado serviço uti
singuli5.O conceito jurídico de serviço público
pressupõe a sua fruição singular pelos usuários. Para a caracterização de um
serviço público, exigir-se-ia a possibilidade de fruição singular do
serviço. Os serviços uti universi,
tidos como serviços públicos em sentido amplo, são atividades públicas positivas da Administração, indissociáveis de outras como a
realização de obras públicas. As normas postas atinentes ao serviço público têm em
vista o serviço público propriamente dito (o
uti singuli), não o serviço público em
sentido amplo (o dito uti universi).
Desse modo, defendo
que os ditos serviços uti universi têm regime
e função mais próximos das obras públicas ou de outras atividades públicas
não referidas diretamente a particulares do que dos serviços públicos
propriamente ditos (os uti
singuli). A finalidade comum – realização do interesse público
mediante atividade que dê satisfação material a indivíduos –não é suficiente
para que se considerem os serviços uti
universi e uti singuli como
espécies de um mesmo gênero. Há uma distinção essencial, que explica o
afastamento entre as categorias. Nos serviços uti singuli,
há uma relação jurídica concreta, que vincula o prestador ao usuário. Nos
serviços uti universi, não
há usuários, mas beneficiários difusos. Não há uma relação jurídica concreta,
mas um dever de agir do Poder Público não contraposto a um direito específico
dos beneficiários. O que há, nos ditos serviços uti
universi, é um direito difuso dos beneficiários,derivado de sua
condição de cidadãos. A instalação de iluminação em uma praça,p. ex., não é
atividade distinta da própria construção da praça. Trata-se de atividades
puras, isso significando que sua finalidade se exaure na própria
atividade. A utilidade é colocada à disposição dos possíveis beneficiários, mas estes não participam
de uma relação jurídica envolvendo o Poder Público nem integram a finalidade
da atividade. É claro que há, p. ex., responsabilidade patrimonial da
Administração por danos causados na realização das atividades de caráter
difuso, como há em qualquer outro caso de atuação comissiva ou omissiva do
Estado. Mas isso não elimina a possibilidade de se identificar uma relação
jurídica concreta de serviço apenas nos casos de fruição singular da
utilidade.
No serviço público propriamente dito, o usuário é instrumental para o atingimento
da finalidade da atividade pública. O serviço é uti
singuli porque a satisfação de cada usuário individual é o que
realiza o fim público do serviço. O serviço público é a espécie de atividade
pública em que a finalidade normativa é realizada mediante a satisfação do
usuário. O usuário assume certo caráter instrumental na medida em que a sua
satisfação é funcionalizada; o serviço não tem em vista apenas o interesse
individual do usuário, mas o interesse público subjacente ao serviço. Assim,
ao prestar o serviço de abastecimento de água potável, o Poder Público
realiza o interesse do usuário(que necessita de água de qualidade para
sobrevivência com saúde) e o interesse coletivo na prevenção da transmissão
de doenças e na redução dos eventuais custos de tratamento médico (daí o
sentido em aludir-se a necessidades individuais e transindividuais). A realização do
interesse coletivo pressupõe
o atendimento do interesse individual do usuário.
Ao se realizar uma obra
pública ou um serviço dito uti
universi, a finalidade da atividade se exaure nela própria. A
varrição de logradouros públicos não pressupõe alguma satisfação individual
para completar sua finalidade. O mesmo se diga quanto à iluminação pública
desses mesmos locais. Embora a utilidade de uma rodovia esteja precisamente
no seu uso, o atingimento de sua finalidade não pressupõe o uso individual
pelos beneficiários. O serviço público propriamente dito, ao contrário, não
existe nem tem sentido sem o uso pelos seus destinatários.
Isso fica especialmente claro nos serviços de fruição compulsória. De nada adianta haver uma rede de coleta e tratamento
de esgotos, colocada à disposição dos usuários e com serviços remunerados por
taxa por uso potencial, se os usuários recusarem-se a se conectar à rede. A finalidade
da atividade somente será atingida se houver o uso efetivo. E
mais: a própria materialidade da utilidade, no serviço público, pressupõe uma
atividade de
utilização do serviço por parte do seu destinatário. Nos ditos serviços
uti
universi, o eventual beneficiário assume uma posição passiva em relação
à atividade estatal.
O presente estudo parte do pressuposto de que serviço público é caracterizado por uma relação jurídica entre usuário
e prestador. Essa relação é complexa porque envolve uma variedade de
situações ativas e passivas de parte a parte. Apresenta diferenças conforme
se trate de serviço público prestado diretamente ou por delegação. No caso do
serviço público prestado diretamente, pode haver uma relação jurídica isolada
(no caso de serviços prestados de modo gratuito) ou duas relações jurídicas
coordenadas, uma de uso e outra tributária (no caso de serviços prestados
mediante taxa). No caso do serviço público prestado por delegação, há uma
relação jurídica trilateral, envolvendo o usuário, o prestador e o poder
concedente.
Em qualquer caso,o
usuário é central para a caracterização do serviço público. No caso
dos serviços uti universi,
há um “prestador” – ou melhor, um realizador –do serviço, mas não há
usuários.
O objetivo específico deste trabalho é examinar os reflexos dessa premissa sobre as condicionantes jurídicas da
remuneração devida ao prestador do serviço, seja taxa, seja tarifa.
II - A INSERÇÃO DA CONTRAPRESTAÇÃO NA
RELAÇÃO JURÍDICA DE SERVIÇO PÚBLICO
A relação jurídica complexa de prestação do serviço público pode envolver um aspecto econômico, consistente
na contraprestação direta do usuário pela prestação do serviço.
A existência
dessa contraprestação não é essencial para a configuração da relação de
serviço público. É possível cogitar de serviços públicos gratuitos,prestados
sem contraprestação pecuniária específica. Obviamente, não são
serviços sem
custo, mas sim sem remuneração direta pelo usuário. São custeados por
receitas de outra natureza percebidas pelo prestador dos serviços.
A redução do conceito de serviço público aos serviços uti singuli implica
a exclusão de atividades que, por serem utilizáveis apenas de modo coletivo,
não podem ensejar a estipulação de uma contrapartida financeira específica,
diante da impossibilidade de identificação de um usuário e da medida em que
este utiliza o serviço. Não sendo possível identificar um usuário, a
estipulação de uma contrapartida pecuniária e a sua imputação a alguém
configurariam arbitrariedade por
falta de um critério racional de determinação dessa responsabilidade.
A possibilidade de se estipular uma contraprestação é conseqüência da
existência de um usuário determinável. Pode-se afirmar corretamente(a)que
o serviço público envolve um usuário que
integra uma relação jurídica com o prestador,(b)que
todo serviço público tem custos e, portanto, é mensurável economicamente e(c)que
em todo serviço público é possível, em tese, imputar ao usuário uma parcela
desse custo. Também é correto afirmar que o serviço público é caracterizado
pela possibilidade de, em tese, fixar-se uma contrapartida pecuniária pela
sua prestação. Porém, adotar esse critério como integrante da definição
jurídica de serviço público seria uma inversão de raciocínio e
fonte de discussões inúteis. A possibilidade de se fixar uma contrapartida
pecuniária é mero reflexo da circunstância de que o serviço público envolve,
sempre, um usuário identificável, não o contrário.
A remuneração do serviço pode ingressar na relação jurídica da
prestação de
serviço público por uma de duas vias. Ou é parte dos deveres do usuário
no âmbito de uma determinada relação jurídica de prestação do serviço, ou
integra uma relação jurídica de natureza tributária, coordenada com a relação
de prestação de serviço público. As duas situações correspondem,
respectivamente, à remuneração do serviço mediante tarifa ou taxa.
II.1 –A
inserção da remuneração mediante tarifa (e os efeitos do inadimplemento
do usuário)
Os serviços
públicos delegados não gratuitos (ou seja, prestados ao usuário de modo
oneroso) são remunerados mediante tarifa. O delegatário dos serviços pode remunerar-se total ou parcialmente de outro
modo, p. ex., mediante a exploração publicitária ou mediante subsídios
públicos no caso das concessões administrativas ou patrocinadas da Lei nº
11.079/2004 (Lei de Parcerias Público Privadas). Nesse caso, o serviço poderá
ser gratuito para o usuário,
tendo seus custos cobertos de outro modo.
Na situação em que há
a exigência de tarifa, o montante a ser pago pelo usuário tem a natureza de
contraprestação. A relação jurídica que se forma entre o usuário e o
prestador tem, de um lado, o prestador com o dever jurídico de prestar o
serviço e, de outro, o usuário com o dever jurídico de realizar o
pagamento
da tarifa. Há signalagma e comutatividade, pois a prestação de uma parte é o
que a habilita para a titularidade do direito à prestação da outra.
A relação de serviço público é complexa porque envolve, em cada pólo,
uma multiplicidade de direitos, deveres, ônus e sujeições. Um dos deveres do
usuário é o de pagar o montante correspondente à tarifa. A ausência de
pagamento é, em princípio, causa suficiente para a recusa de prestação pela
contraparte (prestador do serviço).
Debate-se na doutrina6 e jurisprudência7 se o direito
à
continuidade do serviço público restringe o direito do prestador à interrupção dos
serviços. A própria existência e a consistência dos
argumentos de ambos os lados demonstram a complexidade da relação jurídica de
serviço público: não há mera contraposição entre direito
à prestação e direito à remuneração. Diversas condicionantes
temperam a posição jurídica de cada parte. Aponta-se que o princípio da
dignidade humana, refletido em normas específicas, assegura o direito a
certas prestações do serviço público independentemente da efetivação
do
pagamento. A questão não pode ser resolvida de modo absoluto. Há que se
ponderar as condições de cada situação concreta. Uma solução adequada
apenas poderá ser encontrada mediante estipulação normativa, com o
reconhecimento de que:(a)alguns
serviços não podem ser interrompidos, mesmo em face do inadimplemento, embora
o descumprimento do dever de pagar a remuneração possa configurar ato ilícito
(p. ex., coleta e destinação final de lixo),(b)algumas
categorias de usuários (p. ex., os que se situam abaixo de certo nível de
renda ou os que são domiciliados em certas regiões desfavorecidas) devem
ser beneficiadas por regime especial de remuneração, que pode incluir
reduções ou isenções de pagamento da remuneração pelo serviço, de modo que a
falta de condições econômicas não dê causa à não-fruição do serviço, e
(c)fora
dessas
condições peculiares, a ausência de adimplemento da contraprestação é
fundamento suficiente para que o prestador recuse o fornecimento do serviço
ao usuário inadimplente (caso contrário, estender-se-ia a todos o direito à
fruição gratuita do serviço que é reservado pelo Direito a apenas
determinadas pessoas em situação peculiar).
O pressuposto aqui é o de que o Estado (isto
é,os serviços públicos), frente ao qual as pessoas são todas iguais, deve
ser imune às diferenças fáticas de condições econômicas dos possíveis
usuários. É inegável que cada indivíduo tem suas condições econômicas
próprias, algumas determinadas desde o nascimento, que se refletem na sua
capacidade de consumo de bens privados e atingem diretamente a qualidade de
vida de cada qual. O regime de mercado que caracteriza a ordem econômica
brasileira admite tais diferenças.O serviço público, precisamente porque está
fora do mercado, não seguia por essa mesma pauta e deve ser configurado
de modo que a ausência de condições econômicas seja, tanto quanto possível,
irrelevante frente à fruição do serviço.
O dever de pagar a tarifa integra o rol de deveres do usuário na relação jurídica de prestação de serviço. O dever
do prestador de prestar o serviço é contraposto ao do usuário de pagar a
tarifa. Embora complexa, trata-se de uma só relação jurídica.
Deve-se agregar ainda a posição do poder concedente. Havendo delegação, a relação jurídica passa a ligar de
modo incindível o usuário, o prestador e o poder concedente. Essa relação
trilateral pode ser dissecada a fim de se localizar, nela, a parcela
específica que vincula o usuário ao prestador e tem por conteúdo a prestação
do serviço. Mas essa relação específica não subsiste fora da relação
trilateral, o que torna imperioso reconhecer a trilateralidade do vínculo
derivado da delegação de serviço público.
Na relação oriunda da delegação de serviço público, há ao mesmo tempo complexidade e trilateralidade.Cada
um dos partícipes (poder concedente, concessionário e usuário) é sujeito
ativo e sujeito passivo frente aos outros dois, simultaneamente. O
usuário será aquele que, em meio a todas as demais situações subjetivas
envolvidas, estiver na condição de titular do direito à prestação do serviço,
no âmbito de um vínculo (relação jurídica) que o liga ao prestador.
II.2 - A inserção da remuneração mediante taxa
Os casos em que o serviço público enseja a instituição de uma taxa de serviço, na forma do art. 145, II, da
Constituição,apresentam peculiaridade importante.
Nessas situações, não é possível vislumbrar na taxa uma contraprestação do serviço público, no sentido de sinalagma ou
vínculo comutativo. A taxa é um tributo, portanto um dever ex lege.
Sua causa jurídica não é a prestação do serviço público, mas a realização do
fato imponível descrito na lei que a institui.
É claro que a hipótese de incidência da taxa de serviço é, precisamente, a prestação do serviço público – a realização de
uma atividade estatal diretamente referida ao sujeito passivo (usuário).
Portanto, o fato que desencadeia o dever de recolher a taxa é a prestação –
efetiva ou, em certos casos, potencial – do serviço. Em termos materiais, não
há distinção entre essa situação e relativa à cobrança de tarifa por serviços
concedidos. Em ambas, o dever de pagar vincula-se à realização da atividade
envolvida no serviço público.
Porém, os títulos jurídicos são distintos. Na relação tributária, a realização do serviço é
fato imponível, é a realização de um fato descrito hipoteticamente em uma norma como apto
a desencadear o seu comando. Na relação de serviço público, a realização
do serviço é prestação, cumprimento de dever jurídico que habilita
o prestador a exigir da contraparte (usuário) o adimplemento de sua obrigação
de pagar.
Por isso, o dever de recolher a taxa não integra a relação jurídica de prestação de serviço. Nos casos que envolvem a
instituição de taxa, não há delegação de serviço público (pois nesse
caso a remuneração deve ter a natureza de tarifa). Há apenas dois
envolvidos,o usuário e o prestador do serviço (Administração Pública).
Existe uma relação complexa de serviço público, em que se estabelece um
vínculo entre usuário e prestador, cada qual com sua
variedade de situações subjetivas. Porém, há uma outra relação, esta
tributária, envolvendo o Poder Público (como sujeito ativo do tributo) e o
usuário (como sujeito passivo do tributo).
Embora inconfundíveis, as relações são coordenadas. O vínculo de coordenação deriva de que se afetam
reciprocamente, sem que se possa reputar que uma é principal em relação à
outra. Sem a prestação do serviço, não se realiza o fato imponível da taxa e
não se desencadeia o comando da norma tributária correspondente. Sob esse
ângulo, a relação de serviço seria subordinante. Porém, pelo menos nos casos
em que o recolhimento da taxa tem um caráter habilitante para a
fruição do serviço (p. ex., o pagamento de pedágio em rodovia administrada
pelo Poder Público), a ausência de recolhimento da taxa bloqueia a fruição do
serviço. Nesse enfoque, subordinante seria a relação tributária da taxa.
Em vista disso, não há sentido em se buscar a identificação de uma relação jurídica
principal e outra acessória.
Ambas as relações jurídicas estão no mesmo plano, uma interferindo sobre a
outra. Daí aludir-se a relações jurídicas coordenadas. O direito
subjetivo em uma é afetado pelo status da outra. O direito à
prestação do serviço pode ser afetado pelo não-cumprimento do dever
jurídico
de recolher a taxa, do mesmo modo que esse dever pode não se desencadear caso
não seja efetivamente prestado ou posto à disposição do usuário o serviço.
Em termos técnicos, o usuário participa
apenas da relação de serviço público. Ao participar da relação tributária, o
sujeito(eventualmente, a mesma pessoa) o faz na condição de contribuinte.Porém,
a coordenação entre as duas relações jurídicas impede que se afastem de
modo
absoluto as duas posições. Assim, o direito de alguém ao não recolhimento de
uma taxa pode resultar de circunstâncias da própria relação tributária
(p.ex., descumprimento do princípio da anterioridade) ou de circunstâncias
da relação jurídica coordenada de serviço público (p. ex., a ausência de
prestação efetiva ou potencial do serviço). No primeiro caso, o sujeito
estará atuando exclusivamente na condição de contribuinte; na
segunda, será tanto contribuinte quanto usuário.
Essa distinção não é cerebrina. Tem efeitos práticos imediatos. A jurisprudência vem recusando legitimidade
extraordinária oriunda dos arts. 81 e 82 do CDC nas causas envolvendo contribuintes,que
seriam distintos de consumidores (ou usuários) de serviços públicos. Esse
raciocínio só é válido em relação a questões que se restrinjam à
relação tributária, sem afetar a relação coordenada de serviço público.
Valendo-se dos exemplos já referidos, não haveria legitimação extraordinária
para impugnar coletivamente a instituição de taxa sem observância do
princípio da anterioridade, porque esse fundamento é restrito ao estatuto
do contribuinte. Mas haveria legitimação para impugnação coletiva da
cobrança da taxa em face da ausência de prestação efetiva ou potencial do
serviço público, pois esse aspecto integra a relação jurídica de serviço
público – muito embora componha, também, a materialidade da hipótese de
incidência da taxa8.
II.3 - A peculiaridade do regime jurídico da taxa e a questão da comutatividade
Note-se que não é pacífica, embora seja predominante, a compreensão de que a taxa é tributo que não configura
contraprestação pelo
serviço público.
Segundo Paulo de Barros Carvalho, em
qualquer das hipóteses de instituição de taxas, prestação de serviço público
ou exercício de poder de polícia,“o caráter sinalagmático deste tributo
haverá demostrar-se à evidência”9. No mesmo sentido, Sacha
Calmon Navarro Coelho defende o caráter sinalagmático da taxa afirmando que“o
serviço deve ter como contraprestação individual a taxa”10.
Essa noção é fortemente combatida por Geraldo Ataliba, como se retrata adiante:
“As utilidades produzidas em regime de serviço público – por definição, à vista da utilidade pública em que sua produção se traduz – não podem ser objeto de preço.O estado não as produz em troca de remuneração; não age porque se as remunera.Não opera para ter contrapartida. O estado deve produzi-las porque a lei o determina. A contrapartida (taxa) é mera condição legal de acesso individual aos serviços ou utilidades. Serviço público não se vende. Não se compra. Presta-o o estado, porque a lei o determina. Utiliza-o o administrado porque dele necessita, ou porque a lei o constrange (esgoto, identificação, licença para construir etc.).(...)
“... se o serviço é público, deve ser desempenhado por força de lei, seu único móvel. O pagamento (taxa) é-lhe logicamente posterior: é mera conseqüência; não é essencial à relação de prestação-uso do serviço.
“Se o serviço não é público – o que só seu regime jurídico pode definir, e não preconceitos políticos, administrativos etc. – então pode ter por mola ou força impulsionadora o pagamento (preço) do particular que recebe esse serviço. Se se tratar de serviço público, não tem cabimento esse raciocínio”11.
A opinião de Ataliba é
subscrita, entre outros, por Roque Antonio Carrazza, para quem“o
fator desencadeante do serviço público não é o pagamento que a pessoa por ele
alcançada faz ao Estado, mas exclusivamente a lei, que determina sua
prestação”12. Flávio Bauer Novelli também afirma que a
taxa não pode representar uma contraprestação,por se tratar de gravame
imposto por lei àquele a que se refere o exercício da função pública13.
Tratando de figura análoga no direito espanhol, F. Javier Martin Fernandez
indica que“a taxa é alheia à idéia de
contraprestação”. Aponta que, mesmo em se aceitando a noção
econômica de contraprestação, esta é tão mediata na taxa como seria no
imposto. Uma coisa é a taxa ter por pressuposto a prestação de um
serviço
público; outra é que seja o seu equivalente econômico. Para o
doutrinador,“não
existe nenhum intercâmbio”, uma vez que a taxa é apenas
manifestação do dever de contribuir para a manutenção dos gastos
públicos”14.
Louis Trotabas também aponta que, embora a taxa seja similar a
contraprestações ou remunerações de serviços, não se pode confundir tais
remunerações com a taxa porque esta apresenta um caráter fiscal15.
Concordo com Ataliba16
quanto à impossibilidade de se vislumbrar comutatividade ou sinalagma entre a
taxa e a prestação do serviço público. A causa jurídica da prestação do
serviço público que enseja taxa (ou seja, o serviço público prestado
diretamente) é a incidência da lei, não a efetivação de uma contraprestação
pelo usuário. Segundo Mota Pinto, no negócio jurídico oneroso, do tipo
comutativo, cada uma das prestações ou atribuições é correspectivo (a
contrapartida) da outra, pelo que, se cada parte obtém da outra uma vantagem,
paga-a com um sacrifício que é visto como correspondente. Aponta que, nesse
negócio, as “partes consideram as duas prestações ligadas
reciprocamente pelo
vínculo da causalidade jurídica”17. Essa noção não é aplicável à
relação tributária. Isso não significa que a ausência de prestação do serviço
ou sua colocação à disposição do sujeito passivo seja desprovida de efeitos.
Não é,tanto que pode levar à ilegitimidade da cobrança da taxa. O
fundamental é reconhecer que não há um vínculo de causalidade jurídica entre
a taxa e a atuação do Poder Público.
A situação dos serviços prestados indiretamente, remunerados mediante tarifa, é
diferente.Deixa de haver duas relações jurídicas coordenadas e passa a
existir uma relação trilateral. Nesta, as posições do poder concedente e do
concessionário em relação à prestação do serviço público não se confundem. O
poder concedente (ou seja, o ente político titular do serviço) mantém, em
qualquer caso, o dever de promover a materialização do serviço – seja por
meio da conduta do concessionário, ainda que mediante o uso de instrumentos
de coerção, seja através de mecanismo que substitua o concessionário na
prestação do serviço. Por isso é que se asseguram ao poder concedente
competências de fiscalização, aplicação de penalidades, intervenção e
retomada da concessão. Esse dever do poder concedente tem origem legal e,
este sim, não tem qualquer caráter sinalagmático.
Porém, a posição do concessionário é distinta. Seu dever de prestar o serviço
público deriva dos termos da delegação (concessão ou permissão, p. ex.). A
remuneração que lhe é devida pelo usuário passa a ter caráter de
contraprestação, pois o vínculo que une concessionário e usuário não é uma
relação tributária, ex lege, mas a relação complexa da concessão – que tem
aspectos contratuais e regulamentares.
Isso não quer dizer que o inadimplemento do usuário
acarrete imediatamente o
desaparecimento do dever de prestação do serviço. Significa apenas que se
aplica o regulamento do serviço. Há casos em que se estipula um prazo de
tolerância, durante o qual o serviço é prestado de modo menos completo(como
ocorre na telefonia, p. ex.). Há outros em que dificilmente se poderia
cogitar de qualquer redução ou interrupção e o inadimplemento fará
surgir direitos do concessionário frente ao poder concedente (como no caso de
serviços de limpeza urbana, p. ex.).
Qualquer que seja a configuração dada ao serviço, o fato é que a tarifa é uma
contraprestação, um correspectivo da prestação do serviço público pelo
concessionário ou permissionário. Nisso se distingue da taxa, que não tem caráter
de contraprestação.
II.4 - A compulsoriedade da
fruição não afeta a qualificação jurídica da remuneração
Não cabe no âmbito deste trabalho uma análise ampla das distinções entre as taxas e tarifas quanto às hipóteses de sua aplicação18. Apenas pretendo apresentar uma conclusão sobre este tópico, que serve de premissa para os pontos seguintes.
A opinião doutrinária mais consolidada, que se reflete na jurisprudência
predominante, entende a compulsoriedade na fruição
do serviço como um impedimento à sua remuneração por meio de tarifa.
Aponta-se que, nesses casos, estar-se-ia diante de taxa porquanto(a)haveria
ato de autoridade (“império”) subordinando a conduta do usuário e isso não
poderia ser feito pelo prestador dos serviços (concessionário) e (b) o
dever de recolher o montante cobrado passaria a ser ex lege, pois
vinculado ao uso de um serviço legalmente obrigatório.
Não me parece que essas razões devam levar à descaracterização de
tarifas
nestes casos. Considero que o ato de autoridade privativo do Poder Público
relativo aos serviços de fruição compulsória está na definição
legislativa
da compulsoriedade. A partir daí, o fornecimento do serviço
desenvolve-se como qualquer outro. Nos termos do art. 175 da Constituição
Federal, será prestado de modo direto ou indireto, inclusive sob
regime de concessão. E sendo adotada a forma de concessão, a remuneração
correspondente terá a natureza de tarifa, não de taxa, exatamente porque sua
origem não é ex lege, mas convencional. Deriva do regime da
concessão, qualquer que seja a natureza que se lhe dê (contrato,
ato-condição, natureza complexa de contrato e regulamento).
A questão central está na legitimidade ou não da definição do serviço
como compulsório. É claro que apenas em situações excepcionais – como a
da limpeza urbana – um serviço público pode ser de fruição
obrigatória19.
Porém, sendo legitimamente definido como obrigatório pela lei, não existe
peculiaridade na sua forma de prestação ou remuneração em relação a qualquer
outro serviço.
A identificação da diferença entre taxa e tarifa a partir da compulsoriedade
do serviço – reputando-se que, sendo obrigatória a fruição, não é cabível
a remuneração por tarifa – parece resultar de uma assimilação indevida entre
esses dois momentos. Supõe-se que a imposição da tarifa nesses casos
teria caráter autoritativo, incompatível com o caráter privado (no
sentido de inexistência de vínculo de autoridade) da relação entre
concessionário e usuário. Porém, não há distinção entre uma situação e outra
no que se refere à obrigatoriedade do pagamento: ambas, taxa e tarifa, são
igualmente objeto de uma norma de obrigação. Da mesma forma, a exigência de
tarifa por serviços de uso facultativo ou obrigatório é idêntica. A norma que
torna obrigatório ou não o uso é outra, distinta da que estipula a obrigação
de pagar pelo serviço.
Assim, como se apontou, o momento autoritativo está na configuração legal
do serviço como obrigatório. Por ocasião da cobrança da tarifa ou da
prestação do serviço, tanto o concessionário quanto o usuário apenas dão
cumprimento à lei. Não há qualquer incompatibilidade entre o regime da
concessão – inclusive e especialmente quanto à exigência de tarifa – e
o caráter legalmente obrigatório da fruição dos serviços concedidos.
No regime de prestação direta do serviço, todos os deveres envolvidos têm
origem legal. Há dever ex lege de prestar o serviço e há dever ex
lege de
recolher a taxa. Quando se insere o dado da delegação do serviço,
altera-se
substancialmente a situação. O concessionário para a ter um dever
convencional de
prestar o serviço e o usuário passa a ter um dever legal, não
tributário, regulamentado pelos termos da concessão, de pagar a tarifa. A
natureza desse dever do usuário não se modifica quando a lei legitimamente
impõe a ele o uso do serviço fornecido pelo concessionário.
A definição desse dever do usuário como dever legal, não
convencional,toma como pressuposto de que o usuário individual não é
parte no contrato de concessão, embora a Sociedade ou os usuários
como categoria o sejam20. Assim, o usuário é atingido pela
disciplina da concessão do mesmo modo que é atingido por qualquer outro ato
administrativo praticado com base em lei.A origem dos deveres do usuário é
legal e regulamentar, não convencional. Ainda assim, não se pode atribuir a
tais deveres um caráter ex lege que os aproxime dos deveres
tributários.
Por outro lado, a consideração de que o Poder Público pode remunerar
diretamente o concessionário não afeta a conclusão de que o regime
próprio da concessão é o da remuneração mediante tarifas.
A variação das tarifas não é o único meio de preservação da equação
econômico-financeira da concessão. Mesmo se houvesse vedação à
alteração da remuneração do concessionário (p. ex., se fosse possível que se
remunerasse mediante taxas, alteráveis apenas de um exercício para o outro e
mediante lei),o equilíbrio seria preservado por meio de subvenções públicas,
redução de investimentos ou outros mecanismos.
Porém, o raciocínio que conduz à natureza não-tributária da
remuneração do
concessionário permanece íntegro. Embora se submeta ao princípio da
legalidade por ser objeto de atuação administrativa (de natureza normativa
ou homologatória, conforme o caso), a fixação da tarifa responde à
necessidade de variações imediatas e simplificadas, próprias do regime da
concessão. A estipulação e cobrança de tarifas ainda é central para o regime
da concessão.
A taxa e a tarifa são inconfundíveis, a tarifa correspondendo à remuneração
do serviço público concedido, independentemente do caráter facultativo ou
compulsório da sua fruição. Já por isso se conclui que os critérios
jurídicos atinentes à definição do montante da taxa e à identificação do seu
sujeito passivo não são necessariamente aplicáveis à tarifa. São institutos
diversos,que se dirigem ao atendimento de necessidades e valores também
distintos.
III - A ESTIPULAÇÃO DO MONTANTE DA TARIFA
III.1 - A relevância da identificação do usuário para a
estipulação
da tarifa
Ao se colocar o foco da noção de serviço público no usuário,
produz-se uma variedade de efeitos. Um deles é o relativo à estipulação do
valor da tarifa.Deve-se determinar quem é o usuário e qual a intensidade da
fruição que faz do serviço, a fim de se poder estipular – sem arbitrariedade
– o montante da tarifa.
As condições que derivam dessa premissa são o objeto específico deste
item.
III.2 - O regime de fixação das tarifas: princípios aplicáveis
(limites do exame)
A tarifa não se confunde com preço privado porque não é objeto de negociação.
É fixada segundo critérios de direito público, mediante ato de autoridade,
de acordo com pautas que consideram o interesse geral. Ainda que sua
definição específica possa derivar da proposta do licitante na concorrência
prévia à concessão (art. 9º e art. 15, I, da Lei nº 8.987/1995), os critérios
que levam à sua estipulação resultam de ato eminentemente administrativo.
Ademais, a definição da tarifa não faz parte do núcleo imutável da concessão
– que é composto pela equação econômico-financeira, não pelos elementos dessa
equação –e pode ser alterada no curso da concessão, desde que integralmente
preservada a equação contratual.
Desse modo, sua estipulação pressupõe a
conjugação dos inúmeros interesses conflitantes que se submetem à apreciação
administrativa. Sofre a influência do conjunto de princípios que disciplinam
a ação da Administração Pública. Reflete opções administrativas sobre a
condução dos serviços públicos em questão – o que pode resultar, p. ex., na
estipulação de tarifas inferiores ao custo do serviço, complementadas
mediante o aporte de recursos gerais disponíveis para a Administração.
Ainda assim, é possível identificar certos
princípios fundamentais específicos que orientam a fixação das tarifas.
Evidentemente, tais princípios não esgotam as pautas que se põem para a
Administração na definição dos critérios para afixação das tarifas quando da
licitação para a concessão ou no momento da sua eventual revisão, ao longo da
concessão21. Trata-se de quatro aspectos nucleares, que dizem respeito de
modo específico ao controle das tarifas.
A finalidade desta exposição não é exaurir o
tema em relação a cada um desses aspectos, mas ressaltar que a política
tarifária envolve princípios e objetivos completamente diversos dos que
pautam o exercício da competência tributária para a estipulação de taxas.
III.3- Princípio da igualdade entre os
usuários
III.3.1 - Aproximação com a noção de
capacidade contributiva
O princípio fundamental é o da igualdade
entre os usuários. Esse princípio tem inúmeros desdobramentos22. Sob
certo ângulo, aproxima-se da noção de capacidade contributiva, com suas duas
faces: a que impede o atingimento de situações que não revelem capacidade de
pagamento e a que impõe a adoção de mecanismos que atinjam efetivamente essa
capacidade,promovendo a igualdade material23.
Por critérios análogos, o princípio da
igualdade impede que se imponha tarifa a quem não é usuário e cria, em
princípio, obstáculo a que o usuário seja chamado a remunerar o serviço em
montante superior àquela parcela do custo que lhe é imputável24.
III.3.2 - As dificuldades na apuração do
“custo do serviço”
A idéia de o usuário ser responsável por uma
parcela do “custo do serviço” a ele imputável se relaciona com a polêmica
sobre se a tarifa deve corresponder ao custo médio ou ao custo marginal do
serviço. Essas são modalidades tipicamente aplicáveis à fixação de tarifas no
caso de serviços monopolísticos, nos quais se busca um controle das tarifas
por vinculação ao custo do serviço25. Marçal Justen Filho aponta as
dificuldades de ambas as alternativas e propõe soluções outras, destinadas a
incentivar a eficiência e a transferir aos usuários os ganhos correspondentes
(ou parte deles)26.
A questão aqui é que a isonomia na
distribuição dos encargos relativos passa a tomar em conta não a situação
isolada do usuário, mas um critério aproximativo que considera um usuário
ideal, teórico. A complexidade dos serviços torna impossível definir, de modo
preciso, qual a parcela da remuneração do prestador a ser imputada a cada
unidade de utilização do serviço.
Assim,a validade dos critérios de fixação da
tarifa frente ao princípio da isonomia será baseada na sua racionalidade e
proporcionalidade como instrumento para refletir, tanto quanto possível, o
uso individual do serviço pelo usuário, assim como para prevenir custos
desnecessários, estimulando a eficiência. Como regra,a ineficiência não deve
ser imputada ao usuário. Ou seja, o usuário não deve ser chamado a suportar
os ônus da ineficiência do prestador. É inválida, inclusive sob o ângulo da
isonomia, a adoção de sistema de tarifação que não seja idôneo para promover
a eficiência: nessa situação, o usuário estaria sendo chamado a suportar os
ônus econômicos de um fato (ineficiência) a que não teria dado causa.
III.3.3 - A questão do “financiamento
antecipado de obras”: a solidariedade entre gerações
Outro ponto relevante acerca da relação entre
a tarifa e o princípio da igualdade é o que diz respeito à solidariedade
entre gerações de usuários. A tarifação com base no custo do serviço envolve
normalmente a aferição do retorno do empreendimento com base em uma previsão
de receita, despesa e investimento ao longo do período da concessão (por meio
de um índice financeiro como a Taxa Interna de Retorno – TIR). Isso faz com
que a receita de um certo período – ou seja, a tarifa paga em um período –
seja tomada em conta para suportar investimentos realizados ao longo de toda
a concessão. Assim, em uma concessão rodoviária, as tarifas pagas hoje
compõem uma equação que permitirá ao prestador realizar obras de arte daqui a
dez anos, p. ex. Parte da doutrina sustenta que isso implicaria ofensa ao
princípio da isonomia (e a outros aspectos da disciplina da prestação de
serviços públicos), pois os usuários estariam financiando antecipadamente
tais obras; pagariam tarifas, mas não se beneficiariam das obras custeadas
por tais tarifas27.
Esse argumento não me parece procedente. As
tarifas fixadas segundo o custo do serviço têm em vista uma pluralidade de
encargos do concessionário e resultam de uma apuração matemática. Sempre que
a concessão envolve a realização de obras, é impossível a correspondência
absoluta entre o momento do pagamento da tarifa e o da realização da obra. A
fruição que corresponde ao montante da tarifa não é a da totalidade das obras
previstas na concessão, mas é a do serviço adequado (que consiste no serviço
prestado segundo os parâmetros fixados no edital, no contrato e na
regulamentação posterior do serviço como sendo obrigatórios para o
concessionário). Assim, no exemplo citado acima, o usuário que hoje paga a
tarifa tem como contrapartida o direito de obter a prestação adequada do
serviço hoje disponível e de que o concessionário tome as medidas necessárias
(e de que o poder concedente fiscalize eficazmente essa conduta) para que as
obras futuras sejam realizadas nos prazos previstos28. Ou, se não o forem, que
isso derive de atos legítimos da concessão (p.ex., alterações contratuais
que posterguem a realização de obras como forma de reequilíbrio contratual).
A circunstância de a tarifa refletir o valor
de obras futuras não ofende a isonomia29. Deve-se reconhecer a
existência de uma
solidariedade entre gerações de usuários, a fim de realizar a modicidade
tarifária como bem coletivo. Não se trata de redistribuir renda (como no caso
das tarifas sociais ou “extrafiscais”), mas de identificar o usuário e
sua
fruição a partir de parâmetros solidarísticos. O usuário apresenta
neste caso
um aspecto atual e um aspecto teórico, de usuário médio, vinculado à
realização dessa solidariedade entre gerações.
Não se pode ignorar, porém, a advertência de
Cassagne, que aponta como um dos possíveis riscos da regulação a pressão dos
usuários atuais, em detrimento de interesses de usuários futuros. Essa
pressão geraria um peso excessivo dos interesses setoriais afetados em cotejo
com interesses mais gerais, “que muitas vezes são representados pelo usuário
potencial ou futuro, ao qual não é justo imputar o peso econômico de decisões
cujo custo devem suportar as gerações atuais de usuários”30. Essa preocupação
deve ser cotejada com a noção de solidariedade entre gerações, que opera com
sentido duplo. Do mesmo modo que os usuários atuais podem ser chamados a
suportar parte do ônus econômico de encargos futuros do concessionário, os
usuários futuros podem ser encarregados de parte do ônus do serviço atual (p.
ex., certas obras ou prestações temporárias, cujo custo integrará ainda assim
a equação aplicável a todo o período da concessão). Contudo, não pode ser
tolerada a tentativa de alguma categoria de se excluir dessa solidariedade,
imputando à outra o ônus integral ou substancial.
III.3.4 - Tarifas sociais e “extrafiscais”
Em tópico anterior, ressalvou-se que a tarifa
poderia, em situações específicas, não corresponder precisamente ao custo do
serviço imputável ao usuário. Tais situações são aquelas em que, por expressa
determinação legal, a tarifa tem a finalidade de indução de comportamento
(assimilável ao caráter extrafiscal de certos tributos) ou de compensação
pela adoção de tarifas sociais (tarifas redistributivas).
Conforme Marçal Justen Filho, não é
impossível que se transfira o custo da tarifa social para a que é paga pelos
demais usuários nem há vedação a tarifas redistributivas ou extrafiscais, mas
se exige para isso autorização legislativa31. Nessa visão, a lei
poderia estipular tarifas diferenciadas a fim de redistribuir os ônus das
tarifas sociais32.
Minha opinião é mais restritiva. Reputo que
as tarifas sociais não devem ser compensadas por subsídios internos, mas por
subsídios públicos oriundos de receitas gerais. Essa é a única das
alternativas cogitáveis (ônus do concessionário, subsídio interno ou cruzado
ou subsídio público) que atende integralmente aos princípios constitucionais
aplicáveis (especialmente ao da capacidade contributiva) – embora sejam
comuns, na realidade, as situações de tarifas redistributivas custeadas
mediante incremento das tarifas de outras categorias ou de subsídios cruzados
(custeio de determinados serviços mediante receita oriunda de outros
serviços). A segunda das alternativas limita a noção de solidariedade, ao não
colher de toda a coletividade os recursos necessários ao benefício outorgado
com base na solidariedade social33 34 35. A primeira reconduz-se à segunda,
pois, como é assegurada a manutenção da equação econômico-financeira, o
custo correspondente é repassado às tarifas ou às receitas do concessionário
ou se traduz em redução de outros encargos, o que leva ao mesmo resultado.
Resta apenas a terceira, em que cabe ao Poder Público (o poder concedente)
suportar o custo das tarifas sociais ou redistributivas36.
Ressalve-se que são possíveis, até mesmo em
face do texto literal do art.13 da Lei nº 8.987/1995, tarifas diferenciadas
em face das condições técnicas e econômicas de prestação dos serviços37.
Em muitos casos, as tarifas aparentemente redistributivas enquadram-se
nessas hipóteses, em que não há distinção de tarifas com base em critérios
de solidariedade ou capacidade contributiva, mas diferenciação derivada
das condições de prestação dos serviços.
III.3.5 - Distribuição de ônus e igualdade:
limites das tarifas e subsídio público
O princípio da igualdade em relação à tarifa
tem outra face, ligada à generalidade do custeio. Não existem serviços
públicos sem custo. Os serviços não submetidos a contrapartida financeira
direta (tarifa) – ou seja, os serviços públicos gratuitos – são custeados
pela coletividade. Ou seja, na situação em que aparentemente ninguém paga,
todos pagam38. Os serviços gratuitos oneram especialmente os
não-usuários39.
Como exposto em nosso estudo conjunto com
Marçal Justen Filho, “a coleta do lixo (e demais atividades daí derivadas)
não são nunca prestadas gratuitamente. O custeio dessas atividades ou se faz
por toda a coletividade ou recairá sobre determinadas pessoas (aquelas que
produzem o lixo). Na ausência de cobrança de tarifa (ou taxa), o custo
correspondente é suportado pelas despesas públicas gerais. Ou seja, é
distribuído aos integrantes da coletividade sob a forma de impostos (tributos
não vinculados a uma atuação estatal). Isso representa, em última análise,
impor um ônus desequilibrado entre os membros da coletividade”40.
Isso implica que a máxima realização do
princípio da igualdade exige a imputação aos usuários, tanto quanto possível,
dos ônus econômicos derivados da utilização do serviço. Essa imputação deve
ser ponderada à luz do interesse público envolvido.Quanto mais intenso o
interesse coletivo no uso do serviço, menor a possibilidade de se imputar
exclusivamente ao usuário tais ônus econômicos(cabendo ao Poder Público, se
for o caso, subsidiar as tarifas). Eventualmente,o serviço pode ter
relevância tal que é prestado necessariamente de modo gratuito (cogite-se, p.
ex., do serviço de vacinação infantil). Nos serviços de menor relevância
coletiva, especialmente os prestados sob regime competitivo e de utilização
facultativa, a responsabilidade pessoal do usuário pode ser acentuada.
Portanto, a máxima realização do princípio
da igualdade pressupõe uma conjugação entre (a) a identificação do usuário,
(b) a quantificação da parcela do serviço – e, por conseguinte, do custo –
que lhe é imputável e (c) a percepção, tanto quanto possível, da remuneração
do serviço junto a seus usuários, desonerando o restante da coletividade (sem
prejuízo do subsídio público, quando cabível).
Há a necessidade de adoção de critérios
práticos e pragmáticos de identificação do usuário e de quantificação da
responsabilidade individual41. Não é cabível que a vinculação a
exigências formais excessivas torne impossível a estipulação das tarifas e o
custeio dos serviços pelos seus usuários42. Isso envolve, como já se viu,
critérios flexíveis na apuração do custo do serviço, a
compreensão adequada
de que a fruição contraposta à tarifa é a do serviço adequado e o
reconhecimento da solidariedade entre gerações.
A definição do montante individual da tarifa
(o que pressupõe a viabilidade de identificação de um usuário individual) é
informada por um princípio de praticabilidade. Deve haver uma composição
equilibrada entre a certeza quanto à identificação do usuário e a medição da
quantidade de serviço utilizada e a necessidade da cobrança da tarifa. Esses
fatores devem ser combinados de forma que nem a certeza nem a necessidade
sejam integralmente sacrificadas. Devem-se adotar presunções construídas
sobre indícios relevantes, de forma a simplificar e tornar mais razoável a
instituição da tarifa.
A cobrança de tarifa (ou, sob esse prisma,
também da taxa) como contrapartida pela utilização de serviço público realiza
o princípio da isonomia, já que exige de quem utiliza certo serviço que
remunere o seu prestador. Ou seja, paga apenas quem utiliza o serviço.
Considerar impossível a cobrança de tarifa (ou taxa) impede a adoção dessa
forma de remuneração e faz com que os serviços que beneficiam mais
intensamente certas pessoas sejam custeados pela coletividade43.
A construção dos critérios para a estipulação
da tarifa é, portanto, intensamente marcada pelo princípio da igualdade, seja
no plano da vedação da cobrança arbitrária, seja na indução à utilização de
critérios presuntivos que permita atingir, em bases razoáveis, a
distribuição eqüitativa dos ônus derivados da prestação dos serviços
públicos. Ao afastar a rigidez do regime tributário, a tarifa pode assumir
uma configuração flexível que permitirá atingir de modo mais eficaz a
isonomia entre os usuários. De certo modo, pode-se fazer aqui um
raciocínio
similar ao que explica a discricionariedade. A lei vincula quando quer
certeza, ainda que com o risco de decisões inadequadas (p. ex., maioridade
aos 18 anos, ainda que haja pessoas maduras com menos idade e
imaturas com idade superior); atribui discricionariedade quando apenas se
satisfaz com a decisão ótima. Também aqui, a flexibilidade da tarifa, em
cotejo com a rigidez da taxa, destina-se a que aquela atinja de modo mais
eficaz o conjunto das suas finalidades, entre elas a da igualdade.
III.3.6 - Ainda o subsídio público: o regime
das PPPs e a realização concreta da solidariedade
Neste ponto, é cabível um comentário
(conquanto acessório) acerca do regime instituído para as parcerias público privadas
(que, em grande parte dos casos, envolvem a prestação de
serviços públicos). O sistema introduzido pelo art. 2º, §§ 1º e 2º,da Lei nº
11.079/2004, especialmente no que se refere à consagração legislativa de
modos e critérios para o pagamento de toda ou parte da remuneração do
concessionário pelo Poder Público, pode configurar um avanço importante
em termos de realização da solidariedade social (art. 3º, I, da Constituição)
–além de estabelecer mecanismo importante de controle social dos mecanismos
de concretização da solidariedade.
Como se apontou acima, discute-se acerca da
solução a ser dada ao problema das tarifas sociais ou beneficiadas.
Admite-se, de um lado, que é necessário, para a realização da dignidade da
pessoa humana (base da noção de serviço público), que certas categorias de
usuários paguem tarifas reduzidas ou mesmo sejam delas isentas, caso
contrário não teriam acesso ao serviço. No entanto, debate-se sobre como
realizar o custeio de tais tarifas beneficiadas – ou seja, sobre
quem deve
suportar a diferença entre o custo efetivo do serviço e a tarifa cobrada
de tais categorias de usuários. Uma proposta, defendida por Marçal Justen
Filho44 ,baseia-se na aplicação da noção de capacidade contributiva às
tarifas, de modo que haveria tarifas redistributivas: as categorias mais
abastadas – o que se revelaria pela intensidade ou pelo perfil do consumo –
suportariam tarifas mais elevadas, que subsidiariam (em uma espécie de
subsídio cruzado) as tarifas beneficiadas de outras categorias. Desse modo, a
solidariedade se realizaria de modo imediato e interno ao próprio serviço
concedido.
A alternativa a essa proposta seria adotar os
instrumentos tributários (basicamente os impostos) para atingir a capacidade
contributiva, abastecendo o Estado dos recursos necessários para, ele
próprio, subsidiar as tarifas. Desse modo, a realização da solidariedade
dar-se-ia de modo indireto, não internamente ao serviço concedido, mas pela
alocação de recursos públicos. Essa alternativa corresponde de modo mais
estrito à configuração constitucional do poder de tributar. Um usuário das
categorias atingidas pela tarifa redistributiva poderia invocar seu direito
fundamental de ter a sua capacidade contributiva afetada apenas pelos
instrumentos previstos na Constituição (impostos nominados,instituídos por
lei não-retroativa e que obedeça a anterioridade, ou impostos inominados
criados por lei complementar da União).
Naturalmente, o subsídio público das tarifas
exige uma avaliação política e ideológica anterior, ligada à alocação de
recursos públicos. Diante da limitação de capacidade financeira (a chamada
reserva do possível), o Estado –não a Administração, mas toda a sua
estrutura normativa e concreta, incluindo a Constituição e o Poder
Legislativo – deve optar por alocar os recursos do modo mais eficiente.
Deverá perguntar-se, p. ex., se o modo mais adequado de realizar os valores
constitucionais consiste em subsidiar a tarifa de pedágio ou assegurar
transporte coletivo mais eficiente e barato. Ou ambos, cada qual de modo
parcial. O subsídio público para as tarifas – ou mesmo o subsídio
cruzado, interno ao serviço – pressupõe uma decisão consciente sobre
esse ponto.
A vantagem da opção pela realização interna
da solidariedade, por meio de tarifas redistributivas, relaciona-se com a sua
efetividade. A receita resultante da cobrança de tais tarifas mais elevadas é
diretamente vinculada ao custeio das tarifas beneficiadas, o que impede a sua
utilização para outro fim. Além disso, o controle social nos serviços
concedidos é mais presente e eficaz que o controle social (possível, mas não
usualmente praticado) da alocação de recursos públicos. O problema da
alternativa de se adotar os instrumentos tributários está no risco de
perenização da falta de destinação adequada dos recursos, que ingressam nos
cofres públicos e não são de fato utilizados para a realização da
solidariedade no que se refere aos serviços em questão.
O regime da PPP introduzido pela Lei nº
11.079/2004 traz um novo perfil para esse tema. Pode ser uma inovação
fundamental para assegurar a realização da solidariedade, mesmo que não se
adote o sistema de tarifas redistributivas. Ao prever (i) a possibilidade de
custeio total ou parcial dos serviços pelo Poder Público e (ii) mecanismos de
vinculação de recursos públicos a esse custeio, a lei federal elimina o
problema fundamental existente na opção tributária de
realização da
solidariedade. É possível, por essa via, assegurar que os recursos
públicos,
de origem tributária, necessários à concretização da solidariedade
atingirão
efetivamente o seu destino.
Por outro lado, ao adotar o regime de
concessão, a PPP incorpora as construções já existentes sobre controle
social. Assim, os organismos institucionais (como o Ministério Público), os
órgãos de controle e regulação (agências reguladoras e Tribunais de Contas) e
as entidades representativas de usuários, assim como os próprios usuários
individuais, passam a interferir de modo mais efetivo na verificação dessa
destinação.
Esse pode ser um ponto de grande evolução, se
aplicada adequadamente a lei. O diploma assegura que a adoção dos
instrumentos constitucionais tributários para a captação da capacidade
contributiva, em respeito às determinantes do sistema constitucional
tributário, não resultará na frustração do objetivo de realização
concreta da
solidariedade no âmbito de cada serviço público.
III.4- Princípio da modicidade de tarifas
O segundo princípio que atua na estipulação
de tarifas é o da modicidade (art. 6º,§ 1º, da Lei nº 8.987/1995). A tarifa
deve representar o menor custo possível para a realização do serviço nos
termos estipulados validamente no edital, no contrato de concessão e na
regulamentação posterior do serviço. A estipulação válida aqui pressupõe,
inclusive, a possibilidade de participação dos usuários nos momentos
apropriados.
Esse princípio não significa que o serviço
deva ser gratuito nem deficitário. A razão para a modicidade tarifária é a de
que a remuneração pela prestação do serviço não pode ter dimensão que torne
impossível ou excessivamente onerosa sua utilização. Se o usuário é
instrumental para a realização dos valores subjacentes à instituição de um
serviço público, não há sentido em que o montante das tarifas impeça, em
termos práticos, o seu acesso ao serviço.Novamente, a aplicação concreta
desse princípio variará segundo a essencialidade do serviço. Os serviços
menos essenciais admitem tarifas menos afetadas pela modicidade; os mais
essenciais podem exigir até mesmo subsídios públicos destinados a tornar mais
acessível a tarifa. Afinal, haveria óbvia frustração da garantia
constitucional (de isonomia) caso um serviço público, destinado por
definição
à igualação material, fosse prestado mediante a exigência de taxas (ou
de
tarifas, no caso de serviços prestados mediante concessão ou permissão)
que impedissem o acesso precisamente dos destinatários da igualação. A
fixação de tarifas sociais, de isenção de tarifas dentro de certos limites,
sempre em atenção às condições do usuário, é determinação constitucional
derivada da própria natureza do serviço público45.
A modicidade tarifária não significa que a
tarifa deva ser fixada no montante mais cômodo para o usuário. Mesmo porque
há uma pluralidade de usuários, em condições econômicas variadas – assim como
uma multiplicidade de outros interesses relevantes a considerar.
Em estudo sobre a história do Direito
Econômico, Egon Bockmann Moreira menciona os efeitos desastrosos da política
tarifária vigente no início da década de 1940 (baseada em remuneração
destinada a cobrir o custo histórico dos investimentos mais uma rentabilidade
fixa de 10% ao ano), que produziu a inviabilização da gestão privada dos
serviços públicos, sua nacionalização e prestação direta pelo Estado ao longo
da segunda metade do século XX46 – com os conhecidos efeitos negativos sobre
as finanças públicas e sobre as próprias tarifas. Esse é um exemplo de como
medidas aparentemente benéficas ao interesse presumível dos usuários podem
produzir resultado completamente oposto à proteção desse interesse. A
compreensão inadequada da modicidade tarifária apresenta esse risco: em lugar
de garantir ao usuário o serviço adequado pela menor tarifa, pode tornar
impossível a prestação e remeter o usuário a uma situação de ausência de
serviço.
A tarifa deve ser a menor possível, mas
suficiente para os objetivos pretendidos pela Administração com sua
instituição. Se a tarifa for prevista como a fonte de custeio única de um
certo serviço, será módica se for a menor possível que permita realizar
adequadamente esse custeio. Se ainda assim for excessiva para os usuários,
caberá ao Poder Público conceber novas fontes de custeio, mas não terá havido
ofensa ao princípio da modicidade de tarifas. Isso não significa que o
custeio público nesse caso seja apenas facultativo. Em certas situações
(de serviços de grande essencialidade e de usuários sem capacidade de
pagamento), as únicas alternativas serão a prestação direta do serviço ou o
subsídio público ao concessionário. Mas isso não é derivação do princípio da
modicidade tarifária, mas principalmente do princípio da isonomia.
O direito argentino identifica um direito dos
usuários à impugnação de tarifas excessivas. O fundamento é o de que a lei
assegura o direito de pagar tarifas justas e razoáveis (correspondendo às
tarifas módicas do nosso sistema ou ao prix abordable francês) – de onde se
extrai tanto o direito do concessionário de impugnar tarifas insuficientes,
que não permitam o equilíbrio da concessão,quanto o direito de impugnação
pelo usuário, com base na excessividade da cobrança47.
Essa solução é aplicável no Brasil. O
princípio da modicidade tarifária admite impugnações individuais (ou
coletivas) dos usuários ou do concessionário.
III.5- Princípio da manutenção da equação
econômico-financeira da delegação de serviço público
Conjuga-se aos dois anteriores o princípio
do equilíbrio econômico-financeiro do serviço. Já se insinuou sua existência
ao tratar da modicidade de tarifas, que é afetada pelo custo de manutenção do
serviço em funcionamento. Não é cabível, para o atendimento do princípio da
modicidade tarifária, fixar sem providências adicionais a tarifa em montante
que gere deficiência no financiamento dos serviços48.
Tais providências adicionais consistem em
formas de financiamento direto pelo Poder Público, derivadas de outras fontes
de recurso. Podem vir em favor do concessionário ou da própria entidade
pública responsável pela prestação direta do serviço49.
A situação é distinta conforme o serviço seja
prestado diretamente pelo Poder Público ou mediante concessão. No primeiro
caso, não há a aplicação do princípio da intangibilidade da equação
econômico-financeira. A questão passa a ser atinente à manutenção do
equilíbrio orçamentário.
A opinião doutrinária predominante é a de que
não se extrai, da Constituição Federal, um princípio orçamentário de
equilíbrio, que impeça o Poder Público de em momento algum atuar com
déficit50.
Porém, há constrangimentos infra constitucionais, como os da LC nº101/2000
(Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF), que exigem a compatibilização
entre
as atividades do Poder Público e as condições do orçamento. O serviço
público prestado diretamente é atividade sujeita ao art. 17 da LRF. Nada impede que
a
tarifa seja fixada em montante insuficiente para o custeio do serviço,desde
que o Poder Público possa valer-se de outras fontes de recursos. O conjunto
de fontes de financiamento deve ser compatível com a atividade para que ela
possa ser iniciada ou mantida. Também devem ser respeitadas a reserva de
lei para a estipulação do orçamento e a reserva de iniciativa do Poder
Executivo para as leis orçamentárias, derivadas do art. 165, III, da
Constituição51.
No caso dos serviços concedidos, há previsão
constitucional (art. 37, XXI, da Constituição Federal) e legal (arts. 9o e 10
da Lei nº 8.987/1995) de preservação do equilíbrio econômico-financeiro da
concessão.
Esse é um fator a ser levado em consideração
na estipulação da tarifa52. É claro que a tarifa não é o único mecanismo
de
vantagem do concessionário, pelo que o equilíbrio pode ser mantido mesmo
se fixada a tarifa em montante insuficiente para o custeio pleno da
concessão.Pode-se cogitar de tarifa inferior à necessária, acompanhada de
pagamentos feitos diretamente pelo Poder Público. Ou ainda, no curso da
concessão, de revisões contratuais que reduzam a tarifa e, concomitantemente,
encargos do concessionário – dando assim outra feição à concessão e tornando
suficiente a tarifa reduzida.
O fundamental é ter claro que a fixação da
tarifa interfere no equilíbrio econômico-financeiro do serviço concedido e na
estrutura orçamentária do serviço prestado diretamente53. E mais:
as considerações do Poder Público ao manter o equilíbrio contratual não se
exaurem na manutenção da concessão atual, mas na garantia de um quadro
jurídico estável que permita a outros possíveis concessionários estimular-se
para a participação em novos empreendimentos54.
Por isso, a manutenção desse equilíbrio
contratual ou orçamentário é um dos fatores que se conjugam na estipulação da
tarifa. Ao mesmo tempo em que contempla a igualdade entre usuários e a
modicidade de tarifas, o Poder Público é obrigado a preservar o equilíbrio
econômico do serviço. A fixação da tarifa é condicionada – principalmente,
porque inúmeros outros fatores interferem nessa atuação administrativa – pela
aplicação conjunta desses três princípios, sempre com o objetivo instrumental
de perseguir a eficiência.
III.6- O objetivo de eficiência
O último aspecto específico que é levado em
conta na fixação ou revisão da tarifa é a eficiência – inclusive, mas não só,
por força da inclusão expressa desse parâmetro no art. 37 da Constituição.
São conhecidas as construções da teoria
econômica sobre a busca da eficiência por meio da tarifação. Adotam-se
mecanismos de reajuste (p. ex., IPC-X, IPC-X+Y) destinados a incentivar a
eficiência dos prestadores, especialmente no caso de serviços delegados – e
ainda mais particularmente nos serviços prestados em regime de monopólio. A
regulação das tarifas tem o propósito de, ao mesmo tempo em que se assegura o
equilíbrio da concessão, promover o incremento de eficiência55.
A eficiência é um objetivo instrumental.
Relaciona-se com o uso racional dos recursos, o que se reflete em todas as
etapas do serviço, desde a sua concepção.É um meio para se atingir as
finalidades buscadas com a prestação do serviço. A ineficiência onera essa
prestação, o que produz um reflexo imediato sobre o usuário (na elevação das
tarifas ou na impossibilidade de sua redução progressiva) ou sobre a
sociedade (na necessidade de instituição ou manutenção de subsídios
públicos).
Não é válido configurar a tarifa de modo que
não se estimule a eficiência – ou, ainda pior, configurá-la de modo que se
premie a ineficiência. O usuário detém legitimidade para impugnar, de modo
isolado (ação popular, p. ex.) ou coletivo(ação civil pública, mandado de
segurança coletivo), uma tal configuração dos critérios de fixação da tarifa.
Já se aludiu a isto em tópico anterior ao se tratar do princípio da isonomia.
III.7- Tarifa como elemento caracterizador
da relação direta
Não se pode desconsiderar a tarifa como forte
indicador da existência de uma relação direta entre o prestador do serviço e
o usuário. Na medida em que exista a cobrança de tarifa, identifica-se um
credor e um devedor da contrapartida do serviço. Exterioriza-se na obrigação
de pagar a tarifa um dos aspectos da relação jurídica trilateral de serviço
público concedido.
Por isso é que deve inverter a equação e
tomar as condições dessa relação jurídica como determinantes da fixação da
tarifa. Somente pode ser eleito como sujeito à tarifa o usuário, aquele que
seja objetivamente identificável como estando na posição de utilizador da
prestação realizada pelo Estado ou seu delegatário. O montante da tarifa deve
refletir, de modo razoável, a intensidade da fruição.Também a identificação
objetiva do usuário é submetida a critérios de razoabilidade.
A variedade de serviços públicos impede que
se adote um conceito único de uso do serviço público a fim de se poder
apartar o usuário de terceiros, beneficiários ou não.
Há situações limítrofes. Um transeunte que
sofre dano ao aguardar um ônibus é já usuário do serviço? A relação de uso só
se inicia com o ingresso no ônibus, já que o candidato a usuário pode a
qualquer tempo desistir de fazer uso do serviço e seguir seu caminho? A
questão pode ser relevante para determinar certos aspectos do regime jurídico
aplicável a uma controvérsia envolvendo sujeito nessa situação.
A utilização do serviço vincula-se ao
recebimento da prestação de modo pessoal. O usuário é destinatário de uma
utilidade, que pode ou não lhe ser benéfica. Não são incomuns as situações em
que, da prestação de serviço, resulta uma situação percebida como gravosa
pelo usuário, o que demonstra a ausência de vínculo necessário entre uso e
benefício. Mas a condição de beneficiário de um serviço é um indício a ser
considerado para a identificação do usuário. O ponto fundamental é ser o
usuário o destinatário, o receptor da utilidade correspondente ao objeto
material do serviço público.
III.8- Risco de arbitrariedade na
estipulação da tarifa
Se a tarifa é a manifestação econômica da
relação direta entre prestador e usuário, não pode ser fixada sem ter em
vista a situação pessoal do usuário. Isso não significa necessariamente a
consideração de dados subjetivos de cada usuário efetivo, mas a submissão da
tarifa às condições objetivas que caracterizam o usuário.
Assim, a tarifa não pode ser cobrada de quem
não for qualificável como usuário. Também não pode ser fixada em valor que
não reflita o uso do serviço – ressalvadas as hipóteses excepcionais de
tarifas subsidiadas ou de caráter promocional.
Caso contrário, haveria arbitrariedade e
ofensa aos princípios que disciplinam afixação da tarifa. Esse ponto é
especialmente relevante na medida em que se reconhece que a estipulação da
tarifa não dispensa o emprego de presunções tanto na identificação do usuário
quanto na quantificação do uso do serviço.
A complexidade dos serviços não permite, em
todos os casos, a percepção imediata de quem são os usuários envolvidos e da
quantidade de serviço utilizada por cada qual. Mas o princípio da igualdade –
em sua feição de generalidade na distribuição dos encargos pelo custeio do
serviço – exige certa largueza na identificação desses fatores. A
não-identificação de um usuário e de sua responsabilidade pessoal por uso do
serviço implica a atribuição do ônus correspondente à coletividade56.
Conquanto isso seja possível e desejável em
muitos casos, acarretará sempre uma distribuição social dos custos atinentes
ao uso do serviço por indivíduos específicos. Por essa razão, deve resultar
da opção do legislador e com base em relevantes razões de interesse público.
Não deve derivar da exacerbação de exigências formais na identificação do
usuário responsável pelo pagamento de tarifas.
A alusão ao emprego de presunções é relevante
porque afasta a adoção de meras ficções. Os institutos distinguem-se porque,
na presunção, parte-se de um indício conhecido e, por meio de uma relação
lógica também conhecida, considera-se existente um fato desconhecido. A
ficção tem mecanismo diverso. Assume-se a diferença entre as situações, mas
se consideram as situações distintas como idênticas para determinados
efeitos. Estipula-se que um fato,diverso de outro, será submetido ao mesmo
regime jurídico57.
A adoção de ficções na identificação do
usuário configura arbitrariedade e acarreta a invalidade das conseqüências
derivadas dessa identificação, como a exigência de tarifa. Mas o emprego de
presunções é legítimo e necessário. A complexidade dos serviços não é
compatível com a exigência de exatidão matemática. Tanto a identificação da
pessoa do usuário quanto a definição do montante da tarifa pressupõem, em
muitos casos, a adoção de critérios aproximativos, que permitam a aplicação
mais intensa possível dos princípios disciplinadores dessa atuação pública.
IV -DISTINÇÃO ENTRE OS CRITÉRIOS PARA
FIXAÇÃO DE TAXAS E DE TARIFAS
IV.1 -Os critérios para a criação de taxas
de serviço
Nos termos do art. 145, II, da Constituição
Federal, a criação das taxas de serviço obedece aos seguintes critérios: (a)
o serviço público deve ser específico e divisível; (b) o serviço público deve
ser efetiva ou potencialmente utilizado; (c) o serviço público deve ser
prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.
Os requisitos (b) e (c) se confundem. A noção
de “utilização potencial” corresponde à situação daquele que vê um certo
serviço posto à sua disposição.
A doutrina costuma condicionar a instituição
de taxa por serviço fruível (o serviço posto à disposição) do usuário à
compulsoriedade do serviço. Assim, nos serviços de fruição obrigatória, seria
possível a cobrança de taxa por mera disponibilidade do serviço, haja ou não
a fruição efetiva.
O raciocínio causa perplexidade inicial pela
admissão implícita da possibilidade de ausência de fruição efetiva em serviço
de fruição obrigatória. Imagine-se um serviço de fornecimento de água
potável, de fruição obrigatória. Torna-se compulsório por razões de interesse
público, para cuja realização o uso efetivo da água tratada é instrumental
(pressupondo-se ainda que a água é um fator necessário da vida, não existindo
a possibilidade de mera abstenção do uso). Não basta para o atendimento do
interesse público que haja a cobrança da taxa; exige-se a fruição efetiva do
serviço, sob pena de frustração das razões que levaram à sua criação como
serviço obrigatório.
Porém, assume algum sentido na medida em que
reconhece a impossibilidade de cobrança pela mera disponibilidade do serviço
nos casos em que a sua utilização é facultativa. Afinal, se o usuário pode
escolher utilizar ou não o serviço, não é cabível pretender realizar cobrança
pela mera colocação do serviço à sua disposição. Só há sentido em se realizar
a cobrança pela mera disponibilidade do serviço se o usuário for obrigado a
utilizá-lo. Ressalvem-se as situações nas quais o usuário, voluntariamente,
assume o dever de remunerar o prestador pela mera disponibilidade de serviço
concedido de utilização facultativa. Assim, p. ex., não há invalidade na
cobrança de uma tarifa mínima de telefonia, uma vez que se integra ao regime
voluntariamente aceito pelo usuário ao aderir ao serviço. A questão passa a
ser a do controle, por meio da regulação, da necessidade e razoabilidade
dessa cobrança pelo prestador.
Em interessante estudo, Luiz Alberto Pereira
Filho defende a tese de que não é a compulsoriedade, mas a possibilidade de
identificação a priori do usuário que determinaria a possibilidade de
cobrança da taxa por serviço fruível: “Será inconstitucional, portanto, a
taxa pela colocação do serviço à disposição do contribuinte, se o sujeito
passivo não puder ser identificado pelo sujeito ativo, sem que, para isto,
haja uma colaboração do primeiro”58.
Embora na maior parte dos casos de
possibilidade de identificação a priori do usuário (e da quantidade de
serviço imputável a ele) se esteja diante de serviços de fruição obrigatória,
pode-se cogitar também de situações envolvendo serviços facultativos. As
chamadas tarifas mínimas relativas a serviços facultativos como os
de
telecomunicações têm esse sentido. A partir da adesão ao serviço, a
tarifa é
cobrada pela disponibilidade do serviço, ainda que não materialmente
utilizado pelo usuário.
IV.2 -Os conceitos de ‘especificidade’ e de
‘divisibilidade’
No âmbito do direito tributário, os conceitos
de especificidade e divisibilidade encontram-se definidos normativamente pelo
art. 79 do CTN. Na visão predominante no direito tributário, os dois
conceitos se conjugam para denotar os chamados serviços públicos uti
singuli,
fruíveis por usuários determinados.
O regime jurídico da taxa pressupõe a
configuração de um serviço dito uti singuli caracterizado a partir dos
critérios de especificidade e divisibilidade, previstos do art. 145, II, da
Constituição Federal e detalhados no art. 79 do CTN.
Mesmo no âmbito do direito tributário,
admite-se a adoção de critérios de razoabilidade na repartição do valor da
taxa entre os usuários. Ainda assim, o núcleo da definição acerca do
cabimento ou não da instituição da taxa está na aplicação dos conceitos de
especificidade e divisibilidade. Investiga-se se os serviços são passíveis de
utilização separada pelos seus usuários e se é possível destacar unidades de
utilização.
IV.3 -Distinção entre os pressupostos e
critérios para a criação de taxas de serviço e tarifas
A exposição precedente deixa claras as
distinções entre taxas e tarifas no que se refere aos pressupostos e
critérios de instituição. Os regimes são inconfundíveis. Não são aplicáveis
às tarifas os critérios normativamente previstos para a instituição de taxas.
Os arts. 145, II, da Constituição e 79 do CTN
não correspondem a uma definição normativa de serviço público nem de
serviço
público uti singuli. São apenas a definição do pressuposto para a instituição
de taxas de serviço. Não podem ser extrapolados para configurar condição para
a criação de tarifas.
A instituição de tarifa como contrapartida de
um serviço público pressupõe a possibilidade de identificação de um usuário
(no caso, usuário hipotético) e de alguma medida – ainda que aproximada – de
utilização do serviço.
Essa identificação não se submete aos
critérios de especificidade e divisibilidade. Importa determinar se alguém
pode ser considerado como passível de integrar uma relação jurídica com o
concessionário, ocupando a posição de titular do direito subjetivo a uma
prestação de serviço público. Além disso, exige-se a possibilidade de
estabelecer alguma medida para a remuneração do serviço.
Não se exige que seja possível determinar,
com rigor, uma unidade de utilização do serviço e a extensão exata da
responsabilidade de cada usuário. Basta que se estabeleça um vínculo razoável
entre o usuário e o serviço prestado, a fim de que se possa imputar ao
usuário ao menos uma parcela do custo do serviço de que desfruta.
Por outro lado, a partir do raciocínio
criticado por Luiz Alberto Pereira Filho (o de que a compulsoriedade da
fruição é o que determina a possibilidade de taxas por serviço fruível),
grande parte da doutrina publicística vislumbra a impossibilidade de cobrança
de tarifas vinculadas à mera colocação do serviço público à disposição do
usuário. Alude-se a que as taxas teriam essa virtualidade, não as tarifas.
Portanto, a opção (para os que a admitem) por um regime de tarifas eliminaria
os rigores do direito tributário, mas em contrapartida não permitiria a
cobrança por serviço fruível.
Não existe razão para a distinção. A previsão
constitucional explícita atinente às taxas não implica vedação relativa às
tarifas. Também não existe vínculo entre a cobrança de tarifa e o ato de
autoridade consistente na instituição do serviço como de fruição compulsória.
Como já se apontou, são momentos diversos: se o serviço é declarado
compulsório pela lei, não há ato de autoridade na cobrança da tarifa
correspondente. Por fim, a própria noção de compulsoriedade como
critério a
ser adotado nesses casos é questionável.
Sendo identificável o usuário e a parcela de
serviço a ele imputável, é possível a cobrança de tarifa por serviços
fruíveis mesmo de uso facultativo. Essa premissa reconduz os casos de serviço
facultativo e de serviço obrigatório a um só critério. No serviço facultativo
de telefonia, p. ex., em que há cobrança de uma tarifa mínima (assinatura), a
possibilidade da cobrança por mera colocação do serviço à disposição resulta
de que é possível identificar a priori o usuário e a intensidade da fruição
(mínima potencial). Do mesmo modo, no serviço obrigatório de coleta de lixo,
também é possível identificar a priori o usuário e a intensidade dessa
fruição mínima potencial. Embora haja diferenças quanto à natureza do uso
(que é exercício de uma faculdade em um caso e cumprimento de um dever
jurídico no outro) e eventualmente quanto à fonte do dever de pagar (legal
tributária, no caso da taxa, e legal, regulamentar e contratual, no
caso da tarifa), não existe distinção no que se refere ao critério para admissibilidade da
cobrança por serviço potencial.
IV.4 -Os fatores adicionais envolvidos na
criação de tarifas: equilíbrio e viabilidade econômica da concessão
O que é determinante no caso da estipulação
da tarifa, em comparação com o regime da taxa, é o concurso de fatores não
considerados quando se cogita da instituição de taxas.
Tanto na criação de taxas de serviço como de
tarifas, busca-se a realização do princípio da isonomia, imputando ao usuário
o custo da prestação do serviço. Porém, a instituição de tarifas tem ainda
outras condicionantes.
IV.4.1- A tarifa não é uma espécie
tributária
Em primeiro lugar, não se trata de exação
tributária. Não é possível submetê-la ao mesmo regime da taxa. A competência
tributária é objeto de disciplina estrita. Reputa-se que os princípios
tributários, como o da estrita legalidade, configuram direito
fundamental. As
construções teóricas formuladas acerca das taxas não são integralmente
aproveitáveis à tarifa.
IV.4.2- O equilíbrio econômico do serviço e
a possibilidade de delegação
Depois, a estipulação da tarifa tem o papel
de tornar equilibrada e economicamente viável a prestação dos serviços de
modo direto ou mediante delegação. A ausência de identificação de um usuário
e, se for o caso, da quantificação da tarifa correspondente implica uma
dificuldade adicional para a prestação por delegação. Significa, por
conseguinte, a inviabilidade de acesso aos recursos técnicos e econômicos do
possível concessionário. Representa a vedação a que o Poder Público se valha
desse mecanismo de prestação de serviços públicos, exigindo que os serviços
sejam (se o forem) prestados mediante o concurso de recursos orçamentários –
ainda que mediante os instrumentos da Lei nº 11.079/2004.
É notória ou, quando menos, comumente
reconhecida a incapacidade de investimento do Estado brasileiro59. Também é
inegável a contribuição positiva que pode derivar da participação privada,
com recursos econômicos e tecnologia, no desenvolvimento dos serviços
públicos. Não é possível que a aplicação de conceitos próprios do direito
tributário pudesse levar, virtualmente, à ausência de prestação dos serviços
ou à ineficiência na sua execução.
Essa consideração não está presente na
aplicação das regras atinentes à instituição de taxas. Os arts. 145, II, da
Constituição Federal, e 79 do CTN são normas de contenção do poder estatal.
Destinam-se a limitar o poder de tributar, estabelecendo pautas
intransponíveis acerca do exercício da competência tributária. A disciplina
acerca da prestação de serviços públicos – inclusive no que se refere à
criação de tarifas – tem caráter afirmativo. Busca tornar possível o desfrute
de serviços públicos, mediante a adoção do instrumento jurídico mais
adequado. Daí deriva um vetor positivo de interpretação, que
conduz à adoção
de critérios aproximativos de identificação do usuário e de fixação do valor
das tarifas correspondentes à utilização do serviço.
IV.4.3- A possibilidade de concessão (e
remuneração mediante tarifa) de serviços públicos compulsórios e meramente
fruíveis (postos à disposição dos usuários)
Ressalve-se, por fim, e retomando o que já
foi dito acima, que não haveria qualquer obstáculo a que uma tarifa fosse
exigida em face do mero uso potencial dos serviços pelos usuários.
Os serviços remunerados mediante tarifa podem
ser compulsórios e podem ser meramente fruíveis, ou seja, ser apenas postos à
disposição do usuário, não utilizados de modo efetivo. E há serviços que,
ademais dessas características, ainda permitem, antecipadamente, a definição
de quem são seus usuários e qual a medida de serviço a ser atribuída a cada
qual. Nesse caso, estão presentes os requisitos para a exigência de
remuneração pela colocação de serviços à disposição dos usuários.
Não há qualquer peculiaridade por se tratar
de tarifa. A possibilidade de cobrança por serviços postos à disposição do
usuário não é exclusiva das taxas. Nada impede que o mesmo regime seja
adotado em relação a tarifas. Também nesse caso, os serviços serão
obrigatórios – compulsoriamente prestados e compulsoriamente fruídos – e
haverá a necessidade de manutenção de uma rede de suporte aos serviços, o que
justifica a percepção de uma tarifa mínima pela colocação do serviço à
disposição do usuário.
Tomando-se como exemplo os serviços de
fornecimento de água potável, coleta de esgoto ou de limpeza urbana, havendo
ou não consumo real, a água estará sendo mantida nos reservatórios mediante
tratamento adequado, as coletas de esgoto e lixo terão lugar e os resíduos
coletados serão tratados ou mantidos em condições adequadas. O serviço é
permanente, assim como seus custos. As mesmas razões que inspiram a
autorização para a instituição de taxas por serviço fruível autorizam a
cobrança de tarifas por serviço colocado à disposição do usuário.
IV.4.4- Serviços fruíveis e serviços
aparentemente fruíveis: a questão do uso complexo
Acrescente-se que, em muitos casos, a
circunstância de os serviços serem apenas postos à disposição dos usuários é
apenas aparente. Os serviços são efetivamente prestados, embora seu uso seja
complexo e não se limite a uma prestação instantânea.
Cogite-se, p. ex., de serviços de coleta de
lixo doméstico e destinação final em aterros sanitários. A prestação desses
serviços envolve uma grande variedade de ações por parte do gestor, o que se
reflete em um uso também complexo. Não se exaure no mero contato entre o
gerador do lixo doméstico e o coletor. O serviço se compõe da coleta, remoção
e, principalmente, destinação adequada dos resíduos. Essa destinação é
permanente, o que revela um caráter continuado da prestação (e, por
decorrência, do uso) dos serviços correspondentes60.
Desse modo, nessas situações, a tarifa não é
exigida em face do uso potencial dos serviços, da sua colocação à disposição
dos usuários. Deriva do uso efetivo, observado o caráter complexo dos
serviços e da utilização que deles fazem os usuários.
Na maior parte dos casos de suposto uso
potencial de serviços de utilização compulsória, o que há é um uso complexo.
Essa coincidência não é casual. Os serviços são tornados de utilização
compulsória em face de um vínculo mais intenso e peculiar com a realização do
interesse coletivo. Em muitas situações, esse vínculo se traduz na
necessidade de atuação permanente do prestador, no atendimento de
necessidades coletivas também permanentes. É o que ocorre com os serviços de
abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos ou coleta e
destinação
final de lixo. Em todos eles, há uma prestação permanente, continuada,
refletida em um uso também permanente e continuado – embora, em muitos casos,
menos visível e perceptível para o usuário.
Os casos de serviços compulsórios de
utilização instantânea têm importância marginal. Pode-se cogitar, p. ex., de
um serviço público de vacinação obrigatória. Porém, este seria serviço
público gratuito, na forma dos arts. 196 e 197 da Constituição, o que retira
seu interesse para o presente exame. Na generalidade dos casos de serviços
públicos compulsórios submetidos a concessão, há prestações complexas e
continuadas, refletidas em uso efetivo também complexo e continuado. A
existência de serviço meramente posto à disposição do usuário, nesses casos,
é apenas aparente.
5 -CONCLUSÃO
A partir da concepção de que o usuário é
central para a definição de serviço público, buscou-se construir uma
sistematização dos critérios para estipulação das tarifas e taxas de serviço
público em torno do usuário. Demonstrou-se o vínculo intenso entre a condição
pessoal do usuário e as condicionantes que orientam a política de remuneração
pelos serviços públicos.
Demonstrou-se, além disso, os distintos
objetivos e fundamentos jurídico-políticos das tarifas e das taxas. Com isso,
podem-se desfazer equívocos construídos sobre a identificação indevida de
certos aspectos dessas figuras. Embora vinculadas ambas à prestação de
serviços públicos, respondem a necessidades diversas. Por conseguinte, as
concepções doutrinárias e jurisprudenciais atinentes a uma não podem ser
adotadas acriticamente para a compreensão da outra.
Em termos específicos, e tendo em vista a
relevância crescente desse instituto para a remuneração de serviços públicos
no Brasil, examinou-se o regime jurídico da estipulação das taxas. Propôs-se
um critério tarifário baseado na flexibilidade, na criatividade e na
abertura. Isso se justifica pelo caráter de realização da isonomia existente
no custeio de serviços públicos por meio de tarifas (ainda que custeadas em
parte ou totalmente pela Administração, até mesmo segundo o regime de
parceria público privada criado pela Lei nº 11.079/2004). Os serviços
públicos gratuitos são, na verdade, custeados por receitas gerais do
Estado, aplicadas de modo não transparente. Os ônus correspondentes
distribuem-se pela sociedade de acordo com os critérios (idealmente, a
capacidade contributiva) que inspiram o sistema tributário.
Por outro lado, havendo remuneração mediante
tarifa, sabe-se com precisão que o custo do serviço recai sobre o usuário. Se
há subsídio público, sabe-se em que montante, qual a sua origem e qual o
destino. A remuneração do serviço mediante tarifa favorece a transparência e
o controle, fatores fundamentais para o exercício pleno da cidadania.
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TROTABAS,
Louis; COTTERET, Jean-Marie. Droit Fiscal. Paris: Dalloz. 1992.
_____________________
Notas bibliográficas
1Este
estudo fundamenta-se nas premissas expostas por mim em PEREIRA, Cesar A.
Guimarães. A Posição Jurídica dos Usuários e os Aspectos Econômicos
dos Serviços Públicos, tese de doutoramento – PUC/SP. São Paulo.
2005.
3JUSTEN FILHO, Marçal.
Conceito de interesse público e a 'personalização' do Direito
Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, nº.26, p.
115/136, 1999.
p. 136. O tema foi retomado pelo
autor em
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de
Direito Administrativo. cit,
pp.
35/47, no qual se identificam os direitos fundamentais como o critério
central do Direito Administrativo. Em sentido similar, Eberhard
Schmidt-Assmann aponta que “O
reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais permitiu ao Direito
Administrativo introduzir uma marcada dimensão individual, uma maior atenção
aos interesses do indivíduo” (SCHMIDT-ASSMANN, Eberhard. La
Teoría General del Derecho Administrativo como Sistema. Madrid: Marcial Pons. 2003., p. 89).
4
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.
São Paulo: Malheiros. 18ª ed. p. 628. A distinção entre serviço público
em sentido estrito e em sentido amplo é detalhada em MODESTO, Paulo.
Reforma do Estado, Formas de Prestação de Serviços ao Público e
Parcerias Público Privadas: Demarcando as Fronteiras dos Conceitos de Serviço
Público, Serviços de Relevância Pública e Serviços de Exploração Econômica
para as Parcerias Público Privadas. Revista
Brasileira de Direito Público – RBDP. Belo Horizonte: Fórum. v. 10.
jul/set 2005, pp. 9/54. p. 18.
5
A
demonstração dessa premissa consta do cap. II da tese já referida na nota
nº 1 acima.
6Cfr., entre outros,
JUSTEN FILHO. Curso de Direito
Administrativo.
p. 532/533; CUÉLLAR. Serviço de abastecimento de
água e a suspensão do fornecimento. p.
; GUIMARÃES. A suspensão da prestação
de serviços públicos frente ao inadimplemento do usuário. p.
;
MARQUES. Comentários ao Código de
Defesa do Consumidor.
, p. 331/332;
PINHEIRO, Claudia Travi Pitta. A
suspensão de serviço público em virtude do inadimplemento do usuário à
luz dos princípios da boa-fé e da proporcionalidade. Revista de Direito
do Consumidor, v. 40, p. 62/75, 2001.
e
NAMBA, Edison Tetsuzo. A suspensão do
serviço público pela concessionária em decorrência do não pagamento das
contas pelo usuário. Revista de Direito do Consumidor, v.36, p.
130/153, 2000.
7No
STJ, há amplo acolhimento (embora em julgamentos não unânimes) da
possibilidade de suspensão, por inadimplemento do usuário, dos serviços
de fornecimento de energia elétrica: 1ª T., REsp 363.943/MG, Rel. Min.
Humberto Gomes de Barros, j. 10.12.2003, maioria, DJ 1.3.2004; Corte
Especial, SL 22/CE, Rel. acórdão Min. Cesar Asfor Rocha, j. 4.2.2004,
maioria; 1ª T., REsp 628.833/RS, Rel. acórdão Min. Francisco Falcão, j.
22.6.2004, maioria, DJ 3.11.2004; SLS 33/CE, Rel. Min. Edson Vidigal, dec.
monocrática, j. 28.10.2004, DJ 9.11.2004; 1ª T., REsp 615.705/PR, Rel.
Min. Luiz Fux, j. 4.11.2004, DJ 13.12.2004 (com ampla e convincente
argumentação para ressalva do entendimento do relator, que distingue “o inadimplemento perpetrado por uma pessoa jurídica portentosa e aquele
inerente a uma pessoa física que está vivendo no limite da sobrevivência
biológica”); SLS 61/CE, Rel. Min. Edson Vidigal, dec. monocrática,
j. 13.12.2004, DJ 1.2.2005. No que se refere aos serviços de fornecimento
de água, a 1ª Seção uniformizou o entendimento no sentido da legalidade
do corte (com a ressalva do entendimento pessoal do relator) no EREsp
337.965/MG, Rel. Min. Luiz Fux, j. 22.9.2004, v.u., DJ 8.11.2004. Porém,
mesmo após essa uniformização, o STJ assentou a impossibilidade
de interrupção dos serviços de coleta de lixo, discutida em ação civil
pública (embora não estivesse em debate o inadimplemento dos usuários,
mas a descontinuidade do serviço realizado diretamente). Esse entendimento
poderá conduzir a uma solução peculiar para esses serviços, no eventual
debate sobre o inadimplemento de tarifas de limpeza urbana (1ª T., REsp
575.998/MG, Rel. Min. Luiz Fux, j. 7.10.2004, DJ 16.11.2004).
8Essa distinção está na base de decisão do TRF-3ª Região de
cuja ementa se extrai o trecho seguinte: “Há
que se afastar a alegação de que o Ministério Público Federal estaria
promovendo a defesa de contribuintes, uma vez que o cerne da controvérsia não
reside na relação jurídica tributária, já que não se contesta a
validade dos tributos, nem a declaração "incidenter tantum" de
inconstitucionalidade das exações, mas sim na defesa dos destinatários
finais em relação de consumo, bem como o resguardo das normas referentes
ao contrato de concessão de serviços telefônicos” (3ª T., AC
200161040031207, Rel. Des. Fed. Cecilia Marcondes, j. 28.8.2002, DJU
9.10.2002).
9CARVALHO, Paulo de
Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva. 16a. ed.
2004.
p. 40.
10COÊLHO. Curso de Direito Tributário Brasileiro.
p. 641. O doutrinador cita a lição
de Edvaldo Brito em apoio à noção de que as taxas teriam caráter
sinalagmático.
11ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária.
São Paulo: Malheiros. 5a ed. 1997.
p. 143 e 146.
12CARRAZZA.
Curso de Direito Constitucional Tributário.
p. 481.
13NOVELLI, Flávio
Bauer. Taxa - Apontamentos sobre o seu conceito jurídico. Revista de
Direito Tributário, v.59, p. 95/123.
p. 119.
14FERNANDEZ, F.
Javier Martin. Tasas y precios publicos en el derecho español.
Madrid: Marcial Pons. 1995. p. 257.
15TROTABAS, Louis; COTTERET,
Jean-Marie. Droit Fiscal. Paris: Dalloz. 1992.
p. 18.
16A concordância é parcial porque Ataliba extrai dessa premissa
a conclusão de que todo serviço público apenas pode dar ensejo a taxa, não
a tarifa (preço público). Porém, quando há delegação, a relação jurídica
assume outra configuração. O Estado permanece vinculado incondicionalmente
ao dever de prestar o serviço, mas o concessionário apenas deve prestá-lo
nos termos do contrato de concessão – que incluem a remuneração
correspondente. Não é possível extrapolar para os serviços concedidos
uma premissa construída para os serviços prestados diretamente.
17PINTO.
Teoria Geral do Direito Civil.
p. 402/403. No mesmo sentido,
ANDRADE,
Manuel A. Domingues de. Teoria Geral da Relação Jurídica. Coimbra:
Almedina, v.2. 1992.
p. 55, e
MAJO,
Adolfo di. La causa del contrato. BESSONE, Mario. Istituzioni di diritto
privato. Torino: Giapichelli. 1996. p. 604/640.
p. 627. Claudia Lima Marques dá como exemplo de sinalagma o contrato de compra e venda, “em que um contratante assume a obrigação de pagar certo preço para
alcançar um novo status de
proprietário (seja de um automóvel, televisão ou mesmo de bens alimentícios),
enquanto o outro assume a obrigação de transferir um direito seu de
propriedade, porque lhe é mais interessante, no momento, ser credor daquela
quantia” (MARQUES.
Contratos no Código de Defesa do Consumidor.
p. 38). No mesmo sentido, veja-se também
NOVELLI.
Taxa - Apontamentos sobre o seu conceito jurídico. p.
117, esp. nota 46.
18Esta análise pode ser encontrada na tese referida na nota nº
1, cap. VI, item 6.3 (pp. 305/314).
19Eros Grau trata do tema, distinguindo serviços compulsórios (pró-comunidade) de facultativos (pró-indivíduo), em GRAU. Suspensão do fornecimento de energia elétrica: constitucionalidade, Código do Consumidor, princípios e os postulados normativos aplicativos da razoabilidade e da proporcionalidade. p. 138/140.
20Cfr.
JUSTEN
FILHO. Curso de Direito Administrativo.
,
p. 533 (“Os usuários são parte no
contrato de concessão, mas não na condição individual”). Essa
afirmação não é contraditória com o que se expôs anteriormente sobre o
caráter trilateral da relação derivada da delegação de serviço público.
21Sobre o tema da
fixação de tarifas, cfr.
JUSTEN FILHO. Curso de Direito
Administrativo.
, p. 519/529. Cassagne alude à
irretroatividade como uma das características das tarifas (CASSAGNE. El Contrato
Administrativo.
, p. 145), com o que concordamos.
Segundo Cassagne, “pouco importa se
se foi ou não paga a taxa ou o preço correspondente pelo usuário para se
questionar a sua irretroatividade já que, tratando-se de prestações
consumadas em relação a pessoas determinadas, configura-se sempre um
verdadeiro direito adquirido ao pagamento do valor fixado no momento de
realização das prestações”.
22Acerca
dos critérios de aplicação do princípio da igualdade, cfr.
BANDEIRA
DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade.
São Paulo: Malheiros. 3a. ed. 1993.
,
passim, e
PIZA
ROCAFORT, Rodolfo E. Igualdad de derechos: isonomía y no discriminación.
San José, Costa Rica: Imprenta Lil. 1997.
p. 73/104.
23Segundo aponta Jacqueline Morand-Deviller, o princípio da igualdade não
exclui a diversidade, apenas os privilégios, a parcialidade e a
subjetividade (MORAND-DEVILLER. Cours de Droit
Administratif.
p. 467). Por isso, Jeannot anota que
“o serviço público se constrói a
partir do compromisso entre um princípio de uniformidade de uma oferta
industrializada e um princípio de igualdade de tratamento” (JEANNOT. Les usagers du service
public.
p. 8). Note-se que Mescheriakoff
destaca fortemente que não há, na França, um direito a tratamento
diferenciado das várias categorias de usuários, exceto se houver lei
estabelendo esse tratamento distinto (MESCHERIAKOFF. Droit des services
publics.
p. 155). Trata especificamente da ação
afirmativa (quotas em universidades, p. ex.), considerando-as impossíveis
no direito francês (MESCHERIAKOFF. Droit des services
publics.
p. 158).
24Mescheriakoff aponta o vínculo entre a noção de igualdade e
a escolha da modalidade tarifária. Anota que se a igualdade for tomada em nível
coletivo, conduz à adoção de uma tarifação pelo custo médio (de modo
que todos os usuários paguem o mesmo). Se for tomada em nível individual,
dever-se-á adotar uma modalidade de tarifação pelo custo marginal (de
modo que cada usuário pague o valor do custo adicional que provocou para a
Administração). Essa discussão está em
MESCHERIAKOFF. Droit des services
publics.
p. 166. Também é lembrada por
NICINSKI. L'usager du service
public industriel et commercial.
p. 410.
25JUSTEN FILHO. Curso de Direito Administrativo.
p. 522. Nos serviços públicos não
monopolísticos, a tarifa real pode depender de condições de mercado,
assumidas pelo concessionário como seu risco.
26
Ibid.
p. 524/527.
27Nesse sentido, com
ampla fundamentação,
SAVARIS, José Antonio. Pedágio -
pressupostos jurídicos. Curitiba: Juruá. 2004.
p. 171/181.
28Na
França, existe disposição legal específica sobre a relação entre o pedágio
e o investimento em obras de arte, inclusive fora do esquema contratual de
uma concessão. Sobre o tema, cfr.
BIEUSSES,
Pierre Subra de. Voirie et grands équipements ou la décentralisation prétexte.
Actualité Juridique Droit Administratif - AJDA, nº.3/2005, p.
144/151. 24/jan, 2005.
p. 150/51.
29Admitindo a incidência
de pedágio antes da realização efetiva de obras na concessão rodoviária,
cfr.
JUSTEN FILHO, Marçal. Legalidade da
cobrança de pedágio em rodovias de pista simples e não-aplicabilidade do
DL 791/69 às concessões de exploração de rodovias às empresas privadas.
ANDRADE, Letícia Queiroz de. Decisões e pareceres sobre pedágio. São
Paulo: ABCR - Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias. 2002.
p.
199/200.
30CASSAGNE. El
Contrato Administrativo.
p. 153.
31JUSTEN
FILHO. Teoria geral das concessões de serviço público.
, p. 377.
32No
direito europeu, alude-se freqüentemente a um direito à perequação,
ligado à idéia de subsídios cruzados. Lecerf aponta que essa é uma das
formas de o consumidor pagar tarifas em valor inferior ao custo real,
mediante a cobrança de valores mais elevados de certas prestações ou
certos usuários. O autor explica que “o
direito à perequação resulta da idéia segundo a qual o consumidor deve
pagar os serviços a um preço idêntico onde quer que
se encontre no território: a perequação é intimamente ligada ao conceito
de atendimento do conjunto do território pelo serviço público. O direito
à perequação da tarifa para o consumidor é um dos argumentos fortes
apresentados pelos defensores da manutenção dos monopólios nos serviços
públicos” (LECERF. Droits des consommateurs et
obligations des services publics.
p. 139). Jeannot aponta que a perequação
é típica do modelo tradicional do serviço público francês, baseado na
idéia de consideração global dos fatores envolvidos para se encontrar a
oferta ótima. O autor ressalta a diferença entre a perequação, de caráter
holístico, e os critérios de financiamento do serviço universal, mais
restritos (JEANNOT. Les usagers du service
public.
p. 68). Também Boual alude ao tema ao tratar da transparência das relações
entre reguladores e operadores: “O
exame das contas do operador deve permitir verificar a ausência de ‘subsídios
cruzados’ (financiamento de uma atividade por outra), exceto se estes
derivem das próprias missões de interesse geral (perequação tarifária)”
(BOUAL. Services d'interêt général
et projet europeen de societé. p.
95).
33PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Concessão de serviços de limpeza
urbana: pontos polêmicos. Revista Trimestral de Direito Público, nº.26,
p. 217/232, 1999.
p. 221. Esse problema é detectado
por Marçal Justen Filho quando afirma que “a
transferência do custo da tarifa social para a tarifa paga pelos demais usuários
produz efeitos imprevisíveis e desvinculados da titularidade da riqueza.
Ainda que se admita o princípio de que a solidariedade social obriga à
transferência de recursos para atendimento aos carentes, tem de
reconhecer-se que essa solidariedade social se exercerá na medida da
capacidade contributiva. E dita capacidade não é corretamente avaliada
quando se incorpora nas tarifas pagas pelos demais usuários o custo da
tarifa social”. Ainda assim, Marçal Justen Filho admite essa
possibilidade mediante autorização legislativa que autorize a transferência
de riqueza e estabeleça os seus critérios fundamentais (JUSTEN FILHO. Teoria geral das
concessões de serviço público.
p. 377). 34Note-se
que, na França, há disposição legislativa expressa sobre o tema. A Lei nº
98-657, de 29.7.1998 (“Loi
d’orientation relative à la lutte contre les exclusions”)
estabelece que “As tarifas dos serviços
públicos administrativos de caráter facultativo podem ser fixadas em função
do nível de renda dos usuários e do número de pessoas vivendo no domicílio.
Os valores mais elevados assim fixados não podem ser superiores ao custo
por usuário da prestação em questão. As taxas assim fixadas não fazem
obstáculo ao igual acesso de todos os usuários ao serviço”. Esse
dispositivo é comentado por Martine Long, que cita entendimento
jurisprudencial segundo o qual “o
igual acesso a tais serviços [de creche coletiva e restaurante escolar]
legitima, em nome de considerações de interesse geral, uma tarifa
privilegiada para as famílias de baixa renda, na medida em que se trata de
um serviço público administrativo de vocação social, que faz convoca em
proporções significativas contribuições dos usuários. Única condição:
que as tarifas mais elevadas permaneçam inferiores ao custo de
funcionamento do serviço” (LONG.
La tarification des services publics locaux.
p. 114). Adotando-se essa orientação como parâmetro, não haveria
transferência de recursos de certos usuários para outros, pois nenhum
deles entregaria ao prestador mais do que a parcela que lhe tocaria do custo
do serviço. Apenas se proscreveria que algum usuário sujeito a tarifa mais
elevada pretendesse equiparação com os pagantes de tarifas mais
baixas. Esse mecanismo é também comentado em
LACHAUME, Jean-François. Droit
Administratif. Paris: PUF. 13a. ed. 2002.
p. 419.
35Um forte libelo
contra os subsídios cruzados é oferecido por Richard A. Posner, em sua
tese clássica sobre os monopólios naturais, publicada originalmente em
1969. Apresenta quatro pontos contrários ao subsídio cruzado e contesta o
único ponto a favor. Segundo o autor, os subsídios cruzados (a) limitam as
opções do consumidor beneficiado pelo serviço subsidiado, que poderia
preferir utilizar de outro modo os recursos despendidos no custeio desse
serviço deficitário, (b) nem sempre os beneficiários do serviço
subsidiado são necessitados, pelo que pode fazer mais sentido outorgar um
benefício direto (em dinheiro ou bônus, p. ex.) aos efetivamente carentes,
(c) subsídios cruzados dão um aspecto de “legitimidade” ou de
“utilidade pública” aos monopólios, frustrando o desenvolvimento de
competição com base na percepção de que o monopolista é socialmente
valioso e respeitável e (d) promove má alocação de recursos, pois eleva
os preços e permite a um novo prestador ineficiente, não monopolista,
manter preços falsamente elevados e obter lucro mesmo com custos
exagerados. O único argumento a favor relaciona-se com o caráter necessário
dos serviços universalizados por meio do subsídio cruzado, o que significa
de que deveriam ser prestados aos consumidores beneficiados de um modo ou de
outro, sendo mais custoso o seu fornecimento pelo Estado do que pelo
monopolista, presumivelmente mais eficiente. Esse argumento é rejeitado
porque (a) nem todos os serviços essenciais seguem este padrão de subsídio,
o que permite supor que não se trata de opção baseada em um programa real
de subsídio público, (b) é mera conjectura afirmar que o custo de um subsídio
público direto seria mais elevado do que o resultando do subsídio cruzado
e todos os seus efeitos (POSNER, Richard A. Natural monopoly
and its regulation. Washington: CATO. 1999.
p. 72/75). O Relatório Services Publics en Réseau, de 2000, aponta a eliminação de
certos subsídios cruzados para preservar o princípio da igualdade (BERGOUGNOUX, Jean. Services publics
en réseau: perspectives de concurrence et nouvelles régulations.
Paris: La documentation Française. 2000.
p. 60).
36Essa alternativa
também é defendida em
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery.
Tarifa Módica - Serviços de Qualidade: Conceitos Jurídicos
Indeterminados? Interesse Público, nº. 18, p. 53/59, 2003.
58/59.
37Sobre
o tema, cfr.
CASSAGNE.
El Contrato Administrativo.
,
p. 138 (“Em geral, a aplicação do
princípio da igualdade, que não apresenta maiores inconvenientes quando se
trata de atividades regidas por um estatuto ou regulamento, costuma
apresentar problemas quando o vínculo entre o usuário e quem presta o
serviço é de natureza contratual. Em tais casos, a igualdade não deve
considerar-se violada quando se pactuam preços diferentes em função da
magnitude das prestações, o que costuma ocorrer no serviço de energia elétrica”).
38Conforme
Mescheriakoff, “Se o serviço não
tem um preço, ele tem um custo! e a questão é saber quem vai assumi-lo”
(MESCHERIAKOFF. Droit des services
publics.
p. 207).
39Por isso, aliás,
é que Marçal Justen Filho insiste fortemente na distinção entre sociedade
e usuários, uma vez que a “outorga
de uma concessão significa que a prestação do serviço público deixará
de ser custeada pela sociedade em seu conjunto e passará a sê-lo somente
por parte dos usuários – e na medida direta da intensidade da fruição
(...) Daí deriva a ausência de homogeneidade de interesses dos diversos
extratos da Sociedade” (JUSTEN FILHO. Teoria geral das
concessões de serviço público.
p. 14).
40JUSTEN
FILHO. Concessão de serviços de limpeza urbana. p.
90.
41Como
exemplo dessa preocupação com a praticabilidade da cobrança e a adoção
de critérios razoáveis, conquanto baseados em presunções, confira-se
raciocínio adotado na França acerca da fixação das tarifas de esgoto: “A fixação de uma tarifa de saneamento das águas usadas oferece
problemas específicos em razão das dificuldades experimentadas para
avaliar do serviço prestado e estimá-lo por meio de um índice incontestável.
(...) “Se a água consumida pode
ser medida, é muito mais difícil medir a água rejeitada. Não obstante,
na grande maioria dos países desenvolvidos, foi estimado que o melhor
indicador do serviço prestado em matéria de saneamento das águas usadas
é constituído pelo consumo de água potável. Assim para os especialistas
da OCDE, ‘os custos e a dificuldade de contagem em separado do volume de
efluentes produzidos pelos usuários residenciais da rede de saneamento e
dos serviços de tratamento de águas usadas são tais que a cobrança pelo
saneamento e esgoto é normalmente integrada à tarifa de distribuição da
água’. É portanto com pragmatismo que, na França, adota-se o volume de
água recebida como base de cálculo da tarifa de saneamento. Assim, de
acordo com o artigo R.372-8 do Código das Comunas: ‘a cobrança de
saneamento é fixada de acordo com o volume de água recebida pelo usuário
do serviço de saneamento a partir da rede pública de distribuição ou de
qualquer outra fonte” (BOURDIN, Joël.
Les finances des services publics de l'eau de de l'assainissement.
Paris: Economica. 1998.
p. 118).
No Brasil adota-se critério análogo e a jurisprudência vem acolhendo a
possibilidade de cobrança de tarifas ou taxas de
esgoto (REsp 431.121).
42Essa preocupação foi demonstrada por Adilson Abreu Dallari, que
postulava a adoção de critérios mais flexíveis de distribuição dos
custos dos serviços de coleta de lixo mesmo sob um regime de taxa. Segundo
o doutrinador, “a utilização de um
complexo modelo matemático como fator de distribuição, considerando uma
pluralidade de fatores ou elementos que levem a uma distribuição mais
justa do custo do serviço por todos os usuários, efetivos ou potenciais,
é perfeitamente constitucional” (DALLARI, Adilson de Abreu. Cobrança
da taxa remuneratória do serviço de coleta de lixo. Revista Trimestral
de Direito Público, nº.25, p. 20/32, 1999.
p. 32).
43
PEREIRA,
Cesar A. Guimarães. Concessão de serviços de limpeza urbana: pontos polêmicos.
cit., nº.26, p. 217/232.
p. 225. O art. 112, § 2º, da Constituição Estadual do Rio de Janeiro é
um bom aviso acerca da circunstância de que alguém sempre custeará os
benefícios dos demais. O dispositivo prevê que “Não
será objeto de deliberação proposta que
vise conceder gratuidade em serviço público prestado de forma indireta,
sem a correspondente indicação da fonte de custeio”.
44JUSTEN FILHO. Teoria
geral das concessões de serviço público. p. 377.
45PEREIRA.
Elisão tributária e função administrativa.
p. 173. Nesse sentido, Cassagne aponta que “por
meio do estabelecimento de uma tarifa desproporcionada se poderiam violar
certos direitos fundamentais da pessoa que em nosso ordenamento
constitucional têm preeminência, como são os direitos de propriedade e de
liberdade” (CASSAGNE.
El Contrato Administrativo.
,
p. 144). O doutrinador alude à exigência de tarifas “justas
e razoáveis”: a justiça
denota a juridicidade no modo de instituir as tarifas e a razoabilidade
refere-se ao quantum (“tanto
as taxas como os preços integrantes das tarifas [esclareça-se que
“tarifas”, no direito argentino, são listas de taxas ou preços]
devem surgir de uma equação equilibrada com o custo do serviço, ao qual
cabe acrescentar um ganho fixo e estabelecido também de forma proporcional,
quando o serviço é prestado por um concessionário ou permissionário
privado”.
46
MOREIRA, Egon Bockmann. Anotações
sobre a história do Direito Econômico brasileiro (parte I: 1930-1956). Revista
de Direito Público da Economia - RDPE, nº.6, p. 67/96, 2004.
, p. 76/77.
47GRECCO. Potestad
tarifaria, control estatal y tutela del usuario. p.
450. A questão do controle
jurisdicional da modicidade tarifária
pode envolver uma variedade de problemas, desde o uso meramente retórico da expressão até a complexidade técnica do exame
efetivo da planilha tarifária.
48Como
assentado por Caio Tácito, devem “as
tarifas corresponder ao critério da razoabilidade, visando, de um lado, a
defesa dos consumidores ou usuários, e, de outro, a estabilidade financeira
dos concessionários” (TÁCITO,
Caio. O equilíbrio financeiro na concessão de serviço público. Temas
de Direito Público (estudos e pareceres). Rio de Janeiro: Renovar, v.1.
1997. p. 199/255.
p. 255).
49Embora já existisse uma
grande produção doutrinária no Brasil acerca da possibilidade de remuneração
do concessionário pelo Poder Público, o tema veio a ser tratado
legislativamente, com o caráter de norma geral, apenas pela Lei nº
11.079/2004, que disciplinou as parcerias público privadas e introduziu as
noções de concessão patrocinada
e concessão administrativa,
prevendo que a remuneração do concessionário será feita parcial ou
totalmente pelo Poder Público.
50Sobre
o tema, cfr.
PEREIRA,
Cesar A. Guimarães. O endividamento público na Lei de Responsabilidade
Fiscal. Rocha, Valdir de Oliveira. Aspectos Relevantes da Lei de
Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Dialética. 2001. p. 45/104.
p. 47.
51A
questão está sob o exame do STF na ADI nº 820/RS, em que o relator (Min.
Eros Grau) já votou aplicando essas reservas para o fim de reconhecer a
inconstitucionalidade de dispositivos de Constituição estadual e de lei
estadual que previam a vinculação de certos recursos a atividades de
ensino e remetia a entidades privadas – Conselhos Escolares – a decisão
sobre aplicação dos recursos.
52Cassagne
aponta uma evolução na noção de serviço público, resultante “da
necessidade de adaptar o regime jurídico do serviço público, prestado até
então pelo Estado, a uma realidade que apresenta a limitação do Poder Público
e o surgimento de encargos e garantias dos concessionários de modo paralelo
à proteção dos dados e dos direitos (sobretudo as liberdades) dos usuários”
(CASSAGNE.
El Contrato Administrativo.
,
p. 114).
53Essa constatação está na base da decisão monocrática proferida pelo STJ na SLS nº 78, contra a qual não houve recurso. A questão relacionava-se com a aplicação do Estatuto do Idoso para assegurar gratuidade de transporte intermunicipal. O STJ reputou que a mera aplicação da isenção, desacompanhada de uma solução em relação ao equilíbrio contratual, representava risco de lesão grave à prestação dos serviços (Rel. Min. Edson Vidigal, j. 17.1.2005, DJ 2.2.2005). Também se relaciona com a posição dos usuários em face de reajustes tarifários: não se pode pretender realizar a modicidade de tarifas sem atenção ao equilíbrio contratual. Isso apenas realça a necessidade de atuação responsável do Poder Público no momento da concepção e implantação de um sistema de delegação de serviço público.
54Sobre o tema, Francisco Campos assentou que “a prudência e a ponderação em determinar as tarifas dos serviços públicos são requisitos que as autoridades investidas dessa delicada função nunca devem perder de vista. O fato de serem as tarifas de serviços públicos sujeitas a revisões periódicas, cria para os capitais neles invertidos novo fator de risco, que contribue para aumentar as suas exigências. Se a política tarifária não for conduzida com grande espírito de retidão e, particularmente, de compreensão dos fenômenos econômicos, (...) tenderão a agravar-se as dificuldades de obter novos capitais indispensáveis à expansão e melhoramento dos serviços, redundando em prejuízo do público as aparentes vantagens de tarifas inferiores às que deveriam, efetivamente, vigorar, se levados em conta todos os fatores econômicos que concorrem para a formação normal dos preços” (CAMPOS. Direito Administrativo. p. 157). No mesmo sentido, Caio Tácito frisa que “A garantia de lucro razoável não é senão um meio de possibilitar a constância e a expansão do serviço adequado. Não é outro o motivo pelo qual a concepção norte-americana da razoabilidade das tarifas classifica, entre as suas condições básicas, a atração de novos capitais” (TÁCITO, Caio. O equilíbrio econômico-financeiro na concessão. TÁCITO, Caio. Temas de Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar, v.I. 1997. p. 199/255. p. 249). Em visão complementar a essas, enfatizando a necessidade de subsídios públicos em determinados casos, Marçal Justen Filho anota que “A participação estatal deve orientar-se a evitar que a dimensão dos riscos e encargos assumidos pelo particular se traduzam em encargos excessivamente elevados para determinados (ou todos os) segmentos de usuários. (...) A aplicação de recursos da iniciativa privada pode ser a única alternativa para evitar o colapso de determinados serviços públicos. E a impossibilidade de remuneração por meio de tarifa, no modelo clássico da concessão, não pode ser obstáculo à adoção de um sistema que permita a participação do capital privado para desenvolvimento de atividades de interesse coletivo. Isso se passará no tocante a atividades que exijam a participação estatal, especialmente porque não se revelam aptas a produzir resultados econômicos lucrativos. O dever do Estado é de intervir e arcar com parcelas dos custos, se a sistemática de tarifas for insuficiente para propiciar uma solução satisfatória” (JUSTEN FILHO. Teoria geral das concessões de serviço público. p. 90). As vantagens da estabilidade jurídica da concessão, inclusive e especialmente para os usuários (a quem se assegura “serviço adequado por tarifas razoáveis”) é destacada por Bilac Pinto (PINTO, Olavo Bilac. Regulamentação efetiva dos serviços de utilidade pública. Rio de Janeiro: Forense. 2a. ed. 2002. p. 219/220). Ainda sobre o tema do subsídio público, cfr. CAETANO. Manual de Direito Administrativo. p. 1126/27, e MALERBI, Diva Prestes Marcondes. O equilíbrio econômico-financeiro no contrato de concessão. Seminário jurídico concessões de serviços públicos: Escola Nacional da Magistratura e Academia Internacional de Direito e Economia. 2001. p. 99/111. p. 105.
55Sobre o tema, cfr. JUSTEN FILHO. Teoria geral das concessões de serviço público. p. 350/366, JUSTEN FILHO. Curso de Direito Administrativo. , p. 519/529, e GRAHAM. Regulating Public Utilities: A Constitutional Aproach. p. 167/168.
56Nesse
sentido, tratando de taxas, Roque Antonio Carrazza aponta que “não
precisa haver uma precisão matemática; deve, no entanto, existir uma razoabilidade
entre a quantia cobrada e o gasto que o Poder Público teve para prestar aquele
serviço público ou praticar aquele
ato de polícia.” (CARRAZZA. Curso de Direito
Constitucional Tributário.
p. 489). Também Martine Long
reconhece uma certa flexibilidade no critério de quantificação da tarifa
(redevance), apontando que,
identificado o usuário, a equivalência entre o montante da prestação e
da tarifa pode ser aferido de modo aproximativo: “...
se o juiz verifica de modo efetivo a especialidade das prestações
realizadas e o liame direto entre essas prestações e os sujeitos, no que
se refere à equivalência entre o montante das prestações e o montante da
contribuição paga, tem uma concepção muito mais larga”. Ressalta
também que, atualmente, “... o juiz
prefere recorrer à noção de proporcionalidade e não mais à de equivalência
em matéria de tarifa por serviço prestado” (LONG. La tarification des services
publics locaux.
p. 54/55). O mesmo se encontra em
MESCHERIAKOFF. Droit des services
publics.
p. 217 (“essa
proporcionalidade não é de ser rigorosamente matemática”).
57Cfr.
PEREZ
DE AYALA, José Luis. Las Ficciones en el Derecho Tributario. Madrid:
Editorial de Derecho Financiero. 1970.
p. 21/23.
58PEREIRA
FILHO. As taxas no sistema tributário brasileiro.
p. 83.
59Acerca
das dificuldades concretas de investimento, cfr.
PINHEIRO,
Armando Castelar; GIAMBIAGI, Fabio. Os antecedentes macroeconômicos e a
estrutura institucional da privatização no Brasil. PINHEIRO, Armando
Castelar; FUKASAKU, Kiichiro. A privatização no Brasil - O caso dos
serviços de utilidade pública. Rio de Janeiro: BNDES. 2000. p. 15/43.
60Esse
aspecto é apontado em
DALLARI,
Adilson de Abreu. Cobrança da taxa remuneratória do serviço de coleta de
lixo. Revista Trimestral de Direito Público, nº.25, p. 20/32, 1999.
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*Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira e Talamini – Advogados Associados
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