Procedente
Luiz Antonio Fleury Filho X Editora Abril
Fleury sentiu-se prejudicado com a publicação da matéria "A alucinação de Botucatu – A história do extraordinário fenômeno psicossocial que afeta a cidade paulista" pela Revista Veja, em 2006, um mês antes das eleições, que alegava que algumas fazendas na cidade seriam de propriedade do ex-governador. Fleury foi representado pelos advogados Carlos Eduardo Jordão de Carvalho e Fabiana Vilhena Moraes Saldanha, de Almeida Alvarenga e Advogados Associados.
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Veja abaixo a integra da sentença.
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Processo Nº 583.11.2006.121413-0
Vistos. LUIZ ANTONIO FLEURY FILHO ajuíza ação de indenização por danos morais em face de EDITORA ABRIL S.A. e VICTOR MARTINO, pelo procedimento ordinário. Alega, em síntese, que a Revista Veja, edição impressa nº 1.971, datada de 30/08/06, e também em edição eletrônica, disponível na internet, publicou matéria com o seguinte título: “A alucinação de Botucatu – A história do extraordinário fenômeno psicossocial que afeta a cidade paulista”.
Segundo a reportagem, escrita em tom sarcástico pelo co-réu Victor Martino, a população de Botucatu estaria sendo acometida de uma alucinação coletiva, ao atribuir ao autor a posse de sete fazendas, que teriam sido adquiridas pelo testa-de-ferro e empresário Luiz Eduardo Batalha. Acrescenta que o autor costuma visitar o local com freqüência e que ele é um raro caso de político brasileiro que teve seu patrimônio reduzido a serviço do bem público.
A matéria conclui que, apesar das negativas do autor, Botucatu não acredita nas provas dele. Nega o autor que ele ou sua esposa e seus filhos sejam proprietários de qualquer imóvel em Botucatu e sustenta que a reportagem não se preocupou em mostrar as certidões negativas de propriedade em seu nome, o que teria amenizado os efeitos da matéria. Além disso, a publicação ocorreu cerca de um mês antes das eleições, quando o autor tentava sua reeleição como deputado federal, o que acabou por não conseguir. Diante da violação de sua imagem e honra, requer a condenação dos réus ao pagamento de indenização por danos morais, em valor a ser arbitrado pelo Juízo.
Os réus são citados e contestam o pedido. Alegam que a reportagem foi publicada pouco antes das eleições de 2006, num contexto de corrupção e mensalão. Por isso, a revista veiculava outra matéria sobre a possibilidade de o eleitor fiscalizar a evolução patrimonial e a atuação dos candidatos, especialmente aqueles à reeleição. Nesse mote, a revista trouxe a reportagem sobre o autor, noticiando a suspeita dos moradores de Botucatu de que ele teria a posse de sete fazendas, adquiridas por testa-de-ferro, enquanto era governador do estado.
A matéria pautou-se em fortes evidências, mas, por não existirem provas, o termo “alucinação”, empregado na reportagem, foi pertinente e legítimo. Ademais, o tom irônico do texto servia para salientar a falta de lógica do autor para rebater as acusações, tal como mostrar certidões negativas de que não é proprietário de imóveis em Botucatu. Ressalvam o interesse público do assunto abordado, a liberdade de imprensa e a ausência de impugnação do autor quanto à veracidade do conteúdo da matéria. Requerem a total improcedência do pedido. Réplica, às fls. 104/108. Instados a especificarem provas, o autor requer a produção de prova oral, enquanto os réus pleiteiam a expedição de ofícios e a oitiva de testemunhas. Designada audiência de conciliação, não há acordo entre as partes. O feito é saneado, às fls. 123/124, deferindo-se apenas a produção de prova oral. Contra essa decisão, é interposto agravo retido pelos réus. Em audiência de instrução e julgamento, são tomados os depoimentos do autor, do co-réu Victor Martino e de uma testemunha do autor. A instrução processual é encerrada e as partes apresentam memoriais escritos.
É o relatório. Fundamento e decido. O pedido é procedente.
O ponto central da demanda resvala no conflito entre princípios constitucionalmente protegidos: a liberdade de imprensa (arts. 5º, inciso IX, e 220 da Constituição Federal) e a inviolabilidade da honra e da imagem da pessoa (art. 5º, inciso X, da Constituição Federal). A liberdade de imprensa é uma garantia vital à democracia, cujo controle pelo Poder Judiciário é sempre delicado. Controle - preventivo ou repressivo - deve haver, uma vez que não há direitos absolutos e a própria Constituição Federal assegura que não será excluída de apreciação pelo Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a outros direitos.
Tal controle, no entanto, deve atender a critérios de proporcionalidade, ou seja, só se deve restringir a liberdade de imprensa se seu exercício colidir com algum direito de maior envergadura, no caso concreto. Nesse ponto, Enéas Costa Garcia aborda a lição de Robert Alexy quanto ao conflito de princípios constitucionais. “Esclarece o autor que, especialmente nos princípios constitucionais, não se admite uma prevalência absoluta de um determinado princípio em conflito. Portanto, a questão fundamental é determinar ‘sob quais condições qual princípio tem precedência e qual deve ceder’. Robert Alexy afirma que na determinação do princípio prevalecente surge a argumentação do ‘peso’ dos princípios. Um princípio tem peso maior, em confronto com princípio oposto, quando existem razões suficientes para que o princípio tenha preferência em relação ao outro sob o influxo das condições do caso concreto. São as condições do caso concreto que vão determinar a prevalência do princípio.” (“Responsabilidade Civil dos Meios de Comunicação”, Editora Juarez de Oliveira, 2002, 1ª edição, pág. 135).
Ademais, o constitucionalista José Afonso da Silva traz um diferente ponto de vista no tocante à liberdade de informação. Segundo ele, “A liberdade de informação não é simplesmente a liberdade do dono da empresa jornalística ou do jornalista. A liberdade destes é reflexa no sentido de que ela só existe e se justifica na medida do direito dos indivíduos a uma informação correta e imparcial. A liberdade dominante é a de ser informado, a de ter acesso às fontes de informação, a de obtê-la. O dono da empresa e o jornalista têm um direito fundamental de exercer sua atividade, sua missão, mas especialmente têm um dever. Reconhece-se-lhes o direito de informar ao público os acontecimentos e idéias, mas sobre ele incide o dever de informar à coletividade de tais acontecimentos e idéias, objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou esvaziar-lhes o sentido original, do contrário, se terá não informação, mas deformação.” (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, 2004, 23ª edição, pág. 246).
Dessa forma, a liberdade de informação da imprensa traz consigo os deveres correlatos de responsabilidade e ética e de informar o público de modo objetivo e sem alterar a verdade. Qualquer violação a esses deveres torna abusivo o exercício da atividade jornalística. Além disso, o dever constitucional de bem informar implica a divulgação de fatos de interesse público, que envolvam a sociedade, que lhe sejam úteis e tratem do funcionamento das instituições fundamentais.
Nesse ponto, “Os assuntos concernentes ao funcionamento das instituições políticas, entendidas lato sensu, gozam de certa presunção de interesse público a nortear-lhes a existência. Avançando: a crítica aos atos dos agentes públicos (lato sensu) também goza da presunção de estar inspirada pelo interesse público. Isto decorre do disposto no art. 37, da Constituição, que consagrou princípios como a impessoalidade, moralidade e legalidade na conduta dos agentes públicos. A liberdade de informação atende ao interesse público de fiscalizar os atos dos agentes governamentais.” (Enéas Costa Garcia, ob. cit., pág. 165).
É evidente o interesse público da reportagem publicada na Revista Veja. A matéria aborda a figura política do autor, que era deputado federal à época e tentava sua reeleição. Aduz que ele seria possuidor de sete fazendas no interior do estado de São Paulo, que teriam sido adquiridas durante seu mandato de governador, mas que estariam registradas em nome de um testa-de-ferro.
Assim, é inegável o conteúdo de interesse público da reportagem, especialmente num contexto de corrupção e de mensalão, instaurado às vésperas das eleições do ano de 2006. Não obstante o interesse público do texto jornalístico, como já ressaltado na decisão saneadora de fls. 123/124, não cabe, aqui, o exercício da exceção da verdade pelos réus. A veracidade ou não das informações constantes da reportagem já deveria, se possível, ter sido checada pelos réus, antes da publicação da revista.
Não se discute, pois, nestes autos, a involução patrimonial do autor nem sua idoneidade moral. Ao contrário, o limite da lide é o exercício regular da atividade de imprensa pelos réus. Nesse tocante, deve-se analisar a conduta do jornalista, quanto à apuração das informações mencionadas e à concessão do direito de defesa ao autor, e a linguagem usada na reportagem. Em seu depoimento em Juízo, o co-réu Victor Martino informou que conversou com o prefeito de Botucatu, com o secretário de comunicação, com corretores de imobiliárias e com funcionários de cartório, que lhe narraram sobre o boato de que o autor seria o proprietário de sete fazendas no município, embora seu nome não constasse das certidões de matrícula.
Deles, apenas o presidente da Câmara Municipal, Luiz Rubio, concordou que seu nome constasse da matéria. Os demais disseram que não tinham provas das alegações e preferiram o anonimato. Na publicação, contudo, constou que “grande parte” dos cidadãos de Botucatu estaria acometida de uma alucinação coletiva, ao atribuir ao autor a posse de sete fazendas na cidade, que, porém, estariam registradas em nome de testas-de-ferro. E acrescentou que “Um dos responsáveis pela disseminação da história é o presidente da Câmara de Vereadores da cidade, Luiz Rubio, do PT.” Ainda, durante toda a matéria, o jornalista refere-se a sete fazendas, que pertenceriam ao autor, mas estariam em nome do empresário Luiz Eduardo Batalha.
Entretanto, em audiência, o co-réu esclareceu que tinha ciência de que, quando da elaboração da reportagem, a Fazenda Chalet, mencionada individualmente na matéria, já havia englobado quatro propriedades. Assim, não seriam sete fazendas, mas somente três. A justificativa do repórter para ter mencionado as sete fazendas, e não apenas três, fundou-se no fato de que a incorporação das fazendas ainda não estava regularizada documentalmente.
O texto dos réus cuida, também, dos indícios de posse do autor sobre as fazendas. Menciona-se que ele visitava a Fazenda Chalet com freqüência, tanto que havia nela uma quadra de basquete, “esporte predileto de Fleury”. Em seu depoimento, o repórter disse que achava que o presidente da Câmara Municipal e outros vereadores tinham lhe confirmado a história. Ao final da reportagem, é citado um psicanalista, que menciona que “Quando um grupo de pessoas adota firmemente uma crença, ninguém consegue persuadi-las do contrário”. Do exposto, algumas conclusões podem ser tiradas. Em primeiro lugar, quase nada do que o jornalista disse em seu depoimento pessoal constou da reportagem. Ele não esclareceu com quais pessoas havia conversado e quais delas teriam dito não ter provas a respeito da posse exercida pelo autor. Provavelmente, isso não interessava à reportagem. Também não mencionou o fato de que não eram sete fazendas que se suspeitava serem de propriedade do autor, mas apenas três.
Por outro lado, embora a reportagem se refira a um “sentimento da cidade”, não há qualquer menção ao número de pessoas com que o repórter teria conversado ou nenhum fato concreto que realmente embase a afirmação. Ao contrário, a mera referência a uma quadra de basquete parece ser suficiente ao jornalista para fazer crer que uma propriedade possa pertencer a uma pessoa que goste de jogar basquete. Na verdade, a absoluta falta de dados concretos na reportagem impede mesmo que o autor possa se defender das veladas insinuações a seu respeito. Com efeito, como seria possível se defender de “alucinações”? Usando de tal artifício, permite-se a qualquer jornalista escrever o que bem desejar, utilizando-se o cínico pretexto de que não é possível indicar provas concretas.
A reportagem extrapolou o seu dever de informação –este compreendido nos termos antes mencionados – ao utilizar linguagem dúbia e tendenciosa, ao fazer afirmações de modo leviano, sem a devida cautela com a indicação e com a valoração da fonte. Como admitido pelos próprios réus, não existem provas – mas apenas boatos – quanto ao exercício de posse pelo autor em fazendas na cidade de Botucatu. Nesse caso, tratando-se de fato incerto, a matéria deveria ressalvar de forma cristalina a inexistência de provas. No entanto, preferiu atribuir “tom irônico” (como também admitido na contestação) ao mencionar que a população local estaria acometida de uma alucinação coletiva.
Olvidaram-se os réus, porém, de que, não havendo provas nem certeza quanto aos fatos narrados, deveriam ter agido com mais cautela, de forma a evitar informações levianas. Nesse sentido, o “Manual de Redação e Estilo” do jornal “O Estado de São Paulo” ensina aos jornalistas: “Nas versões conflitantes, divergentes ou não confirmadas, mencione quais as fontes responsáveis pelas informações ou pelo menos os setores dos quais elas partem (no caso de os informantes não poderem ter os nomes revelados). Toda cautela é pouca e o máximo cuidado nesse sentido evitará que o jornal tenha de fazer desmentidos desagradáveis.” E mais, em vez de assumirem os riscos quanto à veracidade dos fatos imputados ao autor, que, repita-se, não se discute nestes autos, os réus optaram por se esconder detrás de um linguajar tendencioso. Dizem que se trata de um “fenômeno psicossocial” e de uma “alucinação coletiva”, equiparadas às que acometeram os habitantes de Varginha, ao verem um ET, e de São Roque, que acreditavam no chupa-cabra. Sobre o assunto, Enéas Costa Garcia esclarece: “A reportagem tendenciosa é aquela onde a ofensa é lançada de maneira dissimulada. O jornalista, em lugar de diretamente fazer a imputação ofensiva, atua de modo indireto. Com palavras dúbias, com insinuações, com exposição truncada de fatos, o jornalista transmite para o leitor uma idéia que macula a honra alheia. Sem atingir frontalmente a verdade o agente transmite uma idéia ofensiva. Pelas várias afirmações o leitor é levado a uma conclusão inexorável, ou ao menos natural, conclusão esta que o jornalista não teve a coragem de apresentar diretamente. Quando interpelado o jornalista sempre invoca a dubiedade das expressões utilizadas, alegando que a conclusão do leitor não representa a sua vontade, que não teve intenção de fazer tal afirmação, que intenção era outra, etc.” (ob. cit., pág. 201).
Dessa maneira, embora a reportagem atinasse com o interesse público, a maneira como foi produzida e a forma pela qual foi veiculada fizeram com que os réus devam responder civilmente pelos danos causados à imagem do autor. As circunstâncias verificadas nessa fundamentação traduzem abuso no exercício do direito de imprensa, abuso esse que ensejou ilícita ofensa à imagem do autor. Tendo havido ofensa à imagem do autor, os danos morais daí decorrentes devem ser reparados. Passo, então, à fixação da indenização devida pelo dano moral. Os parâmetros para tanto passam pela situação econômica das partes, pela gravidade da lesão e pela função profilática do instituto.
O autor é figura pública, conhecida em todo o país. A repercussão da lesão, sabendo-se que a revista tem circulação nacional, é maior quando se trata de pessoa nessa posição. Ressalte-se, além disso, que, na época da reportagem, ele estava concorrendo por uma vaga na Câmara dos Deputados. Por outro lado, a editora é consagrada no mercado nacional e possui enormes recursos.
E, pelo conteúdo da reportagem, presume-se que tenha auferido grande lucro. Ao lado disso, a conduta leviana e sarcástica dos réus mostrou-se absolutamente inadequada, razão pela qual o castigo infligido pela condenação deve ser suficiente a evitar que tal conduta volte a ocorrer. Aliados os parâmetros, tenho que o valor de cem salários mínimos – hoje equivalente a R$ 41.500,00 - seja suficiente e recomendável a ressarcir o autor e, ao mesmo tempo, evitar seu enriquecimento sem causa.
Também é o suficiente para castigar razoavelmente os réus, diante do caráter profilático da condenação. Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido e condeno os réus, solidariamente, ao pagamento de indenização por danos morais ao autor, no valor de R$ 41.500,00, acrescidos de correção monetária e de juros de mora de 1% ao mês, ambos a partir da data dessa sentença – momento em que a condenação se tornou líquida. Em razão da sucumbência, arcarão os réus com o pagamento das custas e despesas processuais e de honorários advocatícios, que fixo em 10% sobre o valor da condenação. P.R.I.C.
São Paulo, 7 de outubro de 2008.
LUCIANA NOVAKOSKI F.A. DE OLIVEIRA
Juíza de Direito
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