Migalhas Quentes

Migalhas em Mônaco - Caso Cacciola

7/5/2008

A alta Direção de Migalhas enviou ao Velho Mundo um redator deste poderoso rotativo para resolver, finalmente, a questão da extradição de Cacciola (Migalhas 1.888 - 29/4/2008 - "Direto da Redação").

Deixemos que ele mesmo, informalmente, conte.

___________

Cheguei a Mônaco pela manhã.

Era 2 de maio, meio do feriado. Na França, como em toda a Europa, dia 1° de maio é também o Dia do Trabalho. E, como tal, estranhamente, também aqui não se trabalha.

A propósito, no "dia do vinho", tomamos vinho (!), "dia da pizza", comemos a redonda, "dia santo" rezamos. Mas no Dia do Trabalho, não trabalhamos.

Voltando ao Principado – antes de ser advertido pela correcional chibata da Direção - entrei sem problemas <_st13a_personname w:st="on" productid="em M?naco. Sem">em Mônaco. Sem problemas como todos, pois - de todo lado que se chega a Mônaco - não há fronteira vigiada. Não é preciso carimbar passaporte, nada. Nada, nada.

Então, fiquei a me perguntar como Cacciola teria sido pego, já que muitos que aqui estão, atraídos pelo pano verde do cassino, também devem ter lá suas, digamos, pendências ?

Só uma coisa justifica a prisão, com Interpol e tudo : alguém, que sabia do costume do ex-banqueiro (ou por ser seu “amigo”, ou por tê-lo encontrado na mesa), teria feito o alerta. E mais, alguém com poder para movimentar a Interpol.

E falando em Interpol, lembro-me agora que o atual secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, dr. Romeu Tuma Júnior, que também já esteve aqui oficialmente para tratar dos assuntos da extradição de Cacciola, foi responsável pela instalação do escritório regional da Interpol, em SP.

O fato é que, voltando à prisão de Cacciola, não há interesse algum do Principado em fiscalizar quem entra e quem sai. E, como nos parece incrível que fosse a primeira vez que Cacciola ia ao Principado - neste tempo que esteve foragido do Brasil -, resta-nos apenas crer que alguém já o teria encontrado por aqui neste tempo.

Nos mapas que obtive, nos pontos de informação turística, não há menção à localização da prisão. Assim, não tive alternativa : ir num dos postos de polícia (em frente ao Cassino, na praça, há um - v. foto). Perguntei a localização da maison d’arrêt (que literalmente seria algo como “casa de arresto”). A policial monegasca, com a impecável indumentária própria da Guarda Municipal, indagou o que eu gostaria de lá fazer. Expliquei um pouco minha missão : interceder com o Príncipe para resolver a extradição de um brasileiro. Imediatamente, como se estivesse na ponta da língua, eis que me responde : será impossível falar com monsieur Cacciola. Refaço na minha cabeça a conversa e percebo que em nenhum momento citei o nome do “arrestado”. Ora, ali na praça, uma policial já sabia de quem se tratava. Preso ilustre, pensei comigo.

Ela me orientou a ir ao Tribunal. Lá fui. Peguei o ônibus (era bem perto, mas o caminho era morro acima, e já está quente por estas bandas).

Ademais, estão armando o circo para a Fórmula 1, e há impedimentos e arquibancadas por toda Monte Carlo.

Enfim, chegando ao Palácio da Justiça (v. foto), pedi para falar com o magistrado. Logo vem uma senhora baixa, um pouco mal vestida, falando continuamente e nem me ouvindo direito. Era a juíza de plantão. Com calma, e em bom francês, expliquei meu nobre desiderato.

A resposta era de que seria impossível falar com o Príncipe. Ele pedia desculpas, mas não pôde esperar por mim, e teve, inesperadamente, de viajar para fora do Principado.

Pedi, então, para falar com monsieur Cacciola; iria ver se estava tudo bem, etc. Essas coisas normais que todo mundo faz quando visita um preso que está em Mônaco aguardando ser extraditado para o Brasil.

"Também não seria possível", pois deveria eu obter o aval do parquet, e não havia ninguém do Ministério Público de plantão. Ou seja, o Judiciário aqui não é muito chegado ao trabalho.

Aliás, tudo no Principado "corre devagar", exceto as roletas e os turistas. Nossa, e quantos são ! E que turismo norte-americano, se é que me entendem. Todos, ianques, atraídos pelo sonho hollywoodiano de Grace Kelly.

O fato é que entre os turistas que não param de ir e vir, perto do monumental Museu de Oceanografia, também ao lado do Tribunal, há algo escondido.

Eles passam pra lá e pra cá, e nem notam que, descendo da cidade velha, à direita, olhando para o Mediterrâneo azul, há um gradil com algumas câmeras. Não há placa alguma, e nem é visto por quem está passeando. Mas é ali, no número 4 da avenue Saint Martin (pelo menos alguma coisa de santo há : o endereço), que se situa a "La maison d’arrêt", a atual (há 7 meses) residência de Alberto Salvatore Cacciola.

Apesar de a juíza ter me dito que seria impossível entrevistar-me pessoalmente com o preso, resolvi saber mais da prisão.

Toquei o interfone, expliquei, e logo fui autorizado a entrar para conversar com o responsável de plantão. Dando uma de João sem braço, insisti em falar com o extraditando. Debalde. Tentei ao menos fazer chegar a ele uma lembrança da terrinha (levava comigo uma inigualável iguaria, uma legítima goiabada cascão). Novamente, sem sucesso; a dieta era determinada pela nutricionista do local, e comida alguma poderia entrar.

Nutricionista ? Também eu fiz essa exclamação que vi vocês fazerem.

Pois é, nutricionista. Assim, interessei-me por essa parte da funcionalidade da cadeia, que fica debruçada sobre a costa azul.

Explicou-me o plantonista monegasco, com certo orgulho, que há ali dois lugares distintos : um da administração penitenciária, e um da detenção propriamente dita. Na administração existem diversas salas administrativas (é claro), banheiros, áreas de vigilância técnica, direção, secretaria. Já a detenção possui quatro partes, separando-se uma delas para as mulheres. Há lugar envidraçado para as famílias e os amigos dos prisioneiros se comunicarem, e não envidraçados para os advogados, a assistente social, os eventuais ministros de culto e as autoridades diplomáticas e consulares. Há também uma capela; um lugar de passeio; cozinhas; um ginásio esportivo; uma biblioteca; chuveiros (cada prisioneiro pode tomar dois banhos por dia, um luxo em se tratando da França); uma sala de estudos.

Existem rígidas normas de higiene. Nessa hora, o já descontraído plantonista tira da pasta uma deliberação do diretor dos serviços judiciais n° 2005-8 de 3 de Junho de 2005, que tratava do assunto.

Trabalham na maison d’arrêt, além dos policiais, revezando em turnos, funcionários do administrativo; técnicos; um enfermeiro especializado; um médico do serviço sanitário; um dentista (há um gabinete dental no seio da zona de detenção); um psiquiatra responsável pelo acompanhamento psicológico dos prisioneiros; e um cabeleireiro.

Foi me dito, ainda, que a prisão é periodicamente visitada pelo diretor dos serviços judiciais, pelo procurador geral, e pelo magistrado responsável pelas execuções penais.

Fotografei fartamente o exterior para se ter uma idéia do tamanho e localização da prisão. Como se verá, é pequena para tanta estrutura interna.

Algumas das celas têm até vista pro mar. A que nosso afamado conterrâneo está instalado não tem este paisagístico benefício visual. Intercedemos neste sentido, mas não há, no momento, vaga disponível. Assim que vagar, disse-nos o monegasco, iria "estar verificando" a possibilidade do upgrade.

Neste momento, apesar de não ter atingido meu objetivo principal, senti-me útil. Um tanto comiserativo é verdade, mas útil.

Na verdade, descrevendo a prisão como descrevo, e comparando-a com o precário (para ficar em bons termos) sistema carcerário brasileiro, fica parecendo que o indigitado personagem está a passar férias na Cotê d’Azur. Mas o fato é que ele está preso, com vida regrada, podendo receber limitadíssimas visitas. Do charme da Fórmula 1, que deixa o lugar ainda mais badalado, ele só poderá ouvir o ronco dos motores. É algo que, para quem vivia em luxo, deve ser o pior dos mundos. Aliás, a segregação para o ser humano já é, por si só, uma expiação. E lhe deixará, certamente, uma marka indelével.

Saí dali, e aproveitei, na mesma toada, para visitar outro encarcerado.

No mediterrâneo, com a mesma imagem do quadriculado mar azul, bem perto, na ilha de Saint Marguerita, diante da charmosa Cannes, esteve um dos presos mais famosos da história.

Era o irmão do Rei Luis XIV, fraternalmente preso. Conhecido como o "Máscara de Ferro", diz a história que era o irmão gêmeo do Rei, tendo sido excluso, pelo cardeal Richelieu, para poder preservar a integridade do governo da França.

O motivo da colocação de uma máscara foi o de proteger a sua verdadeira identidade, evitando que os cidadãos percebessem a grande semelhança com o Rei.

Aquela (lenda ou não), de fato, era uma prisão ilegal. Quem nos diz isso, hoje, é a história.

Aguardemos as próximas etapas na prisão de Cacciola. A história nos dirá...

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Histórico do caso

Salvatore Alberto Cacciola (Milão, 7 de janeiro de 1944) é um banqueiro ítalo-brasileiro proprietário do falido Banco Marka, condenado por crimes contra o sistema financeiro no Brasil e foragido na Itália, após seu banco ter recebido uma ajuda financeira do Banco Central do Brasil para cobrir prejuízos com operações de câmbio.

Biografia

Cacciola nasceu na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Seus pais moravam nos arredores de Milão. Por causa da guerra, os registros de nascimento só eram feitos em alguns municípios e a prefeitura de Milão estava fechada. Então, o pequeno Salvatore foi registrado em Tradate, província de Varese, daí constar esta cidade como local de nascimento, e não Milão, em seus documentos. Seu pai, Luigi Cacciola, era sócio de uma pequena firma que fazia pintura especial em carrocerias de ônibus e de caminhões. Com as dificuldades da guerra e do imediato pós-guerra, a firma faliu no final de 1952 e Luigi decidiu emigrar para o Brasil. De início, veio sozinho, mas logo mandou trazer o restante da família.

Início no mercado financeiro

O jovem Salvatore iniciou-se nos segredos das operações financeiras na corretora carioca Marcelo Leite Barbosa. No fim da década de 60, trabalhava na corretora uma legião de jovens e ambiciosos operadores de pregão que mais tarde galgaria espaço no noticiário econômico e nas colunas sociais. Vieram daqueles tempos, além de Cacciola, Arthur Falk e Fábio Nahoun, que mais tarde também se envolveriam em escândalos financeiros, bem como o banqueiro e empresário de sucesso Jorge Paulo Lemann e o banqueiro e político Ronaldo Cezar Coelho.

Marcelo Leite Barbosa perdeu sua importância, mas os jovens operadores das décadas de 60 e 70 continuaram na estrada. Formado no faroeste do mercado de ações daquela época, que só terminou com a quebra da Bolsa em 1971, Cacciola fez jus à imagem de investidor esperto e audacioso.

Cacciola já tinha uma corretora própria quando o cruzeiro foi desvalorizado em 1973, em pleno regime militar, numa situação muito parecida com a do escândalo em que se envolveria décadas depois. Daquela vez, no entanto, o corretor deu o lance certo. Possivelmente porque já dispusesse de informação privilegiada, Cacciola soube se defender com títulos cambiais e ganhou muito dinheiro

Na década de 90, já era dono do Banco Marka e de empresas no exterior : uma no Uruguai, outra nas Bahamas e uma terceira na Ilha da Madeira, Portugal. Já se suspeitava na época que Cacciola usava essas empresas para a remessa e importação ilegal de divisas e outras operações de lavagem de dinheiro, fato que mais tarde foi comprovado.

Em outubro de 1993, passou quatro dias em poder de seqüestradores, num cativeiro improvisado em São Gonçalo, interior do Estado do Rio. Cacciola conseguiu fugir dos seus algozes. Desde então, passa a circular pelo Rio apenas de helicóptero.

O escândalo do Banco Marka

No governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, no dia 13 de janeiro de 1999, o governo federal anunciou o enterro definitivo da política cambial de manter o real valorizado ante o dólar, numa decisão cujos efeitos econômicos, políticos e sociais causaram impacto permanente na economia.

O banco Marka ficou insolvente com a desvalorização cambial de 1999. Assim como outra instituição financeira, o FonteCindam, do ex-diretor do Banco Central, Luiz Antônio Gonçalves, o banco apostou na estabilidade do real, enquanto as demais instituições financeiras se prepararam para a alta do dólar.

O Marka tinha vinte vezes seu patrimônio líquido comprometido em contratos de venda no mercado futuro de dólar. Com a desvalorização, Cacciola ficou sem poder honrar os compromissos e pediu ajuda ao BC, tentando usar de sua influência junto a seu consultor Luiz Augusto Bragança, investidor que era amigo de infância do então presidente do Banco Central, Francisco Lopes.

Com base no princípio de prudência de que era necessário evitar que a quebra dos bancos elevasse o nervosismo no mercado em um momento de bastante estresse, a diretoria do BC realizou uma operação de venda de dólares futuros, ao preço de R$ 1,275 por dólar. Apesar de realizada a preço superior à cotação do dia na BM&F, que foi de R$ 1,25 por dólar, a operação gerou um custo estimado de 1,5 bilhão de reais aos cofres públicos em virtude da elevação posterior da cotação do dólar. Para a diretoria do BC, entretanto, a operação se justificava pois impedia um movimento de ataque sobre a reservas cambiais que poderia ter acarretado em custo ainda maior, além de reduzir o risco uma pressão adicional de alta sobre a cotação do dólar. Esta decisão foi bastante questionada e gerou a abertura de uma CPI.

Nas mais de nove horas de depoimento à CPI dos Bancos, Cacciola manteve a calma diante das inquirições dos senadores e um sorriso irônico, principalmente ao responder a perguntas que revelavam despreparo de alguns parlamentares para questionar as operações do mercado financeiro. Os senadores concordavam que ele estava sabendo aproveitar seu grande momento. A constatação de governistas e oposicionistas foi que o depoimento deixou o governo numa situação muito ruim.

Mas nas ruas a reação popular não foi nada simpática. Quando caminhava no centro do Rio de Janeiro Cacciola foi reconhecido por populares que passaram a gritar : "Pega ladrão, pega ladrão".

Com a pressão popular, Cacciola, assim como Gonçalves, tiveram decisões desfavoráveis da CPI dos Bancos. Eles foram acusados de tráfico de influência, crime de gestão temerária e de dificultar o acesso a informações requisitadas pela CPI, entre outras irregularidades. A CPI recomendou, ainda, ao Tribunal de Contas da União que tomasse medidas para que os diretores do BC devolvessem 1,5 bilhão de reais que o governo gastou na operação de socorro aos bancos.

Em junho de 2000, Cacciola tratava de perder alguns quilos no caríssimo spa Kur, no Rio Grande do Sul, enquanto planejava novos negócios (construção civil e importação de produtos de alta tecnologia) quando foi preso pela PF. Transferido para o Rio de Janeiro, tornou-se o primeiro banqueiro do país a dormir na cadeia. Libertado após 37 dias, beneficiado por HC, concedido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio de Mello, viajou para a Itália onde passou a viver e é considerado pela Justiça brasileira um foragido.

Livro, morte da filha e condenação

Em 2001, lança o livro "Eu, Alberto Cacciola, Confesso : o Escândalo do Banco Marka". Neste livro Cacciola não apresenta uma confissão, apesar do seu título. O livro apresenta a versão sobre o escândalo Marka.

Dedica-se mais a fazer acusações contra Fernando Henrique Cardoso, policiais, juízes, senadores, procuradores e economistas e jornalistas. No livro diz-se injustamente perseguido. Mostraria como funciona a venda de sentenças, intermediada por advogados de renome, na justiça do Estado do RJ. Em maio de 2004, Cacciola vive uma tragédia pessoal. Sua filha Milene, 28 anos, foi encontrada morta na região da Pedra Bonita, em São Conrado, zona sul do Rio. O corpo não apresentava marcas de agressões e a polícia concluiu que se tratava de suicídio.

Em abril de 2005, a Justiça Federal do Rio de Janeiro condenou Cacciola a treze anos de prisão por peculato e gestão fraudulenta. Por estar foragido, a Justiça nega a ele o direito de apelar em liberdade. No mesmo processo foram condenados a penas variadas o presidente e os diretores do Banco Central envolvidos na operação, e o banqueiro Luiz Antonio Gonçalves, mas todos com o direito de apelar em liberdade. Os réus agora esperam por um novo julgamento de mérito em segunda instância, no Tribunal Federal da 4a região, quando a sentença de primeira instância poderá ser confirmada ou anulada.

Em 2006, a segunda mulher de Cacciola, a miss Brasil de 1981 e miss Brasil Mundo de 1984, Adriana Alves de Oliveira, volta para o Brasil após dez anos de casamento.

Em setembro de 2007, Cacciola saiu da Itália, onde tem cidadania e, por isso, não podia ser extraditado para o Brasil, e foi para Mônaco. O objetivo dele era passar um final de semana com a nova namorada, a gaúcha Mirela. Foi preso por agentes da Interpol atendendo a alerta de difusão vermelho emitido pela Polícia Federal brasileira.

O Brasil, então, inicia um processo de extradição do ex-banqueiro. O parecer de primeira instância da Justiça monegasca foi favorável à extradição. Os advogados de Cacciola solicitarão adiamento de execução de sentença enquanto intercorrem recurso ao Tribunal de Apelações e ao Tribunal da União Européia. A decisão final será do príncipe de Mônaco.

A história de um pesadelo

O prédio da Polinter, na praça Mauá, centro do Rio de Janeiro, vizinha ao cais do porto, é um edifício velho, malcuidado, feio e deprimente. À noite tudo parece ainda mais sombrio, e seu aspecto é absolutamente desolador.

Fui levado para lá por uma escolta da Polícia Federal altas horas da noite do dia 7 de junho de 2000, uma quarta-feira.

É comum ouvir de quem chega a qualquer cadeia a velha frase: “Não fiz nada, não sei por que me trouxeram para cá, estou sendo vítima de uma injustiça.” Pois eu não disse nem pensei nada parecido. Na verdade eu sabia perfeitamente o que tinha feito, sabia por que haviam me levado para lá e sabia que estava sendo vítima não apenas de uma injustiça, mas de uma canalhice.

A canalhice começou no dia 13 de janeiro de 1999. Ou dias antes. Mais exatamente, por volta das dez da noite do dia 8 de janeiro, uma sexta-feira. Até hoje fico remoendo essa história toda, que está longe de acabar.

Há muita coisa a ser lembrada. Aqui na Itália, e ainda mais na situação em que me encontro, tenho tempo de sobra para lembrar, pensar, tentar entender.

Lembrar, por exemplo, da noite da minha chegada naquele prédio tenebroso da praça Mauá.

Para começo de conversa, e já que me prenderam, eu deveria ter sido levado diretamente para a carceragem do Ponto Zero, porque tenho curso superior. Sabia que tinha direito a prisão especial, mas não fazia idéia de onde ficava o tal Ponto Zero. Para falar a verdade, eu nem sabia o que era aquela Polinter. Lá dentro me disseram que era a carceragem de presos comuns da Polícia Federal, e que no dia seguinte seria levado para o Ponto Zero.

Até hoje tenho a sensação de que me levaram para lá como uma espécie de vingança mesquinha, uma humilhação desnecessária como todas as outras. Eu não sabia quanto tempo ficaria preso.

Mas ali na Polinter, naquele momento, nem pensava nisso: pensava só no que aconteceria comigo se me pusessem numa cela comum.

Primeiro fui levado para uma salinha, uma espécie de recepção. Não aconteceu nada demais: não tomaram minhas impressões digitais, não me fotografaram de frente e de perfil, não pegaram meu relógio e meu dinheiro, não tomaram minha mochila, não pegaram as coisas que estavam dentro dela, não tiraram meu cinto ou os cadarços do meu tênis.

Passei desse lugar para outra saleta, onde tudo era horroroso — móveis velhos, caindo aos pedaços, paredes imundas — e onde estavam dois carcereiros: um gordo, sem camisa, mal-encarado, esquisito, e outro, magrinho.

Na sala havia uma televisão pequena. Numa gaveta aberta havia uma pistola e dois revólveres. Começamos a conversar e eu pedi ao magrinho que fechasse a gaveta. Ele virou e perguntou o que eu ia fazer com aquelas armas, e depois disse que não ia fechar a gaveta coisa nenhuma. Não respondi. Lembro também de ter conseguido falar por telefone com meu advogado e com Adriana, minha mulher.

Então aconteceu uma coisa engraçada: o carcereiro gordo e mal-encarado ficou me olhando e de repente disse que me conhecia. Fiquei quieto, mas ele continuou: “Faz tempo, mas lembro direitinho. Fui muito no seu escritório.”

Eu achava tudo aquilo muito estranho, até que ele explicou: além de carcereiro, nas horas vagas era segurança de uma distribuidora de valores. Veja só: ir parar no meio da noite naquela cadeia horrorosa e encontrar um fulano que me conhecia porque era ou havia sido segurança de alguém que tinha negócios com o meu banco.

Logo depois me levaram para uma sala que dava para todas as celas e para o pátio interno. Fiquei sabendo que era o lugar utilizado pelos advogados para conversarem com os presos. Não havia nada na sala, então puseram uma cadeira para que pudesse ter um lugar onde me sentar. O carcereiro magrinho me entregou uma toalhinha e disse que eu podia usar no dia seguinte. “Tem cara de velha mas está limpinha”, explicou.

Havia um outro homem na sala. Cumprimentei, mas não quis puxar conversa. Não tinha idéia de quem era aquele sujeito, ele contou.

Estava numa situação parecida com a minha, esperando para ser levado no dia seguinte para o Ponto Zero ou para ser solto: era advogado e estava em pleno processo de separação litigiosa da mulher. No meio da disputa a Justiça tinha penhorado duas bombas de piscina, bombas d'água que deviam valer uns trezentos reais. Ele era o fiel depositário das tais bombas, e uma delas tinha sumido. Estava desolado. Tinha ido parar na cadeia por causa de uma bomba d'água. Dias depois encontrei-o no Ponto Zero. Vivia numa tristeza sem fim.

Ficamos conversando, ou melhor, ele ficou falando, porque eu não tinha a menor vontade de conversar com ninguém.

A sala era aberta: uma das paredes, a que dava para o corredor onde estavam as celas, era de grades. Fiquei olhando as celas. Havia muito mais gente do que espaço. Para dormir estendidos no chão, os presos tinham de fazer turnos. Uma coisa deprimente.

Alguns presos ficavam sentados encarapitados nas grades das celas, as pernas para fora, e atrás deles havia outros quarenta amontoados um em cima do outro. De repente estourou uma briga feia entre um sujeito que estava dependurado na grade de uma cela e um outro que estava encarapitado na grade da cela vizinha.

Dava também para ver o pátio, onde havia umas vinte ou trinta pessoas. Alguns homens estavam deitados no chão, outros estavam sentados em uns banquinhos e dormiam apoiados na parede. Eram os sujeitos privilegiados, que conseguiam ficar fora das celas.

De vez em quando algum preso me dizia alguma coisa. Brincavam, caçoavam, mas não houve nada agressivo. Aquela coisa de “E aí, doutor, tudo bem?”

E então me estendi no chão, usei minha mochila como travesseiro e dormi. Não foi muito: duas ou três horas, no máximo. Estava exausto. Dormi um sono profundo.

Na manhã seguinte tomei um banho, fiz a barba, troquei de roupa e esperei que viessem me buscar para ir para o meu novo endereço, o Ponto Zero. Os carcereiros do turno da manhã me avisaram que a Polícia Civil chegaria mais ou menos ao meio-dia.

Fiquei esperando. Aliás, era tudo que podia fazer. Não tinha a menor idéia de como seria a nova prisão. Não sabia nem onde ficava. E esperando passei a manhã, pensando no absurdo daquilo tudo.

Um dia antes, eu era apenas um banqueiro falido tentando encontrar um rumo na vida. E naquela manhã estava preso, estampado em todos os jornais, o inimigo público mais detestado pelo país.

Estranha trajetória, e até hoje não me conformo: de filho de imigrante a banqueiro bem-sucedido, depois a banqueiro falido, enfim réu investigado em inquéritos absurdos, e, de repente, prisioneiro em um prédio caquético e imundo. Por quê?

Começava um novo pesadelo, minha nova aflição.

Primeiro Capítulo

A longa viagem à terra nova: o futuro sempre foi um desafio.

Nasci num hospital enorme, no dia 7 de janeiro de 1944, em Milão, na Itália. Em plena Segunda Guerra Mundial. Meus pais estavam morando nos arredores de Milão para escapar dos perigos e dos horrores daqueles tempos.

Por causa da guerra os registros de nascimento só eram feitos em cartórios específicos. Os de Milão estavam fechados. Então, fui registrado em Tradate, e na minha certidão de nascimento aparece 'Tradate, Va' — ou seja, Varese. Mas não importa.

Nasci a fórceps. Na época usava-se fórceps a toda hora. Resultado: observando bem, até mesmo em fotografias dá para notar que tenho a boca um pouco torta. Seqüelas do nascimento: em plena guerra, imagino que o médico fosse meio tosco, meio açougueiro... Seja como for, sobrevivi, o que — naquelas condições — já era uma vitória. Muitos bebês morriam no parto ou logo depois.

Evidentemente não tenho nenhuma recordação da guerra. Mas foi tanto o que ouvi de meus pais, tantas e tão tremendas histórias, que até hoje consigo sentir parte da aflição que eles — e todos os adultos e jovens e crianças — viveram naquele período horroroso.

Havia os bombardeios aéreos, quando soava uma sirene estridente e todo mundo tinha de correr para se proteger em algum abrigo. Certo dia minha mãe estava sozinha em casa quando o alarme soou. E ela saiu correndo comigo para o descampado, correndo pelos campos, e estava lá quando percebeu que tinha esquecido em casa a tessera — a caderneta de racionamento, que dava direito a comprar alguma comida.

Minha mãe entrou em pânico: era enorme o risco de durante o bombardeio alguém invadir a casa vazia e roubar tudo que encontrasse. Era comum, esse horror. E uma tessera valia muito. Outro risco era que justo naquele dia uma bomba derrubasse a casa. Não havia outro jeito: era preciso voltar e pegar a tessera

Ela fez então a coisa mais louca do mundo: me deixou no meio do campo, todo enrolado em cobertores, e voltou até a casa para recuperar aquele pedaço de papel que dava a ela, a mim e a meu pai o direito de comprar alguma comida. Pouca, sempre, mas alguma.

Quando voltou para o campo depois de ter recuperado o tal papel, ela entrou novamente em pânico: não conseguia me encontrar. Lá pelas tantas, eu chorei. E foi buscando o lugar de onde vinha aquele choro de bebê que minha mãe me encontrou.

Histórias como esta, é claro, ficaram marcadas para sempre na minha memória. E, de certa forma, me lembram que desde sempre minha vida foi difícil, foi de luta, foi de riscos. Poucos meses depois desse dia, quando meus pais já estavam novamente morando em Milão, houve outro de tantos bombardeios. Correram comigo para um abrigo e quando voltaram tudo que havia no lugar do prédio eram ruínas. As construções vizinhas também tinham sido destruídas. Estava tudo tão arrasado, que meu pai e minha mãe não conseguiam achar o lugar do nosso prédio. Demoraram muito olhando escombros espalhados, pedaços de móveis, talheres, espelhos despedaçados. E foi assim, examinando o desastre, que identificaram uma parede da qual pendiam, numa espécie de cabide, conchas, escumadeiras, garfos e colheres, todo o material que minha mãe usava para preparar nossas parcas refeições de guerra. Aquela tinha sido, até pouco antes, a parede da cozinha da nossa casa.

Meu pai, Luigi Cacciola, o Gígi, tinha um sócio, o Russo. Os dois eram donos de uma pequena firma que fazia pintura especial — detalhes, traços personalizados — de carrocerias de ônibus e de caminhões. Era a Fábrica de Carrocerias Ruscac, de Russo e Cacciola. Claro que durante a guerra o negócio dos dois tinha ido para o brejo. Meu pai inventava mil maneiras de sobreviver. Chegou a fabricar um “jipe de concreto”, como dizia rindo. Ou seja, armou com chapas de concreto pré-moldado uma espécie de jipe. Não havia metal, as siderúrgicas só funcionavam para fazer material militar, depois nem isso, e então ele inventou um jeito de armar um veículo utilizando chapas de concreto. Terminada a guerra, a Itália derrotada vivia uma situação de extrema dureza. Meu pai enfrentava enormes dificuldades para sobreviver. Agüentou até o final de 1952, mas não conseguiu evitar a falência. E naquela época quem falisse estava perdido: não havia trabalho para quase ninguém, muito menos para quem estava há tantos anos trabalhando por conta própria.

Esta cena, trago muito nítida na memória: minha mãe, meu pai e o sócio dele tentando achar uma solução. Foi quando meu pai decidiu ir para a América. Naquela época América significava a do Norte, e mais especificamente os Estados Unidos. Só que ele escolheu a outra, a do Sul. Lembro claramente de meu pai olhando aquele mapa que, para nós, não queria dizer nada, e argumentando: na América do Sul falava-se idiomas latinos, mais fáceis de aprender, seria mais fácil se comunicar. E, dentro daquele monte de países, escolheu o maior — o Brasil.

Sendo maior, acreditava ele que haveria mais e melhores oportunidades. E já que a opção tinha sido essa, aproveitou para escolher também a cidade: o Rio de Janeiro, que somava duas vantagens, era a capital e tinha mar. Resolveu tudo muito rápido. E mais: viria na frente para conseguir trabalho, e depois minha mãe e os três filhos se juntariam a ele no mundo novo.

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