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Carlos Velloso - "Só a Justiça pode parar o Grande Irmão"

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5/9/2008


Opinião

"Só a Justiça pode parar o Grande Irmão"

Em entrevista para a Revista Época, o ex-presidente do Supremo Carlos Velloso diz que os juízes devem agir como guardiões dos direitos individuais.

Carlos Velloso - “Só a Justiça pode parar o Grande Irmão”

O ex-presidente do Supremo diz que os juízes devem agir como guardiões dos direitos individuais

QUEM É

Nasceu em Entre Rios de Minas,

Minas Gerais, e tem 72 anos

O QUE FEZ

Presidiu o Supremo Tribunal Federal entre 1999 e 2001. Entre 1994 e 1996, foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e decidiu pela adoção das urnas eletrônicas em nível nacional. Foi professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília

O QUE PUBLICOU

É autor do livro Temas de Direito Público

O mineiro Carlos Velloso foi presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e diz ter vivido lá 16 ótimos anos. Aposentado desde janeiro de 2006, Velloso atua hoje como advogado em Brasília, mas continua atento aos julgamentos de sua antiga casa. Preocupado com o descontrole de algumas ações policiais, Velloso aplaude as decisões tomadas pelo Supremo para colocar limites ao uso de grampos telefônicos e de algemas em público. Velloso elogia também as atitudes tomadas pelo presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, criticado por juízes de primeira instância no caso da Operação Satiagraha, que levou à prisão o banqueiro Daniel Dantas. “O Supremo não pode ser afrontado”, diz Velloso. Ele afirma ser inaceitável o conluio entre juízes, Ministério Público e policiais.

ÉPOCAAlguns observadores falam no perigo de um Estado policial no Brasil devido ao número crescente do uso de grampos telefônicos em investigações. Há motivos para preocupação?

Carlos Velloso – Ando muito preocupado com isso, porque são os primeiros passos para atingir depois uma situação irreversível. A cada dia a magistratura cede um pouco, a cada dia a opinião pública é levada – até por setores da mídia – a crer que é natural quebrar o sigilo das pessoas. O Grande Irmão, de George Orwell, acaba se transformando em alguém que pode existir. Quem pode evitar que isso prossiga é só o Poder Judiciário, porque os juizados são fortalezas dos direitos das pessoas. O juiz que não está compenetrado disso não deveria ser juiz. Deveria ser policial ou outro operador de Direito.

ÉPOCA– A Operação Satiagraha, que prendeu o banqueiro Daniel Dantas, levantou a discussão sobre excessos na decretação de prisões por juízes, depois revogadas pelo Supremo. Críticos viram uma atuação coordenada da Justiça com a Polícia Federal e o Ministério Público, algo que não condiz com a imparcialidade que se espera de magistrados. Como o senhor define esse caso?

Velloso – Vou definir como algo anormal. Há um atropelo e uma violência policial a que deveria corresponder uma atuação do Judiciário na direção de afastar a violência. Sempre sustentei, com base nas lições da Suprema Corte americana, que o juiz há de ter sempre uma postura garantidora dos direitos. Um juiz da Suprema Corte americana dizia: “Os tribunais são fortalezas dos direitos fundamentais e dos direitos individuais diante do clamor judicial”. Nesse ponto, a atuação do ministro Gilmar Mendes foi exemplar, porque ele enfrentou a opinião pública. Quando se prende um banqueiro, muitos deliram, não é verdade? Mas esse banqueiro é um ser humano e precisa ser tratado em conformidade com a Constituição. Não se pode desmerecer uma questão se ela é de um banqueiro ou do pior dos bandidos. Nossas principais decisões em termos de direitos fundamentais foram tomadas em causas em que os interessados não eram cidadãos respeitáveis.

ÉPOCA– Porque são eles que testam o limite das coisas...

Velloso – Exatamente. Um monge geralmente não vai ser processado. A atuação do processo penal se desenvolve nas áreas dessas pessoas menos respeitadas. Nem por isso o juiz pode deixar de prestar a eles a garantia que a Constituição exige que seja prestada. Um conluio entre polícia, Ministério Público e magistratura é inaceitável.

ÉPOCA– Esse caso desencadeou um conflito entre juízes de instâncias inferiores e o presidente do Supremo, minis tro Gilmar Mendes, que comandou uma reação para mostrar sua autoridade. Ele agiu corretamente?

Velloso – O ministro Gilmar Mendes é um homem de formação liberal. Ele enfrentou a opinião pública e mostrou que o Supremo não pode ser afrontado. Agiu bem, tanto que os bons juristas deste país lhe prestaram solidariedade. Houve um enfrentamento da autoridade do Supremo que não prestava bom serviço nem à Justiça nem à sociedade.

ÉPOCA – A restrição ao uso de algemas, decidida pelo Supremo, não ocorreu apenas devido às reclamações de presos influentes?

Velloso – O Supremo decidiu a questão das algemas num caso emblemático: um pedreiro condenado pelo Júri. A algema tem um significado de banditismo, altamente atentário à dignidade das pessoas humanas. Assim que o Supremo providenciar uma súmula vinculante, o assunto estará encerrado. Todos os tribunais inferiores, a administração pública, o Executivo, polícias de toda ordem, vão ter de seguir sob pena de ser responsabilizados por abuso de poder. Essa decisão procura realizar o princípio que me parece mais importante da Constituição: o da dignidade da pessoa humana.

“O SUPREMO DECIDIU SOBRE O USO DE ALGEMAS EM UM CASO EMBLEMÁTICO, DE UM PEDREIRO CONDENADO PELO JÚRI. ESSA DECISÃO DEFENDE UM PRINCÍPIO VALIOSO: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA”

ÉPOCA– Como o senhor viu a decisão do Supremo de permitir a candidatura dos políticos apelidados de “ficha-suja”?

Velloso – O STF ignorou o clamor da opinião pública, mas a decisão foi correta e foi boa. A Constituição consagra a garantia da presunção de inocência, uma conquista que vem desde a revolução americana, de 1776, e desde a francesa, de 1789. A lei complementar estabelece que, somente após o trânsito em julgado da sentença condenatória, o candidato se torna inelegível. O razoável seria que o Congresso, decidindo a respeito da lei complementar de inelegibilidade – com base na Constituição, que manda considerar a vida pregressa de candidatos –, estabelecesse que a condenação em segundo grau, em segunda instância ou em única instância geraria inelegibilidade.

ÉPOCA– Por que não em primeira instância?

Velloso – Na primeira instância há uma certa fragilidade. Na segunda há um tribunal mais experimentado. Vivi o problema da simples acusação virar condição de inelegibilidade. Fui juiz do TRE de Minas Gerais entre 1969 e 1975. Havia na época a lei complementar segundo a qual bastava uma acusação e uma denúncia recebida pelo juiz para gerar a inelegibilidade. Vi várias denúncias apresentadas sem maiores cuidados e recebidas assim: “Recebo a denúncia, marco dia tal para o interrogatório”. Hoje, o juiz tem de fundamentar e dizer por quê. Mas naquela época não precisava. Em 1982, o próprio governo militar reconheceu que aquilo não estava correto e o Congresso alterou a lei.

ÉPOCA – Em suas operações, a PF parece preocupada com o impacto que elas vão causar. O senhor concorda com as críticas de que as ações policiais viraram um espetáculo?

Velloso – Sem dúvida nenhuma, há um exagero nessas prisões com a mídia presente, sob os holofotes das televisões, com as algemas nos pulsos dos presos. Esse exagero visa projetar a imagem da instituição, fazer a sociedade perceber que a polícia está trabalhando. O problema dessas prisões é que, cinco dias depois, o juiz tem de mandar libertar. E cria-se a impressão em setores pouco informados da opinião pública de que a polícia combateu a corrupção – prendendo – e a Justiça colaborou com a corrupção – ao soltar –, enquanto ela fez apenas cumprir a lei.

ÉPOCA– Isso não mostra que a Justiça precisa aumentar sua eficiência?

Velloso – Quem é do ramo sabe que não basta efetuar prisões. É preciso coletar provas consistentes, a fim de obter o resultado: a condenação do corrupto. A segurança pública assenta-se num tripé: Justiça, Ministério Público, polícia. Essas três peças têm de trabalhar em conjunto. Não para justificar uma arbitrariedade de um ou de outro, mas para trabalhar de forma mais racional. O que temos hoje é uma situação em que o delegado faz o inquérito policial e manda para a Justiça. Com base naquele inquérito, o Ministério Público oferece ou não a denúncia. Se a Justiça recebe a denúncia, passa-se à instrução criminal e renova-se então tudo o que se fez na polícia. Quando tudo isso termina, muitos anos já se passaram. Testemunhas não são encontradas e documentos que poderiam ser importantes somem. Essas duas instruções levam muito tempo, muitas vezes resultam infrutíferas e resta apenas a absolvição.

ÉPOCA – Na prática, o que é necessário fazer para mudar isso?

Velloso – É preciso alterar o Código de Processo Penal. Defendo o juizado de instrução, que funciona muito bem na França. Você tem um juiz fazendo isso que o delegado faz hoje, mas em conjunto com o Ministério Público e a polícia. O Ministério Público supervisiona a investigação da polícia.

ÉPOCA – No Brasil, essa discussão está avançada?

Velloso – A discussão pára porque há resistência da polícia. A Comissão de Direitos Humanos me convidou para falar sobre isso. E estava lá uma multidão de delegados e policiais militares. Alguns me procuraram depois para dizer: “Eu não sabia que o senhor queria acabar com a polícia”. Absolutamente! Quem sabe investigar é a polícia, mas ela deve ter a supervisão de quem vai oferecer a denúncia e de um juiz presidindo a instrução. Alguns dizem: “Não é possível. Um juiz que preside a instrução fica impedido de julgar”. Eu digo o seguinte: É só estabelecer que, terminada a instrução, ela passa a outro juiz, mais categorizado e com mais tempo de serviço, com direito a mandar refazer algo que ele acha que não foi bem feito. Por que não se começa a experiência com isso que se convencionou chamar de crime organizado, com os crimes tributários, contra a administração pública? Se der certo, vai estendendo. Não custa nada experimentar.

ÉPOCA – O senhor se sentiu alguma vez invadido por causa de algum grampo?

Velloso – Por mais de uma vez. Mas nunca descobri grampo. Depois que deixei a magistratura, tínhamos uma estagiária cujo pai era um aposentado do antigo Serviço Nacional de Informações, o SNI. Ele telefonava para ela. Um dia ela nos procurou e disse: “Papai falou que deve ter grampo aqui. Papai entende”. Mandou-se fazer uma varredura, mas não se achou nada.

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Fonte : Revista Época - 15/8

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