Em algum lugar do passado

Segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil

 Luís Roberto Barroso* 

SUMÁRIO

 

Introdução

O Tema: organização da matéria

   

Parte I

Conceitos Fundamentais

I. A segurança jurídica

II. O direito intertemporal

III. A proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito no direito brasileiro

 

Parte II

O Novo Código Civil e os Contratos a ele Anteriores

IV. Os contratos e a proteção do ato jurídico perfeito

V. Inconstitucionalidade parcial do art. 2.035 do novo Código Civil.

 

Conclusão

Introdução

O Tema: organização da matéria

 

O estudo que se segue está ordenado em duas partes. Na Parte I procede-se à análise do princípio constitucional da segurança jurídica e, especialmente, dos temas afetos ao direito intertemporal. Neste domínio, a ênfase recai sobre os conceitos de direito adquirido e de ato jurídico perfeito, ainda hoje envoltos em complexidades diversas e dificuldades de sistematização.

A Parte II é dedicada à aplicação das categorias e conceitos desenvolvidos na Parte I a algumas situações criadas pela aprovação do novo Código Civil (Lei n° 10.406, de 10.01.02), vigente desde janeiro de 2003. Dentre as múltiplas questões de direito intertemporal resultantes da profunda e extensa alteração da disciplina das relações privadas no país, avultam as relativas à incidência da lei nova sobre os atos e negócios jurídicos praticados anteriormente ao início de sua vigência, especialmente os de natureza contratual.

No centro da discussão encontra-se o art. 2.035 do Código Civil posto em vigor, cuja dicção é a seguinte:  

“Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.0451, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.  

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. 

A seguir, o desenvolvimento do tema.

Parte I

Conceitos Fundamentais

I. A segurança jurídica

O conhecimento convencional, de longa data, situa a segurança – e, no seu âmbito, a segurança jurídica – como um dos fundamentos do Estado e do Direito, ao lado da justiça e, mais recentemente, do bem-estar social. As teorias democráticas acerca da origem e justificação do Estado, de base contratualista, assentam-se sobre uma cláusula comutativa: recebe-se em segurança aquilo que se concede em liberdade. Consagrada no art. 2° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como um direito natural e imprescritível, a segurança encontra-se positivada como um direito individual na Constituição brasileira de 1988, ao lado dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade, na dicção expressa do caput do art. 5°.  

O próprio constitucionalismo francês procurou conceituar o termo, no preâmbulo da Constituição de 24 de junho de 1793: “A segurança consiste na proteção conferida pela sociedade a cada um de seus membros para conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades”. Tal formulação a aproxima da cláusula do devido processo legal do direito anglo-saxão, incorporada quase literalmente à Constituição brasileira em vigor, no art. 5°, LIV2. No seu desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial, a expressão segurança jurídica passou a designar um conjunto abrangente de idéias e conteúdos, que incluem:  

1. a existência de instituições estatais dotadas de poder e garantias, assim como sujeitas ao princípio da legalidade; 

2. a confiança nos atos do Poder Público, que deverão reger-se pela boa-fé e pela razoabilidade;  

3. a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre os quais incidem e na conservação de direitos em face da lei nova;  

4. a previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser seguidos como os que devem ser suportados;  

5. a igualdade na lei e perante a lei, inclusive com soluções isonômicas para situações idênticas ou próximas.  

Um conjunto de conceitos, princípios e regras decorrentes do Estado democrático de direito procura promover a segurança jurídica. A Constituição, assim, demarca o espaço público e o espaço privado, organizando o poder político e definindo direitos fundamentais. Tem vocação de permanência e é dotada de rigidez. A lei, por sua vez, opera a despersonalização do poder, conferindo-lhe o batismo da representação popular. Visa, sobretudo, a introduzir previsibilidade nos comportamentos e objetividade na interpretação. De parte isto, cada domínio do Direito tem um conjunto de normas voltadas para a segurança jurídica, muitas com matriz constitucional.

Confiram-se alguns exemplos: a) no direito constitucional, as garantias dos membros de cada Poder, para que desempenhem com independência suas funções constitucionais, e que incluem: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios dos juízes; as imunidades parlamentares; as regras específicas para instauração de processo contra o chefe do Poder Executivo, além da proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada; b) no direito administrativo, princípios como os da legalidade, publicidade, razoabilidade e o dever de motivar as decisões; c) no direito penal, os princípios da reserva legal, da anterioridade da lei penal, da presunção de inocência e as limitações ao poder de decretar a prisão; d) na teoria geral do direito, instituições como a prescrição e a decadência; e) no direito civil, o casamento e o estabelecimento de uma ordem de vocação hereditária.  

Legislação recente tem enfatizado a questão. A Lei nº 9.784/99, que disciplina o processo administrativo federal, positivou determinados princípios – na verdade de extração constitucional – que devem nortear a atividade administrativa, como o da segurança jurídica (art. 2º, caput3) e o da boa-fé (art. 2º, IV4). Além disso, veda que uma interpretação nova, que venha a ser adotada pela Administração, possa retroagir em prejuízo do administrado (art. 2º, XIII5), o que também já era proibido pelo Código Tributário Nacional (art. 1466). Por fim, dentre outros exemplos, vale registrar a possibilidade criada pelo art. 27 da Lei nº 9.868/997, ainda envolta em polêmica8, pela qual se admite a flexibilização do efeito retroativo nas declarações de inconstitucionalidade de atos normativos, exatamente com fundamento em razões de segurança jurídica.

É curioso observar, no entanto, que a despeito de todo o arsenal jurídico descrito, a segurança enfrenta hoje uma crise de identidade9. A velocidade das mudanças, não só econômicas, tecnológicas e políticas, mas também jurídicas10, e a obsessão pragmática e funcionalizadora, que também contamina a interpretação do Direito, não raro encaram pessoas, seus sonhos, seus projetos e suas legítimas expectativas como miudezas a serem descartadas, para que seja possível avançar (para onde?) mais rapidamente. Desse modo, o debate acerca da segurança jurídica, especialmente no que diz respeito aos efeitos da lei nova sobre a realidade existente quando de sua entrada em vigor, vem – sem ironia – se perpetuando no tempo.  

O próprio Italo Calvino, em suas Seis propostas para o próximo milênio – que só foram cinco, pois ele faleceu antes de escrever o texto da sexta – incluiu dentre elas a leveza e a rapidez. Ninguém nesses dias parece impressionar-se com a advertência do grande jurista uruguaio Eduardo Couture, inscrita no sétimo mandamento do advogado: “O tempo vinga-se das coisas que se fazem sem a sua colaboração"11.

II. O direito intertemporal

O conflito de leis no tempo envolve a contraposição entre lei nova e lei velha12. Não é incomum em direito a superveniência de lei que mude o tratamento jurídico dado a determinada questão. Cabe ao direito intertemporal solucionar esse conflito, fixando o alcance de normas que se sucedem. Seu objeto é a determinação dos limites do domínio de cada uma dentre duas disposições jurídicas consecutivas sobre o mesmo assunto13.

 

O postulado básico na matéria, que comporta exceções mas tem aceitação universal, é o de que a lei nova não atinge os fatos anteriores ao início de sua vigência, nem as conseqüências dos mesmos, ainda que se produzam sob o império do direito atual14. Esse princípio, conhecido como princípio da não-retroatividade das leis, tem por fundamento filosófico a necessidade da segurança jurídica, da estabilidade do Direito15. Nos Estados Unidos, a Constituição de 1787 veda a edição de leis retroativas de uma maneira geral (art. 1º, seção 9, 1: “ex post facto law”) e proíbe aos Estados que elaborem leis que prejudiquem a obrigatoriedade dos contratos (art. 1º, seção 10, 1: “law impairing the obligation of contracts”). Na América Latina, à exceção do México16, e na Europa, a regra da não-retroatividade é de nível infraconstitucional, podendo, mesmo, ser derrogada por legislação superveniente.

 

No Brasil, o tema constou de todas as Constituições, desde a Imperial, de 1824, excluindo-se a Carta do Estado Novo, de 1937. No texto presentemente em vigor, dispõe o inciso XXXVI do art. 5º:

 

“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.  

 

Calha observar que, embora a não-retroatividade seja a regra, trata-se de princípio que somente condiciona a atividade jurídica do Estado nas hipóteses expressamente previstas na Constituição, a saber: a) a proteção da segurança jurídica no domínio das relações sociais, veiculada no art. 5º, XXXVI, anteriormente citado; b) a proteção da liberdade do indivíduo contra a aplicação retroativa da lei penal, contida no art. 5º, XL (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”); c) a proteção do contribuinte contra a voracidade retroativa do Fisco, constante do art. 150, III, a (é vedada a cobrança de tributos “em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”). Fora dessas hipóteses, a retroatividade da norma é tolerável17.

 

É bem de ver que a regra do art. 5°, XXXVI, dirige-se, primariamente, ao legislador e, reflexamente, aos órgãos judiciários e administrativos. Seu alcance atinge, também, o constituinte derivado, haja vista que a não-retroação, nas hipóteses constitucionais, configura direito individual que, como tal, é protegido pelas limitações materiais do art. 60, § 4°, IV, da CF. Disso resulta que as emendas à Constituição, tanto quanto as leis infraconstitucionais, não podem malferir o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. O princípio da não-retroatividade só não condiciona o exercício do poder constituinte originário. A Constituição é o ato inaugural do Estado, primeira expressão do direito na ordem cronológica18, pelo que  não deve reverência à ordem jurídica anterior, que não lhe pode impor regras ou limites. Doutrina e jurisprudência convergem no sentido de que “não há direito adquirido contra a Constituição"19.

 

Não obstante isso, mesmo na interpretação da vontade constitucional originária, a irretroatividade há de ser a regra, e a retroatividade a exceção. Sempre que for possível, incumbe ao exegeta aplicar o direito positivo, de qualquer nível, sem afetar situações jurídicas já definitivamente constituídas. E mais: não há retroatividade tácita20. Um preceito constitucional pode retroagir, mas deverá haver texto expresso nesse sentido21. Na Constituição brasileira de 1988 há exemplos de retroatividade expressa, como o art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias22. Com base nele, aliás, chegou-se a entender não ser oponível sequer a preexistência de coisa julgada, impondo-se a redução dos vencimentos do servidor aos limites constitucionais23. Tal linha de entendimento, todavia, foi desautorizada pelo Supremo Tribunal Federal24.

III. A proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito no direito brasileiro

 

III.1. Status constitucional e alcance

O primeiro registro a fazer nessa matéria, conquanto óbvio, merece destaque: a proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada tem, no Brasil, status constitucional, na previsão expressa do art. 5°, XXXVI, já transcrito. Mais que isso, por sua condição de direito individual, constitui cláusula pétrea, insuscetível de supressão até mesmo por emenda constitucional (CF, art. 60, § 4º, IV). Como já assinalado, na maioria dos países esta garantia consta de legislação ordinária – o que admite sua derrogação por legislação superveniente – e não da Constituição. Isso significa, portanto, que a importação de doutrina e jurisprudência estrangeiras sobre o assunto deve ter o cuidado de observar essa diferença essencial entre os sistemas jurídicos25.

Quanto à extensão da garantia conferida pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição, há algumas observações a fazer. Na verdade, trata-se aqui de tentar definir em que consiste, afinal, o efeito retroativo que, em última análise, é vedado pela Constituição. Não há disputa entre os autores acerca do seguinte ponto: se a lei tentar modificar eventos que já ocorreram e se consumaram ou desfazer os efeitos já produzidos de atos praticados no passado, ela será retroativa e, conseqüentemente, inválida nesse particular. A controvérsia que opôs os dois principais doutrinadores que trataram do tema e seus seguidores – o italiano Gabba26 e o francês Paul Roubier27 – versava, entretanto, sobre outro tipo de situação, que ensejava a seguinte pergunta: que se passa quando, de um ato praticado no passado, na vigência da lei velha, decorrem efeitos futuros que apenas se concretizam quando a nova lei já se encontra em vigor?28

Para Roubier, a lei nova aplicava-se desde logo a esses efeitos, e essa circunstância o autor denominava efeito imediato da lei e não retroatividade (note-se desde logo que, no caso de contratos, o próprio Roubier entendia que a lei velha continuava a aplicar-se, como se verá). Gabba, por sua vez, rejeitava essa solução com fundamento no conceito de direito adquirido (que será tratado mais adiante), para concluir que, também nessa hipótese, haveria retroação inválida. Ainda para Gabba, os efeitos futuros deveriam continuar a ser regidos pela lei que disciplinou sua causa, isto é, a lei velha.  

Como se sabe, a posição do autor italiano acabou por preponderar e, no Brasil, as Constituições sempre adotaram a fórmula de Gabba de proteção do direito adquirido (ao lado do ato jurídico perfeito e da coisa julgada). Exatamente nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que a retroatividade – resultado vedado pela Constituição – pode assumir três formas: a retroatividade máxima, média e mínima, todas inválidas. A chamada retroatividade mínima descreve exatamente esse tipo de hipótese: a incidência da lei nova sobre efeitos que, embora pendentes, se ligam a uma causa ocorrida na vigência da lei velha. Confira-se trecho do acórdão no qual o ponto é destacado:  

“Quanto à graduação por intensidade, as espécies de retroatividade são três: a máxima, a média e a mínima. Matos Peixoto, em notável artigo – Limite Temporal da Lei – publicado na Revista Jurídica da antiga Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (vol. IX, págs. 9 a 47), assim as caracteriza: ‘Dá-se a retroatividade máxima (também chamada restitutória, porque em geral restitui as partes ao statu quo ante), quando a lei nova ataca a coisa julgada e os fatos consumados (transação, pagamento, prescrição). Tal é a decretal de Alexandre III que, em ódio à usura, mandou os credores restituírem os juros recebidos. À mesma categoria pertence a célebre lei francesa de 2 de novembro de 1793 (12 brumário do ano II), na parte em que anulou e mandou refazer as partilhas já julgadas, para os filhos naturais serem admitidos à herança dos pais, desde 14 de julho de 1789. A carta de 10 de novembro de 1937, artigo 95, parágrafo único, previa a aplicação da retroatividade máxima, porquanto dava ao Parlamento a atribuição de rever decisões judiciais, sem executar as passadas em julgado, que declarassem inconstitucional uma lei.  

A retroatividade é média quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de ato jurídico verificados antes dela, exemplo: uma lei que limitasse a taxa de juros e não se aplicasse aos vencidos e não pagos.  

Enfim a retroatividade é mínima (também chamada temperada ou mitigada), quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos atos anteriores produzidos após a data em que ela entra em vigor. Tal é, no direito romano, a lei de Justiniano (C. 4, 32, de usuris, 26, 2 e 27 pr.), que, corroborando disposições legislativas anteriores, reduziu a taxa de juros vencidos após a data da sua obrigatoriedade. Outro exemplo: o Decreto-Lei nº 22.626, de 7 de abril de 1933, que reduziu a taxa de juros e se aplicou, ‘a partir da sua data, aos contratos existentes, inclusive aos ajuizados (art. 3°)’ (págs. 22/23)"29.

Na verdade, se apenas os eventos já definitivamente ocorridos no passado estivessem a salvo da lei nova, os conceitos de direito consumado e adquirido30 se confundiriam e haveria pouco propósito na existência da cláusula constitucional do art. 5º, XXXVI, uma vez que são muito raras as situações em que a lei nova pretende modificar o passado de forma direta. O problema de direito intertemporal se coloca exatamente em relação aos eventos que começaram a se verificar antes, mas cujos efeitos ou parte deles apenas ocorreram depois da vigência da nova lei31. Ademais, a segurança jurídica seria gravemente vulnerada se apenas se pudesse ter certeza das regras aplicáveis a atos ou negócios instantâneos, que se esgotassem em um único momento; nessa linha de raciocínio, qualquer relação que perdurasse no tempo poderia ser colhida pela lei nova, em detrimento evidente da previsibilidade mínima que se espera do Estado de Direito. É bem de ver, como já se registrou e se verá mais detalhadamente adiante, que, por esse conjunto de razões, o próprio Roubier não aplicava sua formulação geral aos contratos.

Em suma: a incidência da lei nova sobre os efeitos de atos praticados na vigência da lei antiga é modalidade de retroatividade vedada pela Constituição de 1988. Cabe agora verificar que espécie de ato normativo está vinculado pelo que dispõe o art. 5º, XXXVI, da Constituição.

III.2. A lei nova e sua natureza: a irrelevância da noção de lei de ordem pública

Já se consignou linhas atrás que a regra do art. 5°, XXXVI, dirige-se ao legislador de todos os níveis, só não se sobrepondo ao constituinte. Quanto ao conteúdo do ato normativo, não há qualquer distinção entre as chamadas “leis de ordem pública” e as demais, como faz supor certo segmento doutrinário32. A Constituição não prevê exceções. Qualquer lei, seja qual for o adjetivo que se lhe vier a agregar, está obrigada a respeitar essas garantias, mesmo porque nenhum sentido haveria em admitir-se que a lei, conferindo a si própria determinada qualificação, pudesse afastar a garantia constitucional. A tese tem robusto suporte doutrinário33.  

O argumento de que a proteção constitucional não seria oponível às chamadas leis de ordem pública fundava-se na idéia de superioridade do interesse público – supostamente veiculado pela lei de ordem pública nova – sobre o individual, que consistiria na posição do indivíduo titular do direito adquirido ou do ato jurídico perfeito. Esse ponto de vista não deve prevalecer, por um conjunto de razões.

Em primeiro lugar, a oposição descrita acima não é verdadeira. Não se trata de um conflito entre um interesse público e um individual, pois também a proteção dos direitos adquiridos e atos jurídicos perfeitos (além da coisa julgada) corresponde a um interesse público da maior importância, ao qual o constituinte inclusive atribuiu o status de cláusula pétrea. Ademais, como definir o que é “ordem pública”, especialmente considerando que, já há muito, os limites entre o Direito Público e o Privado deixaram de existir com nitidez34? Praticamente qualquer tipo de disposição normativa pode receber, com conforto, essa espécie de rótulo. Por fim, o próprio dogma da supremacia do interesse público encontra-se hoje em crise. Já não é mais possível compreender o interesse público como um conceito abstrato, sem titulares, difusamente associado à idéia de razões de Estado e desvinculado dos indivíduos e de seus direitos35.

Nesse passo, o Supremo Tribunal Federal já decidiu diversas vezes que a caracterização de lei de ordem pública não tem maior relevância quando se está diante de direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Confira-se, por todos36, trecho do acórdão marco na matéria, relatado pelo Ministro Moreira Alves, in verbis:  

“Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado.

O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva.  


Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos – apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal – de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é vedado constitucionalmente"37
.  

E isto não se altera caso o argumento de que as “leis de ordem pública não se submetem à vedação constitucional de retroatividade” se transmude em “razões de Estado”, ou seja, quando for invocado para se sustentar pretensão jurídica do Poder Público ou que envolva relevante interesse coletivo. A propósito, confiram-se os pronunciamentos dos Ministros Ilmar Galvão e Celso de Mello, respectivamente:  

“Leis de ordem pública – Razões de Estado – Motivos que não justificam o desrespeito estatal à Constituição – Prevalência da norma inscrita no art. 5º, XXXVI, da Constituição.

A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro.  


Razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição. As normas de ordem pública – que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política (RTJ 143/724) – não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade"38
.  


“O Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, teve o ensejo de repelir esse argumento de ordem política (RTJ 164/1145-1146, Rel. Min. Celso de Mello), por entender que a invocação das razões de Estado – além de deslegitimar-se como fundamento idôneo de impugnação judicial – representaria, por efeito das gravíssimas conseqüências provocadas por seu eventual reconhecimento, uma ameaça inadmissível às liberdades públicas, à supremacia da ordem constitucional e aos valores democráticos que a informam, culminando por introduzir, no sistema de direito positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilização"39
.

III.3. A noção de direito adquirido

Assentado que as razões de Estado e as leis de ordem pública não exoneram a atividade legislativa da observância da proteção constitucional do art. 5°, XXXVI, cumpre agora aprofundar a questão do direito adquirido. É ainda a antiga opinião de Gabba que baliza o tema, apontando-lhe como características: 1) ter sido conseqüência de um fato idôneo para a sua produção; 2) ter-se incorporado definitivamente ao patrimônio do titular40. O conhecimento corrente é o de que havendo o fato necessário à aquisição de um direito ocorrido integralmente sob a vigência de uma determinada lei, mesmo que seus efeitos somente se devam produzir em um momento futuro, terão de ser respeitados na hipótese de sobrevir uma lei nova41.  

O direito adquirido pode ser melhor compreendido se extremado de duas outras categorias que lhe são vizinhas, a saber: a expectativa de direito e o direito consumado. Com base na sucessão de normas no tempo e na posição jurídica a ser desfrutada pelo indivíduo em face da lei nova, é possível ordenar estes conceitos em seqüência cronológica: em primeiro lugar, tem-se a expectativa do direito, depois o direito adquirido e, por fim, o direito consumado. 

A expectativa de direito identifica a situação em que o fato aquisitivo do direito ainda não se completou quando sobrevém uma nova norma alterando o tratamento jurídico da matéria. Neste caso, não se produz o efeito previsto na norma, pois seu fato gerador não se aperfeiçoou. Entende-se, sem maior discrepância, que a proteção constitucional não alcança esta hipótese, embora outros princípios, no desenvolvimento doutrinário mais recente (como o da boa-fé e o da confiança), venham oferecendo algum tipo de proteção também ao titular da expectativa de direito42.  

Na seqüência dos eventos, direito adquirido traduz a situação em que o fato aquisitivo aconteceu por inteiro, mas por qualquer razão ainda não se operaram os efeitos dele resultantes. Nesta hipótese, a Constituição assegura a regular produção de seus efeitos, tal como previsto na norma que regeu sua formação, nada obstante a existência da lei nova. Por fim, o direito consumado descreve a última das situações possíveis – quando não se vislumbra mais qualquer conflito de leis no tempo – que é aquela na qual tanto o fato aquisitivo quanto os efeitos já se produziram normalmente. Nesta hipótese, não é possível cogitar de retroação alguma43.  

De modo esquemático, é possível retratar a exposição desenvolvida na síntese abaixo:  

a) Expectativa de direito: o fato aquisitivo teve início, mas não se completou;  

b) Direito adquirido: o fato aquisitivo já se completou, mas o efeito previsto na norma ainda não se produziu;  

c) Direito consumado: o fato aquisitivo já se completou e o efeito previsto na norma já se produziu integralmente44.  

Cumpre fazer uma nota final sobre o que se convencionou denominar de regime jurídico ou regime legal45. O chamado regime jurídico designa um espaço no qual, segundo a doutrina e, em especial, a jurisprudência, não há direito adquirido. Alguns exemplos citados com freqüência para exemplificar essa figura são as relações que existem entre o servidor e o ente público que o remunera46 e entre os indivíduos em geral e o padrão monetário existente no país47. Daí a afirmação, sempre repetida, de que, e.g., não há direito adquirido do servidor ao regime jurídico existente quando de sua entrada no serviço público, estando a lei nova autorizada a modificar esse regime mesmo em relação àquelas pessoas que já eram, antes de sua entrada em vigor, servidores48. Isso não afasta, contudo, a possibilidade de aquisição de direitos mesmo na constância de relações disciplinadas por um regime jurídico, bastando para tanto que os fatos aquisitivos legalmente previstos se realizem na sua integralidade. A prerrogativa de alterar unilateralmente as condições sob as quais se desenvolve o vínculo não poderia ter o condão de afastar a proteção constitucional conferida às situações já aperfeiçoadas segundo as exigências do Direito então vigente. Nesse sentido a seguinte passagem de voto do Min. Sepúlveda Pertence:

Vale dizer: nem o caráter institucional da relação com o FGTS, nem a conseqüente improcedência da pretensão de manter-se incólume à alteração do seu estatuto legal implicam não deva a incidência do regime novo respeitar eventuais direitos do trabalhador, adquiridos sob a lei anterior.  

Para sustentar o contrário, seria preciso – como pretendem as razões da Caixa – reviver a desgastada tese da inoponibilidade do direito adquirido ou do ato jurídico perfeito às leis de ordem pública – fruto da importação precipitada de lições doutrinárias fundadas em ordenamentos em que a sua salvaguarda não tem estatura constitucional – a qual, por isso, parece definitivamente sepultada na jurisprudência do Tribunal, pelo menos, desde as solenes exéquias que lhe dedicou o primoroso acórdão da ADIN 493, de 25-6-92, da lavra da Ministro Moreira Alves (RTJ 143/724).


A proteção do direito adquirido – tanto mais quanto objeto de garantia constitucional – é técnica, na feliz expressão de Radbruch (El fin del Derecho, trad., BsAs, 1980, p. 112), da ‘segurança do direito diante de sua mudança’: segue-se que a alteração do regime legal de uma relação jurídica, ainda que de caráter institucional, não afeta os efeitos jurídicos de fatos anteriores à lei nova, se bastantes a aperfeiçoar a aquisição de um direito
"49. (negrito acrescentado)  

 A construção da idéia de regime jurídico representa, na verdade, uma tentativa de delimitar – fora das hipóteses em que se cuide de ato jurídico perfeito e de coisa julgada – as situações que geram direito adquirido e as que não geram. Nada obstante, a definição do que é e do que não é regime jurídico tem sido resolvida casuisticamente pela jurisprudência e até o momento não se produziram parâmetros claros, capazes de definir esses espaços. Na verdade, duas formulações têm sido empregadas comumente para identificar o que seria o regime jurídico, uma positiva e outra negativa. Em primeiro lugar, diz-se, há regime jurídico quando a relação decorre da lei e não de um acordo de vontade das partes. A segunda formulação é assim enunciada: há regime jurídico quando não se trate de uma relação contratual50.

  III.4. A noção de ato jurídico perfeito  

A cláusula constitucional do art. 5°, XXXVI, faz referência a distintas figuras: o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Embora os três institutos sejam constitucionais, é na Lei de Introdução ao Código Civil - LICC (Decreto-Lei n° 4.657, de 04.09.42, na redação dada pela Lei nº 3.238, de 01.08.57) que se vai encontrar uma tentativa de conceituação de cada um deles51, nos seguintes termos:  

“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.  

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.  

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.  

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”52.  

Parte da doutrina visualiza em cada um deles estruturas diversas, cada qual objeto de proteção autônoma da Constituição53. A maioria dos autores, contudo, e também o Supremo Tribunal Federal54, identificam o direito adquirido como o objeto principal da proteção constitucional, sendo o ato jurídico perfeito e a coisa julgada apenas dois modos típicos – ainda que não únicos – de geração de direitos adquiridos. Ou seja: o ato jurídico perfeito e a coisa julgada dão origem a direitos adquiridos.

Alguns autores chegam a criticar a referência da Carta ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada como um excesso inútil; bastaria a menção ao direito adquirido para abranger todo o fenômeno55. Parecem ter melhor razão, no entanto, aqueles que vislumbram na tradicional opção do constituinte brasileiro pela referência tríplice um objetivo didático e simplificador: os conceitos de ato jurídico perfeito e de coisa julgada são mais simples e precisos que o de direito adquirido, de modo que a referência a eles, ainda que o objetivo indireto seja a proteção do direito adquirido por eles gerado, simplifica a discussão56. O Ministro Moreira Alves analisa a questão da seguinte forma:

“Esse conceito de direito adquirido para efeito de direito intertemporal é um conceito que se nós examinarmos mais de perto em face de outros dois – o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, nós vamos chegar à conclusão de que, na realidade, os três poderiam estar compendiados em um só, ou seja, tanto do ato jurídico perfeito quando da coisa julgada decorreriam necessariamente o direito adquirido. Conseqüentemente não haveria em rigor necessidade de valermo-nos desses outros dois conceitos. Mas a pergunta que se faz é por que isso? A resposta talvez seja uma resposta pragmática, mas eu nunca encontrei outra.

É que os conceitos de ato jurídico perfeito e coisa julgada são conceitos singelos, a respeito dos quais não há maior discussão, ao passo que o conceito de direito adquirido é um conceito bastante controvertido ou pelo menos um conceito cujo conteúdo ainda é bastante controvertido, e, conseqüentemente, dá margem a muitos problemas. Por isso mesmo é que os senhores verificam que toda vez que nós podemos lançar mão do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, ninguém vai lançar mão do direito adquirido"57.

Feita essa breve digressão, volta-se o foco para a noção de ato jurídico perfeito. Na definição da LICC, ato jurídico perfeito é o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Em palavras de Pontes de Miranda: “O ato jurídico perfeito é o negócio jurídico, ou o ato jurídico stricto sensu; portanto, assim as declarações unilaterais de vontade como os negócios jurídicos bilaterais"58. O contrato, como se sabe, constitui o típico negócio jurídico bilateral e é o exemplo mais citado de ato jurídico perfeito. Para os fins da discussão aqui proposta, é nele que se concentrará a discussão da matéria.  

Em desfecho desse tópico e antes de aprofundar a discussão específica, é possível compendiar de modo sumário as principais idéias expostas até aqui, consoante as proposições seguintes: 

1. inexiste liberdade de conformação do legislador para aplicar o direito novo a situações jurídicas já consolidadas, que se subsumam nas hipóteses constitucionalmente protegidas de direito adquirido e ato jurídico perfeito;

2. é irrelevante a qualificação da lei nova como lei dispositiva ou de ordem pública, para fins de se solver o conflito intertemporal de leis; e

3. somente o constituinte originário pode afetar direito adquirido e ato jurídico perfeito, mas ainda assim deverá fazê-lo de modo expresso. O legislador infraconstitucional somente poderá prescrever a retroatividade quando ela não afetar as situações constitucionalmente protegidas.  

Parte II

O Novo Código Civil e os Contratos a Ele Anteriores

 

IV. Os Contratos e a Proteção Constitucional do Ato Jurídico Perfeito

 

A teoria do ato jurídico perfeito e do direito adquirido teve especial desenvolvimento no campo dos contratos, tendo em conta a importância da autonomia da vontade nesse particular. Ao manifestarem o desejo de se vincular em um ajuste, as partes avaliam as conseqüências dessa decisão, considerando as normas em vigor naquele momento. É incompatível com a idéia de segurança jurídica admitir que a modificação posterior da norma pudesse surpreender as partes para alterar aquilo que tinham antevisto no momento da celebração do contrato. Por essa razão é que mesmo Paul Roubier, o defensor da incidência imediata da lei nova sobre os fatos pendentes, abria exceção explícita em sua teoria aos contratos. Estes, assinalou Roubier, não se regem pelo princípio da incidência imediata da lei nova, e sim pelo da sobrevivência da lei antiga59.

 

Em suma: as relações contratuais regem-se, durante toda a sua existência, pela lei vigente quando de sua constituição. Isto é: a lei nova não pode afetar um contrato já firmado, nem no que diz respeito à sua constituição válida, nem à sua eficácia. Os efeitos provenientes do contrato, independentemente de se produzirem antes ou depois da entrada em vigor do direito novo, são também objeto de salvaguarda, na medida em que não podem ser dissociados de sua causa jurídica, o próprio contrato. A lição de Henri de Page sobre o assunto é clássica e foi reproduzida por Caio Mário da Silva Pereira nos seguintes termos:  

 

“Os contratos nascidos sob o império da lei antiga permanecem a ela submetidos, mesmo quando os seus efeitos se desenvolvem sob o domínio da lei nova. O que a inspira é a necessidade da segurança em matéria contratual. No conflito dos dois interesses, o do progresso, que comanda a aplicação imediata da lei nova, e o da estabilidade do contrato, que conserva aplicável a lei antiga, tanto no que concerne às condições de formação, de validade e de prova, quanto no que alude aos efeitos dos contratos celebrados na vigência da lei anterior, preleva este sobre aquele"60.  

 

A questão, na verdade, como já se tinha destacado desde o início, não é controvertida. A doutrina aponta a existência de consenso no sentido de subordinar os efeitos do contrato à lei vigente no momento em que tenha sido firmado, mesmo quando tal aplicação importa em atribuir ultratividade à lei anterior, negando-se efeito à lei nova61. A aplicação imediata da lei nova, nesse caso, produziria a denominada retroatividade mínima, que por ser igualmente gravosa à segurança jurídica, é também vedada pelo sistema constitucional. Reaviva-se aqui a passagem clássica do Ministro Moreira Alves sobre o assunto, in verbis:

 

“Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. Nesse caso, a aplicação imediata se faz, mas com efeito retroativo"62.  

 

Vale ainda observar que as conclusões expostas acima não se alteram quando estejam em questão contratos de trato sucessivo ou de execução continuada, cuja característica é exatamente a produção de efeitos que se protraem no tempo. Parece fora de dúvida que também esses ajustes consubstanciam atos jurídicos perfeitos e devem reger-se, para todos os seus efeitos, pela lei vigente ao tempo de sua constituição. A doutrina, tanto clássica como mais moderna, é incontroversa a este respeito63.  

 

A jurisprudência é igualmente tranqüila nesse mesmo sentido. Tal foi o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em relação aos contratos que se encontravam em curso quando da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, sobre os quais o novo diploma não pôde incidir64, e do Supremo Tribunal Federal, ainda antes de 1988, no que diz respeito aos contratos de locação, em relação à nova lei que passou a reger a matéria65. Após a nova Constituição, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar reiteradas vezes sobre o ponto66. Recentemente, reiterou seus precedentes no tocante as cadernetas de poupança e pronunciou-se acerca da incidência da lei dos planos de saúde às relações preexistentes. Confiram-se excertos de cada uma das decisões:

 

Caderneta de poupança – Contrato de depósito validamente celebrado – Ato jurídico perfeito – Intangibilidade constitucional – CF/88, art. 5º, XXXVI – Inaplicabilidade de lei superveniente à data da celebração do contrato de depósito, mesmo quanto aos efeitos futuros decorrentes do ajuste negocial (...) Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As conseqüências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação. Os contratos – que se qualificam como atos jurídicos perfeitos (RT 547/215) – acham-se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República. Doutrina e Precedentes (...) – A incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade injusta de grau mínimo), achando-se desautorizada pela cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas. Precedentes"67.  

 

“O Tribunal, por aparente ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5º, XXXVI), deferiu em parte o pedido de medida cautelar para declarar a inconstitucionalidade da expressão "atuais e" constante do § 2º do art. 10 da Lei 9.656/98, com a redação dada pela Medida Provisória 1.908-18/99, delimitando, no entanto, a incidência da declaração aos contratos aperfeiçoados até o dia 3/6/98, e aos aperfeiçoados entre 4/6/98 e 1º/9/98 e entre 8/12/98 e 2/12/99 (‘Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei (...) § 2º As pessoas jurídicas que comercializam produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, oferecerão, obrigatoriamente, a partir de 3 de dezembro de 1999, o plano-referência de que trata este artigo a todos os seus atuais e futuros consumidores’)"68.  

Em suma: os contratos, frutos da autônoma estipulação das partes, bem como seus efeitos futuros, encontram-se protegidos pela garantia constitucional prevista no art. 5º, XXXVI, contra os efeitos da lei nova, que não poderá atingi-los69.  

V. Inconstitucionalidade Parcial do Art. 2.035 do Novo Código Civil no Que Diz Respeito aos Contratos Celebrados na Vigência do Código de 1916.

À vista dos conceitos expostos até aqui, cabe em desfecho examinar diretamente o art. 2.035 do novo Código Civil. Este o teor literal do dispositivo, que se reproduz mais uma vez, por facilidade:  

“Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.  

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. 

Da leitura do enunciado normativo transcrito é possível visualizar, desde logo, dois vícios de inconstitucionalidade bastante claros, quando se pretenda aplicá-lo aos contratos. O primeiro vício está localizado na oração final do caput. A despeito de o artigo iniciar registrando que a validade dos negócios e atos jurídicos constituídos antes da entrada em vigor do novo Código está subordinada ao que dispunham as normas que lhe eram contemporâneas, a sua parte final pretende que os efeitos desses mesmos negócios sejam agora submetidos ao que prevê o novo Código Civil. Ora, como se procurou demonstrar, em matéria de contratos isto é, de atos jurídicos que resultam da disposição autônoma das partes, não apenas as condições de sua validade, mas também seus efeitos encontram-se protegidos da incidência da lei superveniente, ainda que se trate de efeitos futuros e não realizados quando da entrada em vigor do novo diploma normativo.

A segunda inconstitucionalidade do artigo encontra-se em seu parágrafo único, na medida em que se entenda que a norma pretende fazer aplicar disposições do novo Código Civil aos contratos em curso (dentre outros atos jurídicos), sob o fundamento de terem o caráter de normas de ordem pública, como, e.g., as que envolvam a função social da propriedade e do contrato70. Como também já se expôs acima, o fato de uma norma poder ser qualificada como de ordem pública não lhe confere o poder de afastar a garantia constitucional prevista pelo art. 5º, XXXVI, da Carta de 1988. Diante de um ato jurídico perfeito, torna-se irrelevante qual a natureza da norma: todas elas deverão respeito ao ato, por expressa determinação constitucional.

Em resumo: o art. 2.035 do novo Código Civil produz duas situações de invalidade, na verdade interligadas, que podem ser descritas da seguinte forma: é inconstitucional, por violar a garantia constitucional conferida ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5º, XXXVI), a aplicação do novo Código Civil aos efeitos de contratos firmados antes da vigência desse diploma, como pretende o caput do art. 2.035, conclusão que não se altera pelo fato de as normas do novo diploma poderem ser qualificadas como normas de ordem pública71.

Conclusão

Em desfecho desse estudo, é possível sintetizar as principais idéias nele desenvolvidas em uma conclusão objetiva, enunciada na proposição que se segue. 

A garantia contra a retroatividade da lei prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição, impede que os contratos, mesmo aqueles de trato sucessivo, ou quaisquer outros atos jurídicos perfeitos, sejam afetados pela incidência da lei nova, tanto no que diz respeito à sua constituição válida, quanto no que toca à produção de seus efeitos, ainda que estes se produzam já sob o império da nova lei. Neste sentido, não pode ser aplicada integralmente a regra do art. 2.035 do novo Código Civil, sob pena de inconstitucionalidade. Esta conclusão não se altera pelo fato de a norma nova poder ser qualificada como norma de ordem pública. A Constituição não distingue entre espécies de leis e não se pode admitir que a norma infraconstitucional, qualificando a si própria de uma determinada forma, afaste a garantia constitucional. A proteção constitucional recai sobre o núcleo da manifestação de vontade das partes e seus efeitos, e não sobre o tratamento legal do instituto ou da matéria.


1O art. 2.045 é o que declara revogados, pelo novo Código Civil, o Código Civil de 1916 e a primeira parte do Código Comercial.
2Constituição Federal, art. 5, LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Na Emenda 5 à Constituição dos Estados Unidos da América: “No person shall be deprived of life, liberty, or property, without due process of law”.  
3Lei nº 9.784/99: “Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.  
4Lei nº 9.784/99: “Art. 2º (...): IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”.  
5Lei nº 9.784/99: “Art. 2º (...): XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”.  
6Lei nº 5.172/66: “Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução”.  
7Lei nº 9.868/99: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.  
8O dispositivo é objeto de duas ações diretas de inconstitucionalidade, ainda não apreciadas: ADIn 2.154-2 e ADIn 2.258-0, ambas tendo como relator o Min. Sepúlveda Pertence.  
9A propósito, veja-se Luís Roberto Barroso, “A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo”. In: Temas de direito constitucional, Tomo I, 2002, p. 51.  
10Até a edição da Emenda Constitucional nº 32, de 11.09.01, já haviam sido editadas 619 Medidas Provisórias originárias, tendo havido 5.491 reedições e 22 rejeições. Após a Emenda, foram editadas mais 139 Medidas Provisórias originárias, sendo que 25 tiveram seu prazo de vigência prorrogado – por mais 60 dias, nos termos do art. 62, § 7º da Constituição –, e 14 foram rejeitadas.  
11Eduardo Couture, Os mandamentos do advogado, 1979, tradução de Ovídio Batista da Silva.
12Paul Roubier, Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps), 1960, p. 3-4.
13Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, 1946, p. 7.  
14Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, cit., p. 10.  
15Paul Roubier, Le droit transitoire, cit., p. 223. Sobre o tema, no direito brasileiro, v. R. Limongi França, A irretroatividade das leis e o direito adquirido, 1982.  
16Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos, art. 14: “A ninguna ley se dará efecto retroactivo en perjuicio de persona alguna”.  
17Este é o entendimento acolhido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como se vê em ADInMC 605-DF, RTJ, 145:463, 1993, rel. Min. Celso de Mello: “O princípio da irretroatividade somente condiciona a atividade jurídica do Estado nas hipóteses expressamente previstas pela Constituição, em ordem a inibir a ação do Poder Público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao status libertatis da pessoa (CF, art. 5º, XL), (b) ao status subjectionis do contribuinte em matéria tributária (CF, art. 150, III, a) e (c) à segurança jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5º, XXXVI)”. A doutrina, tanto civilista como publicista, chancela este ponto de vista, como se colhe, por todos, em: Silvio Rodrigues, Direito civil, v. 1, p. 51 e 53; e Pinto Ferreira, Comentários à Constituição brasileira, 1989, v. 1, p. 143.  
18M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1979, p. 3.
19Na doutrina, vejam-se, por todos, Caio Mário da Silva Pereira, Direito constitucional internacional, RF, 304:29, 1998, e Wilson de Souza Campos Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 438. Na jurisprudência, v. RTJ, 67:327, Rep. 895, rel. Min. Djaci Falcão, RTJ, 71:461, RE 75.418, rel. Min. Thompson Flores, e RTJ, 140:1008, AI 134.271, rel. Min. Moreira Alves, RDA, 196:107, 1994, ADIn 248-1-RJ, rel. Min. Celso de Mello, onde se lavrou: “A supremacia jurídica das normas inscritas na Carta Federal não permite, ressalvadas as eventuais exceções proclamadas no próprio texto constitucional, que contra elas seja invocado o direito adquirido”. Também no Superior Tribunal de Justiça se decidiu: “A nova Carta Política proibiu, no art. 7º, IV, a vinculação de valores ao salário mínimo, “para qualquer efeito”. Dada a vedação, insubsiste qualquer direito adquirido à percepção de vencimentos ou proventos expressos em número desses salários” (RT, 692:162, 1993, RMS 762-0-GO, rel. Min. Demócrito Reinaldo).  
20Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, cit., p. 53.  
21Igual orientação é seguida por Wilson Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 438. V., também, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira, 1990, v. 1, p. 9: “Só se deve aceitar como retroativa uma norma constitucional se isto resultar inapelavelmente do texto”.  
22Art. 17: “Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, inovação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título”.  
23RT, 685:73, AP. 158.745-1/1, TJSP, rel. Des. Cezar Peluso.
24“A cláusula temporária e extravagante do art. 17 do Alto das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988 não alcança situações jurídicas cobertas pela preclusão maior, ou seja, pelo manto da coisa julgada” (STF, RTJ, 167:656, 1999, RE 146.331-SP, rel. Min. Marco Aurélio). E, nos termos do voto do relator, ficou didaticamente consignado: “A norma diz da impossibilidade de evocar-se o direito adquirido, silenciando quanto à coisa julgada, isto é, aquelas situações jurídicas submetidas ao crivo do Estado-juiz e já cobertas pelo manto da preclusão maior, no que voltada à segurança da vida em sociedade. É certo que, ao término do preceito, há referência a percepção de excesso a qualquer título. Todavia, a menção há de ter alcance perquirido considerada a referência a direito adquirido e ao silêncio, já consignado, quanto à coisa julgada. É induvidoso que o instituto da coisa julgada, agasalhado sistematicamente pelas Cartas brasileiras, revela-se possuidor de contornos inerentes às cláusulas pétreas ...”.  
25A este propósito, v. o agudo comentário do ex-Ministro José Carlos Moreira Alves, Direito adquirido, Fórum Administrativo, 15:579, 2002, p. 581: “O que é certo é que se também não tivesse sede constitucional seria uma tragédia; nos países do sistema legal as leis a que se dá efeito retroativo são relativamente raras, e aqui no Brasil, apesar do princípio constitucional, o que sucede é exatamente o contrário. Daí a razão pela qual uma multidão de questões surge a todo momento com referência a este problema de direito intertemporal no que diz respeito a ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada”.  
26Gabba, Teoria della retroattività delle leggi, 1868.  

27Paul Roubier, Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps), 1960.  
28Caio Mário sintetiza com precisão a disputa: “Na solução do problema [do conflito intertemporal de leis], duas escolas se defrontam. Uma, ‘subjetivista’, representada precipuamente por Gabba, afirma que a lei nova não pode violar direitos precedentemente adquiridos, que ele define como conseqüências de um fato idôneo a produzi-lo em virtude da lei vigente ao tempo em que se efetuou, embora o seu exercício venha se apresentar sob o império da lei nova (Gabba, ‘Teoria della retroattività delle leggi’, vol. I, p. 182 e segs.). O que predomina é a distinção entre o ‘direito adquirido’ e a ‘expectativa de direito’. Outra, ‘objetivista’, que eu considero representada por Paul Roubier, para o qual a solução dos problemas está na distinção entre ‘efeito imediato’ e ‘efeito retroativo’. Se a lei nova pretende aplicar-se a fatos já ocorridos (facta praeterita) é retroativa; se se refere aos fatos futuros (facta futura) não o é. A teoria se diz objetiva, porque abandona a idéia de direito adquirido, para ter em vista as situações jurídicas, proclamando que a lei que governa os efeitos de uma situação jurídica não pode, sem retroatividade, atingir os efeitos já produzidos sob a lei anterior (Paul Roubier, ob. cit., vol. I, n. 41 e segs.)” (Caio Mário da Silva Pereira, Direito constitucional intertemporal, RF, 304:29, 1988, p. 31).  
29STF, RTJ, 143:744-5, ADIn 493-DF, rel. Min. Moreira Alves.,  
30Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 32: “Como ultimo elemento característico do direito adquirido, exige a definição que o direito ainda não tenha sido feito valer, isto é, que ainda não tenha sido realisado em todos os seus effeitos. Nesta condição está o criterio pelo qual se distingue o direito adquirido daquelle que já foi consummado. Desde que o titular de um direito já o fez valer contra quem elle existia, e desde que já se realisaram os effeitos delle decorrentes, esse direito entrou para a classe dos factos consummados, deante dos quaes nem é possivel cogitar de acção retroactiva de lei alguma. O direito adqquirido é um direito que pertence a alguem, mas que ainda não produziu todos os seus effeitos (...)” (transcrição ipsis litteris).  
31Sobre o ponto, v. tb. Celso Antônio Bandeira de Mello, O direito adquirido e o direito administrativo, RTDP, 24:54, 1998, p. 58: “Daí que o grande mérito da teoria do direito adquirido não reside na proposta de salvaguardar o que já se venceu, mas justamente em oferecer solução para os problemas suscitados pelos facta pendentia, ao indicar quando a lei nova tem que respeitar o que ainda não está clausurado pela cortina do tempo transacto”.  
32A propósito da posição que as leis de ordem pública assumem no conflito intertemporal de leis, Rubens Limongi França registra a presença de três correntes doutrinárias razoavelmente bem definidas no direito brasileiro. Na primeira delas, a dos partidários do efeito retroativo, incluir-se-iam Clóvis Beviláqua, os Espínolas e Carvalho Santos. Na outra mão, autores como Eduardo Theiler, Oscar Tenório e Caio Mário propugnam o respeito ao direito adquirido. E, por fim, há o grupo dos consectários do efeito imediato, integrado, entre outros, por Pontes de Miranda e Vicente Ráo. Peculiar é o entendimento do próprio Rubens Limongi França, para quem as normas de importância pública ou social expressiva, que têm efeito imediato como regra, poderiam retroagir desde que: (i) o legislador assim determinasse explicitamente e (ii) tal retroatividade, ao sobrepujar direitos adquiridos, não alcançasse proporções de desequilíbrio social e jurídico. V. Rubens Limongi França, A irretroatividade das leis e o direito adquirido, 1982, p. 253 e s.  
33Vejam-se: Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 67: “O que convém ao applicador de uma nova lei de ordem publica ou de direito publico, é verificar se, nas relações jurídicas já existentes, há ou não direitos adquiridos. No caso affirmativo, a lei não deve retroagir, porque a simples invocação de um motivo de ordem publica não basta para justificar a offensa ao direito adquirido, cuja inviolabilidade, no dizer de Gabba, é também um forte motivo de interesse publico”; e  Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, vol. I, 1997, p. 107: “Costuma-se dizer que as leis de ordem pública são retroativas. Há uma distorção de princípio nesta afirmativa. Quando a regra da não-retroatividade é de mera política legislativa, sem fundamento constitucional, o legislador, que tem o poder de votar leis retroativas, não encontra limites ultralegais à sua ação, e, portanto, tem a liberdade de estatuir o efeito retrooperante para a norma de ordem pública, sob o fundamento de que esta se sobrepõe ao interesse individual. Mas, quando o princípio da não-retroatividade é dirigido ao próprio legislador, marcando os confins da atividade legislativa, é atentatória da Constituição a lei que venha ferir direitos adquiridos, ainda que sob inspiração da ordem pública. A tese contrária encontra-se defendida por escritores franceses ou italianos, precisamente porque, naqueles sistemas jurídicos, o princípio da irretroatividade é dirigido ao juiz e não ao legislador”.
34Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 67: “Antes de tudo, cumpre ponderar que é difficilimo discriminar nitidamente aquillo que é de ordem publica e aquillo que é de ordem privada. São tão intimas as relações de direito publico e de direito privado, que já Bacon observava no seu aphorismo III – jus privatum, sub tutela juris publici, latet. O interesse publico e o interesse privado se entrelaçam de tal fórma, que as mais das vezes não é possível separá-los”. (transcrição ipsis litteris) . Note-se que o registro foi feito há quase um século.  
35Para uma contestação deste que sempre foi considerado um dos principais paradigmas do direito público brasileiro, confira-se o trabalho de Humberto Bergmann Ávila, Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”,  RTDP, 24:159, 1998. Joana Carolina Lins Pereira, que já analisa a posição das leis de ordem pública no conflito intertemporal de leis sob o prisma da ponderação de princípios, conclui igualmente pela prevalência da segurança jurídica (Direito adquirido e leis de ordem pública, Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, 176:51, 2000).  
36Nesse mesmo sentido, dentre outros: STF, DJU, 6 jun. 1997, RE 205.193-RS, rel. Min. Celso de Mello; RTJ, 89:634, 1979; RE 88.790-RS, rel. Min. Moreira Alves; 90:296, 1979, RE 89.430-BA, rel. Min. Rodrigues Alckmin; 107:394, 1984, RE 99.601-SP, rel. Min. Rafael Mayer; 112:759, 1985, AgRg no AI 99.655-SP, rel. Min. Moreira Alves; e 164:1145, 1998, RE 209.519-SC, rel.Min. Celso de Mello.  
37STF, RTJ, 143:724, 1993, ADIn 493-DF, rel. Min. Moreira Alves.
38STF, RTJ, 164:1145, 1998, RE 209.519-SC, rel. Min. Celso de Mello.  
39STF, RTJ, 174:916, 2000, p. 986, RE 226.855-RS, rel. Min. Moreira Alves.  
40V. Gabba, Teoria della retroattività delle leggi, 1868, p. 191: “É adquirido todo direito que: a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato se realizou, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova a respeito do mesmo, e que b) nos termos da lei sob o império da qual se verificou o fato de onde se origina, passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu”. V., também, Carlyle Popp, A retroatividade das normas constitucionais e os efeitos da Constituição sobre os direitos adquiridos, Paraná Judiciário, 36, p. 13.  
41Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 32: “Direitos adquiridos são consequencias de factos juridicos passados, mas consequencias ainda não realisadas, que ainda não se tornaram de todo effectivas. Direito adquirido é, pois, todo o direito fundado sobre um facto juridico que já succedeu, mas que ainda não foi feito valer”.  
42Almiro do Couto e Silva, Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de direito contemporâneo, RDP, 84:46, 1987.  
43Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 32.  
44Um exemplo ilustrativo. A Emenda Constitucional n° 20, de 15.12.98, instituiu a idade mínima de 60 anos para a aposentadoria dos servidores públicos do sexo masculino. Anteriormente, bastava o tempo de serviço de 35 anos. Ignorando-se as sutilezas do regime de transição, para simplificar o exemplo, confira-se a aplicação dos conceitos. O servidor público de 55 anos, que já tivesse se aposentado pelas regras anteriores, desfrutava de um direito consumado, isto é, não poderia ser “desaposentado”. O servidor público que tivesse 55 anos de idade e 35 de serviço quando da promulgação da emenda, mas ainda não tivesse se aposentado, tinha direito adquirido a aposentar-se, pois já se haviam implementado as condições de acordo com as regras anteriormente vigentes. O servidor que tivesse 45 anos de idade e 25 de serviço, e que contava se aposentar daí a 10 anos, tinha mera expectativa de direito, não desfrutando de proteção constitucional plena  (embora se deva cogitar de que pudesse pleitear um regime de transição razoável, com base nos princípios da boa-fé e da confiança).  
45José Carlos Moreira Alves, Direito adquirido, Fórum Administrativo, 15:579, 2002, p. 584.  
46STF, DJU, 05 abr. 2002, p. 55, RE 177.072-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence: “Servidores da Universidade de São Paulo: limite remuneratório estabelecido pelos Decretos 28.218 e 28.359, de 1988, de conformidade com o disposto no art. 8º da LC est. 535, de 29.2.88: inocorrência de ofensa à garantia constitucional do direito adquirido – que não impede a aplicação imediata de norma modificadora do regime jurídico do servidor público –, nem ao princípio da isonomia, que não serve de fundamento para concessão por decisão judicial de aumento de vencimentos de servidores públicos (Súmula 339)”;STF, DJU, 19 abr. 1996, RE 178.802-RS, rel. Min. Maurício Correa: “Os proventos da inatividade são regulados pela norma vigente ao tempo de sua aposentadoria, mas o servidor não tem direito adquirido aos critérios legais com base em que “quantum” foi estabelecido, nem à prevalência do regime jurídico então vigente, ainda mais quando, em obediência a preceito constitucional a esse superveniente, lei nova vem disciplinar o regime jurídico e o plano de carreira dos servidores, incorporando aos vencimentos e proventos as gratificações antes recebidas “em cascata” ou “repique”, que não são permitidas pela nova ordem constitucional”. No mesmo sentido: RTJ, 143:293, 1993, RE 134.502-SP, rel. Min. Carlos Velloso; RTJ, 99:1.267-SC, 1982, RE 92.511, rel. Min. Moreira Alves; RTJ 88:651, 1979, RE 88.305-CE, rel. Min. Moreira Alves.  
47STF, DJU, 01 mar. 1991, RE 114.982-RS, rel. Min. Moreira Alves: “Locação. Plano cruzado. Alegação de ofensa ao § 3º do artigo 153 da Emenda Constitucional nº 1/69. Decreto-Lei nº 2.290/86 e Decreto nº 92.592/86. - Falta de prequestionamento da questão constitucional (alegação de ofensa ao § 3º do art. 153 da Emenda Constitucional nº 1/69), quanto a limitação da cláusula de reajuste semestral do aluguel referida no acórdão recorrido. - Já se firmou a jurisprudência desta Corte, como acentua o parecer da Procuradoria-Geral da República, no sentido de que as normas que alteram o padrão monetário e estabelecem os critérios para a conversão dos valores em face dessa alteração se aplicam de imediato, alcançando os contratos em curso de execução, uma vez que elas tratam de regime legal de moeda, não se lhes aplicando, por incabíveis, as limitações do direito adquirido e do ato jurídico perfeito a que se refere o § 3º do artigo 153 da Emenda Constitucional nº 1/69. Recurso extraordinário não conhecido”.  
48José Carlos Moreira Alves, Direito adquirido, Fórum Administrativo, 15:579, 2002, p. 584.
 
49STF, RTJ, 174:916, 2000, p. 992, RE 226.855-RS, rel. Min. Moreira Alves. Registre-se, todavia, que o voto do Min. Sepúlveda Pertence acabou restando vencido, tendo o Tribunal decidido que os trabalhadores não tinham direito adquirido à correção do saldo da conta vinculada do FGTS por determinados índices, embora reconhecida a validade dos mesmos para os períodos invocados pelos recorrentes, sob o fundamento de que a relação em tela é de caráter institucional, com o que não seria invocável a garantia do art. 5º, XXXVI, da Constituição. A posição do Ministro Pertence é a que corresponde melhor às idéias desenvolvidas no presente trabalho.  
50STF, DJU, 13 out. 2000, RE 226.855-RS, rel. Min. Moreira Alves,:“Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS. Natureza jurídica e direito adquirido. Correções monetárias decorrentes dos planos econômicos conhecidos pela denominação Bresser, Verão, Collor I (no concernente aos meses de abril e de maio de 1990) e Collor II. - O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), ao contrário do que sucede com as cadernetas de poupança, não tem natureza contratual, mas, sim, estatutária, por decorrer da Lei e por ela ser disciplinado. - Assim, é de aplicar-se a ele a firme jurisprudência desta Corte no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico. - Quanto à atualização dos saldos do FGTS relativos aos Planos Verão e Collor I (este no que diz respeito ao mês de abril de 1990), não há questão de direito adquirido a ser examinada, situando-se a matéria exclusivamente no terreno legal infraconstitucional. - No tocante, porém, aos Planos Bresser, Collor I (quanto ao mês de maio de 1990) e Collor II, em que a decisão recorrida se fundou na existência de direito adquirido aos índices de correção que mandou observar, é de aplicar-se o princípio de que não há direito adquirido a regime jurídico. Recurso extraordinário conhecido em parte, e nela provido, para afastar da condenação as atualizações dos saldos do FGTS no tocante aos Planos Bresser, Collor I (apenas quanto à atualização no mês de maio de 1990) e Collor II”.  
51Quinze anos passados da entrada em vigor da Carta de 1988, não se tem notícia de que a constitucionalidade da LICC tenha sido questionada, de modo que, para todos os efeitos, deve-se considerá-la recepcionada pela nova ordem constitucional. Vale lembrar, no entanto, que os conceitos em questão (ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido) são constitucionais e não legais. Sobre o assunto, v. STF, RTJ, 174:932-933, 2000, RE 226.855-RS, rel. Min. Moreira Alves,: “O próprio Superior Tribunal de Justiça já chegou à conclusão de que, quando há alegação de direito adquirido, a questão é puramente constitucional, pois não se pode interpretar a Constituição com base na lei, sendo certo que o artigo 6° da Lei de Introdução ao Código Civil nada mais faz do que explicitar conceitos que são os da Constituição, dado que o nosso sistema de vedação da retroatividade é de cunho constitucional. E para se aferir se há, ou não, direito adquirido violado pela lei nova é preciso verificar se a aquisição dele se deu sob a vigência da lei antiga, não podendo, pois, ser ele prejudicado por aquela. A não ser que se faça esse confronto, jamais teremos hipótese em que esta Corte possa fazer prevalecer a vedação constitucional da retroatividade. Foi o que sempre se fez com relação aos reajustamentos de vencimentos em face dos planos econômicos. O contrário não é consagrado na jurisprudência deste Tribunal”. 
52É comum ver-se defendida a tese de que a Constituição, pela dicção da norma que estabelece o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, teria consagrado como princípio a retroatividade, e não o contrário. De fato, a lei pode retroagir legitimamente desde que não fira direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada e nem viole alguma das outras disposições que impedem sua ação retroativa. Todavia, tendo em vista a gravidade da retroatividade da lei, e o fato de que, na prática, tais figuras abarcam parcela mais expressiva das situações controvertidas, o verdadeiro princípio tem o sinal invertido; por isso, o mais apropriado é falar em não-retroatividade. V. José Carlos Moreira Alves,Direito adquirido, Fórum Administrativo, 15:579, 2002, p. 581.  
Este é o entendimento acolhido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como se vê na ADInMC 605-DF, RTJ, 145:463, 1993, rel. Min. Celso de Mello,: “O princípio da irretroatividade somente condiciona a atividade jurídica do Estado nas hipóteses expressamente previstas pela Constituição, em ordem a inibir a ação do Poder Público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao status libertatis da pessoa (CF, art. 5º, XL), (b) ao status subjectionis do contribuinte em matéria tributária (CF, art. 150, III, a) e (c) à segurança jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5º, XXXVI)”. A doutrina, tanto civilista como publicista, chancela este ponto de vista, como se colhe, por todos, em: Silvio Rodrigues, Direito civil, vol. 1, pp. 51 e 53; e Pinto Ferreira, Comentários à Constituição brasileira, vol. 1, 1989, p. 143.  
53Nesse sentido, Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, t. V, 1971, p. 102: “O ato jurídico perfeito, a que se refere o art. 153, § 3° [agora, art. 5°, XXXVI], é o negócio jurídico, ou o ato jurídico stricto sensu; portanto, assim as declarações unilaterais de vontade como os negócios jurídicos bilaterais, assim os negócios jurídicos, como as reclamações, interpretações, a fixação de prazo para a aceitação de doação, as comunicações, a constituição de domicílio, as notificações, o reconhecimento para interromper a prescrição ou com sua eficácia (ato jurídico stricto sensu)”; e José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 1997, p. 414: “A diferença entre direito adquirido e ato jurídico perfeito está em que aquele emana diretamente da lei em favor de um titular, enquanto o segundo é negócio fundado na lei”.
  54V. STF, DJU, 28 set. 1984, RE 102.216-SP, rel. Min. Moreira Alves: “Direito de preferência de locatário de imóvel vendido a terceiro. (...) Em face do parágrafo 3º do artigo 153 da Constituição, que não faz qualquer distinção em matéria de ato jurídico perfeito e de direito adquirido, é indubitável que o contrato válido entre as partes é ato jurídico perfeito, dele decorrendo, para uma ou para ambas, direitos adquiridos. Se a lei posterior cria para terceiro direito sobre o objeto do contrato e oponível a ambas as partes contratantes, não pode ela, sob pena de alcançar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido entre as partes, ser aplicada a contratos validamente celebrados antes de sua vigência”. V. também Informativo STF nº 32: “A referência a direito adquirido constante do art. 17 do ADCT (‘Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, a invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título.’) compreende a coisa julgada e o ato jurídico perfeito. Com esse fundamento a Turma conheceu e deu provimento a RE interposto contra acórdão que deferira mandado de segurança para assegurar aos impetrantes (servidores públicos) reajuste de remuneração idêntico ao concedido a outra categoria funcional, sob o argumento de que esse direito fora reconhecido por decisão transitada em julgado. Precedente citado: RE 140.894-SP (1ª Turma, 10.05.95). RE 171.235-MA, rel. Min. Ilmar Galvão, 21.05.96”.
55Rubens Limongi França, A irretroatividade das leis e o direito adquirido, 1982, p. 212.  
56Nas palavras de Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil, 1976, p. 26-7: “Em rigor, tudo se reduz ao respeito assegurado aos direitos adquiridos; mas, como no ato jurídico perfeito e na coisa julgada se apresentam momentos distintos, aspectos particulares do direito adquirido, foi de vantagem, para esclarecimento da doutrina, que se destacassem esses casos particulares e deles se desse a justa noção”.  
57José Carlos Moreira Alves, Direito adquirido, Fórum Administrativo, 15:579, 2002, p. 582/3.
58Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, t. V, 1971, p. 102.
59V. Paul Roubier, Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps), 1960.  
60Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, vol. I, 1997, pp. 100-101.  
61Confirmando a assertiva, v. Arnoldo Wald, Da doutrina brasileira do direito adquirido e a projeção dos efeitos dos contratos contra a incidência da lei nova, RILSF, 70:143, 1981, p. 145.
62José Carlos Moreira Alves, As leis de ordem pública e de direito público em face do princípio constitucional da irretroatividade, Revista da Procuradoria-Geral da República, 1:13, 1992, p. 14.  
63V. Vicente Ráo, Ato jurídico, 1999, p. 63: “Os atos de execução continuada (todos e não apenas os contratos) caracterizam-se pela unidade orgânica da relação e pelo desdobramento ou pluralidade de suas prestações, a fim de serem cumpridas em momentos ou termos sucessivos e predeterminados por lei, ou por atos dispositivos convencionais. Embora distintas quanto ao tempo de vencimento, essas prestações múltiplas ou desdobradas umas às outras se prendem em conseqüência da unidade estrutural da relação que, gerando-as, as disciplina”; e Celso Antônio Bandeira de Mello, O direito adquirido e o direito administrativo, RTDP, 24:54, 1998, p. 61: “É de lembrar que os contratos de trato sucessivo constituem-se por excelência em atos de previsão. Por meio deste instituto a ordem jurídica prestigia a autonomia da vontade ao ponto de propiciar-lhe o poder de fazer ajustes cuja força específica é atrair para o presente eventos a serem desenrolados em um futuro às vezes distante.  
Por via dele, então, as partes propõem-se a garantir, desde já, aquilo que deverá ubicar-se no futuro. Donde, ao se comprometerem, o que os contratantes estão visando é à eliminação da precariedade, porque a essência do pacto é (...) estabilizar, de logo, eventos que deverão suceder mais além no tempo. O fulcro do instituto, portanto, repousa na continuidade dos termos que presidem a avença. Se a lei nova pudesse subverter o quadro jurídico dentro do qual as partes avençaram, fazendo aplicar de imediato as regras supervenientes, estaria negando sentido à própria essência deste tipo de vínculo, por instaurar resultado oposto ao que se busca com o instituto do contrato”.
 
64STJ, DJU, 04 abr. 1994, REsp 31.954-0-RS, rel. p/acórdão Min. Waldemar Zveiter: “Por primeiro, considero que, formalizado o compromisso de venda e compra anteriormente à vigência da Lei nº 8.078, de 11.9.90 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor), não incide na hipótese sub judice o preceituado art. 53 do mencionado diploma legal. Conforme ainda há pouco teve oportunidade de decidir o Sumo Pretório, ‘o disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, se aplica a toda e qualquer norma infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva’ (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 493-0/DF, relator Ministro Moreira Alves). Aliás, no sentido da inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor a contrato celebrado sob a égide do ordenamento jurídico anterior por igual se orientou a C. Terceira Turma deste Tribunal, em precedente da relatoria do Ministro Eduardo Ribeiro (REsp 36.455-8-SP)”. No mesmo sentido: DJU, 19 set. 1994, p. 24.694, REsp 50.871-RS, rel. Min. Paulo Costa Leite; DJU, 5 set. 1994, p. 23.110, REsp 45.666-5-SP, rel. Min. Barros Monteiro; DJU, 12 dez. 1994, p. 34.346, REsp 38.518-0-SP, rel. Min. Costa Leite; RSTJ, 65:393, REsp 38.492-3-SP, rel. Min. Antônio Torreão Brás.  
65STF, DJU, 28 set. 1984, RE 102.216-SP, rel. Min. Moreira Alves.  
66STF, RTJ, 143:724, 1993, ADIn 493:DF, rel. Min. Moreira Alves: “Disso deriva, a nosso ver, que à sobrevivência da eficácia das cláusulas livremente pactuadas de um contrato, em matéria que, à época da sua celebração, era confiada à autônoma estipulação das partes, não pode opor-se a lei superveniente, ainda que de ordem pública”. V. também, dentre outras decisões, STF, DJU, 06 jun. 1997, RE 205.193-RS, rel. Min. Celso de Mello; STF, DJU, 19 dez. 2002, ED no AI 292.979-RS, rel. Min. Celso de Mello; STF, DJU, 19 dez. 2002, ED no AI 358.471-RJ, rel. Min. Celso de Mello; STF, DJU, 28 mar. 2003, ED no AI 362.422-PR, rel. Min. Celso de Mello.  
67STF, DJU, 27 jun. 2003, ED no AI 366.803-2-RJ, rel. Min. Celso de Mello. No mesmo sentido, v. STF, DJU, 29 jun. 2001, p. 48, AgRg no AI 331.432-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence: Caderneta de poupança: direito adquirido dos depositantes à manutenção do critério de correção monetária vigente na data do depósito. O STF, por ambas as suas Turmas, firmou entendimento no sentido de que "nos casos de caderneta de poupança cuja contratação ou renovação tenha ocorrido antes da entrada em vigor da Medida Provisória nº 32, de 15.01.89, convertida em Lei nº 7.730, de 31.01.89, a elas não se aplicam, em virtude do disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, as normas dessa legislação infraconstitucional, ainda que os rendimentos venham a ser creditados em data posterior".
68STF, Inf. STF, 317, j. 21.8.2003, ADInMC 1.931-DF, rel. Min. Maurício Corrêa.  
69Nada obstante, impõe-se estabelecer uma distinção decisiva entre o núcleo da manifestação de vontade das partes, que deve ser intangível, e a disciplina legal de um instituto ou de determinada matéria. O que a Constituição impõe que seja preservado é a integridade da expressão de consenso entre os contratantes. Daí não resulta, todavia, o congelamento do tratamento jurídico do tema. Por exemplo: uma lei nova que estabeleça que o regime legal de bens no matrimônio será o da comunhão universal não poderá ser aplicada retroativamente, colhendo os casamentos já celebrados. O regime de bens é objeto de manifestação de vontade das partes e é legítimo especular que não teria havido o acordo se vigesse o regime que se quer compulsoriamente instituir. 
Diferente é a situação em que a lei nova institua, por exemplo, a possibilidade de divórcio. O ato jurídico perfeito, representado pelo casamento válido, não autoriza um dos cônjuges a invocar direito adquirido à indissolubilidade do vínculo matrimonial, opondo-se, por esse fundamento, à pretensão de divórcio ajuizada pelo outro cônjuge. Trata-se, aqui, da disciplina legal do instituto, em aspecto situado na periferia da relação jurídica que se estabeleceu, e não no núcleo das vontades manifestadas.  
70A cláusula da função social da propriedade, da qual se infere a função social dos contratos, integra o direito positivo brasileiro desde a promulgação da Constituição de 1988 (art. 5°, XXIII), não constituindo, em si, uma novidade do novo Código Civil. Desse modo, a validade de cada contrato, inclusive quanto à adequação às exigências de sua função social, deve ser examinada em função do quadro normativo existente quando de sua celebração.  
71Nesse sentido parecem ser as manifestações dos poucos autores que já escreveram sobre o tema. V. Antônio Jeová Santos, Direito intertemporal e o novo Código Civil, 2003, p. 69: “Diante da insofismável tendência da intangibilidade do ato jurídico perfeito é que os efeitos dos negócios jurídicos que venham a se perfazer durante a vigência do Código Civil de 2002 a este Código não se subordinam. O Código de 1916 continuará sendo aplicado como proteção àquele ato jurídico perfeito celebrado em época anterior à vigência do Código Civil de 2002. Somente assim a segurança, a certeza e a justiça contratual gozarão de plenitude e eficácia”; e Maria Helena Diniz, Código Civil anotado, 2003, pp. 1.375: “O novo Código Civil apenas poderá incidir sobre situações jurídicas iniciadas após a data de sua vigência (situações jurídicas futuras); logo não atingirá as consolidadas em épocas passadas (situações jurídicas pretéritas). Vigorará para os atos e negócios jurídicos, ou melhor, para as situações jurídicas ex nunc, respeitando as já constituídas, pois não poderá vulnerar o ato jurídico perfeito e acabado. Imprescindível será o resguardo da validade e da eficácia dos atos negociais já praticados para garantia do próprio direito adquirido. Com a consumação de um ato ou negócio jurídico sob o amparo da lei anterior, seus efeitos ficarão intocáveis, insuscetíveis de modificação pela novel norma, sendo por ela insuprimível, pois sobre ele não terá eficácia alguma. A superveniência do novo Código Civil, portanto, não alterará os atos e negócios jurídicos válidos e já consumados, nem lhes modificará o status quo”. A mesma autora se manifestou também sobre os contratos sucessivos, nos seguintes termos (p. 1.376): “O contrato sucessivo nascido durante a vigência da lei antiga e em curso de execução, ao publicar-se a nova, reger-se-á por aquela, por ser ato jurídico perfeito e por haver direito adquirido, visto inexistir dependência de preenchimento de quaisquer requisitos exteriores de caráter acidental ou contingente”.

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* Advogado do escritório Luís Roberto Barroso & Associados e Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 

 

 




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