Em 2024, Machado de Assis, habitando os "augustos panteões" da Academia Brasileira de Letras, desceu de sua cadeira imortal para "viralizar" nos smartphones da geração Z. Uma ligeira pesquisa no TikTok pelo nome do escritor revela uma profusão de vídeos e, com certa ironia, memes dedicados ao autor. Este 21 de junho, data que marca os 185 anos de seu nascimento, é propício para um questionamento: que reflexão faria Machado a respeito desta curiosa "imortalidade" moderna dedicada a ele?
A princípio, em março deste ano, a ABL lançou um "totem" do Bruxo do Cosme Velho, que, com o uso de Inteligência Artificial, "conversava" com visitantes da academia. Na ocasião, jornalistas questionaram ao avatar se Capitu traiu Bentinho. Mas a resposta do "Machado recriado" preservou o enigma, afirmando que a questão permanece "intencionalmente sem solução".
Quando questionado pelo jornal O Globo sobre se "seríamos substituídos pelas máquinas", o totem de Machado respondeu, sem sotaque carioca, que "a criatividade, a emoção e a experiência humana continuam a ser qualidades insubstituíveis que mantêm a relevância da existência em um mundo cada vez mais tecnológico".
@jornaloglobo TRAIU OU NÃO? | IA ressuscita Machado de Assis, que comenta possível traição de Capitu. O avatar, primeiro da safra, ficará instalado na ABL, no Rio. Machado conversará com os visitantes do tour guiado, que acontece toda quarta-feira. #JornalOGlobo #TikTokNews #TikTokNoticias #MachadodeAssis #IA #ABL ? som original - Jornal O Globo
Multiverso de sotaques
Ocorre que a nova geração mostra-se um tanto mais criativa nos questionamentos sobre Machado. Bastou que um usuário do Twitter perguntasse: “Será que Machado de Assis tinha sotaque carioca?” para que a curiosidade se espalhasse pelas redes sociais, gerando memes de todos os tipos.
será que Machado de Assis tinha sotaque carioca? Memóriash póshtumash de Brásh Cubash e tal?
— Leandro (@durazzo) November 5, 2021
A primeira a "interpretar" Machado no sotaque carioca foi a TikToker Baueny Barroco (@bauenybarroco). Em um vídeo de 10 segundos, com uma foto um tanto quanto modificada de Machado, Baueny alcançou mais de 74 mil pessoas que ouviram a dedicatória "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas", da obra "Memórias Póstumas de Brás Cubas", no mais puro "carioquês".
@bauenybarrocoNUBANK: Compra APROVADA. "Memoriash Postumaish de Braish Cubaish - Machado de Assish" Audiobook na voz de Baueny Barroco no valor de R$1.798,12 às 03:52
? Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu - Baueny Barroco
Na toada da diversidade de sotaques nacionais, o canal Filosofia Moderna fez um apanhado que apelidou de "O Machadão de cada Estado". Nele, a dedicatória é recitada conforme cada pronúncia brasileira.
O MACHADÃO DE CADA ESTADO A THREAD PT 1 pic.twitter.com/bXs1f6m2hy
— Filosofia Moderna (@FilosofiaMderna) May 28, 2024
A partir daí, o céu foi o limite para as novas versões machadianas. Confira no vídeo:
Instinto nacionalidade
Estudioso de Machado de Assis, Cláudio Soares escreveu dois volumes da biografia do autor e afirmou em sua página na rede social X, que os amigos do escritor costumavam referir-se a ele como "o carioca por excelência", "carioca extremado" e "o mais carioca dos cariocas".
Soares também destacou que "Machado adorava a prosódia (entonação e ritmo da fala) de Carolina (sua esposa), que lhe lembrava a prosódia de sua mãe, proveniente dos Açores".
Além dos nove romances, Machado produziu críticas. Entre elas, duas abordam a tendência literária de sua época e discutem o tema da linguagem, indicando sua preocupação com o tema.
Em 1873, publicou no periódico "O Novo Mundo" texto intitulado "Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade". Nele, o autor constata que "as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes".
Percebe-se que, nesta manifestação, Machado posiciona-se contrariamente ao anacronismo do idioma.
"Querer que a nossa pare no século de quinhentos é um erro igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito, a influência do povo é decisiva. Há, portanto, certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do estilo e ganham direito de cidade."
Em outro texto, publicado no periódico "Revista Brasileira", em 1879, Machado resenha sobre"A nova geração" da poesia e literatura nacionais e sua relação com o romantismo.
"Não se pode exigir da extrema juventude a exata ponderação das coisas; não há impor a reflexão ao entusiasmo. De outra sorte, essa geração teria advertido que a extinção de um grande movimento literário não importa a condenação formal e absoluta de tudo o que ele afirmou; alguma coisa entra e fica no pecúlio do espírito humano. Mais do que ninguém, estava ela obrigada a não ver no romantismo um simples interregno, um brilhante pesadelo, um efeito sem causa, mas alguma coisa mais que, se não deu tudo o que prometia, deixa quanto basta para legitimá-lo. Morre porque é mortal."
Por esses excertos, é possível pensar que Machado, hoje, talvez admiraria a evolução pela qual passou sua obra e como seus escritos são emoldurados diante das novas tendências.
Cláudio Soares afirmou que imaginar a reação de Machado de Assis à recente viralização não é um exercício fácil, afinal, Machado não era previsível.
"Em sua juventude, era arrebatado e, na velhice, tornou-se mais reservado. É provável que ele olhasse essa viralização com muita humildade, mantendo sua tendência de sempre se manifestar na terceira pessoa."
O biógrafo de Machado afirmou que um elogio espontâneo como o da norte-americana que se apaixonou pela obra e compartilhou as impressões no TikTok, poderia deixá-lo satisfeito, "afinal, ele próprio afirmou em uma crônica: 'Eu não sou homem que recuse elogios'".
"Gosto de pensar que, se vivo fosse, Machado, um explorador inigualável das formas breves, amante das tecnologias, poderia ter um perfil bastante ativo no X (antigo Twitter). É possível até que ele antecipasse naquela plataforma trechos de seus próximos livros, mas sempre de forma discreta. Ainda que seja difícil imaginar discrição no ambiente dinâmico e expansivo do X."
Morre porque é mortal
Para compreender o que Machado de Assis pensava sobre o futuro ou a imortalidade, adentrar sua produção literária revelou-se uma expedição fascinante. Nessa incursão, os contos "Ruy de Leão" e "O Imortal" são as obras que mais se aproximam da visão machadiana a respeito do assunto.
Em ambos o escritor explora a ironia e a tragédia de uma personagem que, ao conquistar a vida eterna, descobre-a como fardo insuportável. A eternidade, que à primeira vista parece ser uma bênção, revela-se um tormento, um suplício sem fim. As narrativas questionam o valor da vida quando esta se estende indefinidamente, destacando a finitude como um elemento essencial para dar significado e intensidade à existência humana.
Em um trecho do conto "O imortal", o filho da personagem que nunca morre descreve um diálogo marcante:
"Um dia, dizendo-lhe eu que não compreendia tamanha tristeza, quando eu daria a alma ao diabo para ter a vida eterna, meu pai sorriu com uma tal expressão de superioridade, que me enterrou cem palmos abaixo do chão. Depois, respondeu que eu não sabia o que dizia; que a vida eterna afigurava-se-me excelente, justamente porque a minha era limitada e curta; em verdade, era o mais atroz dos suplícios."
Machado de Assis, com sua habilidade de tecer tramas psicológicas profundas e repletas de ironia, utilizou os contos para refletir sobre a natureza da vida e da morte. Ele sugeriu que a imortalidade, longe de ser um ideal desejável, pode transformar-se em um pesadelo, privando a vida de seu encanto e propósito.
A finitude da vida do próprio Machado, entretanto, não encerrou a influência e importância de sua obra. Pelo contrário. Cláudio Assis afirma que ela é sempre elogiada pela irreverência na linguagem, pela quebra de padrões e pela representação universal do ser humano.
A genialidade machadiana encontrou espaço em 2024 para ser revivida em um conteúdo tecnológico. Se vivesse atualmente, arrisca-se dizer que absorveria o conteúdo tecnológico com humor irônico, conforme fazia em sua literatura, sem deixar de questionar o valor da imortalidade moderna, ecoando a mesma reflexão profunda e melancólica presente em seus contos.