Na última semana de maio, o STF validou dispositivo da lei do Mais Médicos (lei 12.871/13) que prevê o chamamento público como requisito para abertura de cursos de Medicina no país.
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O chamamento é um processo que permite ao governo avaliar a necessidade e a capacidade das instituições interessadas em implementar o curso, garantindo uma distribuição equitativa e a qualidade da formação.
O debate ocorreu no âmbito de duas ações, uma movida pela ANUP - Associação Nacional das Universidades Particulares, e a outra proposta pelo CRUB - Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras. A ANUP defendeu a validade do chamamento, enquanto o CRUB argumentou que a exigência fere os princípios da livre iniciativa e da concorrência.
Nos votos, os ministros destacaram a complexidade da tarefa de equalizar um aumento - urgente - da quantidade de profissionais para levar atendimento a todo o país, sem esquecer da boa qualidade da formação profissional. Entenda como essas questões foram tratadas pelos pares.
O que é a lei do Mais Médicos?
A lei do Mais Médicos estabelece que as propostas para novos cursos de Medicina devem prioritariamente ser implementadas em regiões com menor concentração de médicos, visando reduzir as desigualdades regionais.
Além disso, as instituições de ensino superior devem apresentar um projeto pedagógico detalhado, incluindo plano de formação, desenvolvimento da docência, infraestrutura adequada e contrapartidas para o SUS. Também é necessário implantar programas de residência médica e oferecer bolsas de estudo para os alunos.
Ainda, exige que as instituições garantam a existência de infraestrutura de saúde adequada para a formação prática dos estudantes, incluindo parcerias com hospitais e unidades de saúde locais.
Essas medidas asseguram que a formação médica seja de alta qualidade e alinhada com as necessidades do SUS, promovendo uma distribuição mais equitativa de profissionais de saúde pelo país.
Dados
A justificativa trazida na MP que originou a lei do Mais Médicos considerou a necessidade de expandir e organizar a saúde básica, prioridade do ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde, devido aos vazios assistenciais no país.
À época, o CFM - Conselho Federal de Medicina estimava que o Brasil possuía 359 mil médicos ativos, apresentando uma proporção de 1,8 médicos para cada mil habitantes.
Esse número era inferior ao de outros países latino-americanos e a países com sistemas universais de saúde, como Canadá, Reino Unido e Argentina. A meta de alcançar uma proporção de 2,7 médicos por mil habitantes, considerada ideal, só seria atingida em 2035.
A justificativa também apontou a insuficiência de vagas nos cursos de Medicina, apesar do número absoluto de escolas médicas no Brasil. A proporção de vagas de ingresso era significativamente inferior à de outros países, como Austrália, Reino Unido, Portugal e Argentina.
Votos
Como relator das ações, ministro Gilmar Mendes, acompanhado pelos demais ministros, exceto por André Mendonça, votou pela manutenção do critério do chamamento público.
Ministros Edson Fachin e Rosa Weber (atualmente aposentada), acompanharam o relator mas pontuaram que pedidos de abertura de novos cursos, ainda em andamento, via processos administrativos, não deveriam ser mantidos.
Ampliação de estruturas
Em seu voto, ministro Gilmar Mendes destacou que a criação de novos cursos de Medicina deve atender à necessidade de médicos em todas as regiões do país e assegurar infraestrutura adequada para a completa formação dos novos profissionais.
S. Exa. destacou que o aumento de vagas deve ser acompanhado pela ampliação de estruturas destinadas ao internato e à residência médica, evitando a criação de cursos em áreas que não necessitam de novos médicos ou que não possuam a infraestrutura necessária.
"A falta de estrutura para a fase prática do curso de Medicina é crucial para a boa formação do médico e a Audiência Pública revelou também o consenso em torno desse ponto: o aumento de vagas em cursos de Medicina deve ser acompanhado da ampliação de estruturas destinadas ao internato e à residência médica."
Ministro Alexandre de Moraes, acerca deste aspecto, pontuou que devido ao alto nível de especialização técnica e científica exigido, há uma escassez de recursos para a formação adequada de médicos, o que, por sua vez, resulta na escassez de profissionais disponíveis para o atendimento à população.
Autonomia universitária
Gilmar Mendes afirmou que os requisitos legais para a criação de novos cursos de graduação não interferem na autonomia universitária, que se refere à gestão financeira, administrativa e curricular da instituição, e não à observância dos pressupostos objetivos para sua criação.
"[...] anoto que essas premissas constitucionais aqui desenvolvidas afastam de plano também a alegação de ofensa ao postulado da autonomia universitária. Essa garantia não constitui óbice ao planejamento estatal do ensino superior constitucionalmente legitimado, especialmente, como visto, em relação aos cursos de Medicina."
Controle de qualidade
O decano da Corte também abordou a necessidade de controle da qualidade dos cursos de Medicina e a má distribuição de médicos.
Afirmou que o mercado de cursos de Medicina funcionou sob relativa autorregulação por décadas, sem conseguir resolver a má distribuição de médicos e as deficiências estruturais nas fases de internato e residência.
"Foi exatamente esse contexto que levou ao pano de fundo destes processos objetivos: má distribuição de médicos, com bolsões de carência de ações e serviços de saúde, além de deficiências estruturais sobretudo para as fases formativas de internato e de residência. Não há como concluir que o mercado seja capaz de autorregular-se no sentido de alcançar a concretização dos comandos constitucionais sobre o tema."
Papel indutor do Estado x livre iniciativa
O ministro reforçou que o legislador optou pela centralização do papel indutor do Estado como mecanismo de equalização da oferta de médicos
Assim, a política estatal permite a instalação de faculdades de Medicina em regiões com baixa oferta de médicos e serviços de saúde, vinculando a atuação econômica dos agentes privados à finalidade pública de melhoria dos equipamentos do SUS.
Gilmar Mendes explicou que a CF sujeita a atuação de agentes privados no ensino superior à autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público, restringindo a livre iniciativa.
No contexto do SUS, as ações e serviços de saúde, incluindo a formação de médicos, são de relevância pública e sujeitas à regulamentação, fiscalização e controle estatal. A política de chamamento público busca ordenar e integrar a formação dos recursos humanos ao SUS, sem aniquilar a livre iniciativa, concluiu o ministro.
Ausência de alternativas
S. Exa. ressaltou que a política de instalação de novos cursos de Medicina, conforme a necessidade social dos municípios e o incremento dos recursos humanos e financeiros da estrutura de saúde local, é adequada ao objetivo de melhorar a distribuição dos serviços médicos no território nacional.
Destacou que, até o momento, não existem alternativas menos gravosas para enfrentar o problema da desigualdade na oferta de serviços médicos à população.
Compatibilidade constitucional e proporcionalidade
Ao final, o ministro considerou que a política pública do chamamento público é compatível com a CF. Explicou que a norma questionada é razoável e estabelece uma política pública indutora que se alinha com os parâmetros constitucionais para a atuação da iniciativa privada no sistema de ensino médico.
Embora não seja o único arranjo institucional possível, a política pública não é inconstitucional e cabe ao Executivo e Legislativo desenvolvê-la, modificá-la ou extingui-la conforme necessário.
Mais Médicos e SINAES
Gilmar também abordou a possibilidade de convivência dos sistemas do Mais Médicos e do SINAES - Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior.
SINAES
O SINAES é um sistema abrangente de avaliação da educação superior no Brasil, que tem por objetivo assegurar a qualidade de todos os cursos de graduação, incluindo Medicina. Ele realiza avaliações periódicas das instituições de ensino, cursos de graduação e desempenho dos estudantes.
Para S. Exa., a lei do Mais Médicos estabeleceu novos critérios e condicionantes para a autorização de cursos de Medicina, integrando-os ao SUS e exigindo contrapartida financeira. A admissão de dupla via para autorização de novos cursos de Medicina, segundo o ministro, inviabilizaria a política pública.
Ampliação de vagas
O ministro mencionou que, embora a lei 10.861/04 permita a ampliação de vagas em cursos existentes, essa prática não pode ocorrer fora dos critérios da lei do Mais Médicos.
Gilmar Mendes enfatizou a importância de regular e distribuir adequadamente as novas vagas, considerando as necessidades sociais e a capacidade estrutural dos equipamentos públicos.
Segurança jurídica
Por fim, o ministro abordou a necessidade de uma solução definitiva para os processos judiciais em curso, especialmente aqueles que concederam liminares para a abertura de cursos de Medicina com base na lei 10.861/04.
Destacou a importância de manter os cursos já instalados e permitir a continuidade dos processos administrativos que cumpriram os requisitos legais, garantindo a segurança jurídica e o interesse social.
Quanto a este ponto, ministro Fachin, acompanhado da ministra Rosa Weber (atualmente aposentada), defendeu que os processos administrativos pendentes, que ainda não tiveram análise documental conclusiva, deveriam ser suspensos para garantir a efetividade da política pública de alocação de médicos nas regiões prioritárias.
Posição divergente
Ao divergir, ministro André Mendonça entendeu que a abertura de novos cursos de Medicina poderia ocorrer tanto via chamamento como via SINAES.
"[...] a Lei que institui o SistemaNacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) — me parece que as disposições do seu decreto regulamentar já apontam para a existência de certo grau de inter-relação. Isso porque, a par da ementa atribuída pelo legislador — centrada no aspecto da avaliação dos cursos —, encontra-se no Decreto nº 9.235, de 2017, seção específica sobre “autorização de cursos” — Seção VIII do Capítulo II — inclusive com previsão distintiva específica relacionada aos cursos de Medicina."
Em seu voto, Mendonça destacou danos sociais causados pela má prática profissional, citando 55 mil óbitos ocorridos entre 2017 e 2018 devido a erros médicos.
Também comparou a relação de médicos por mil habitantes no Brasil com a de países da OCDE, mostrando que o Brasil, embora tenha aumentado este indicador de 1,29 em 2000 para 2,6 em 2023, ainda está abaixo da média dos demais países.
Mencionando o estudo "Demografia Médica no Brasil 2023", Mendonça apontou que o Brasil tem 11,75 médicos para cada 100 mil habitantes, ou 2,69 médicos por mil habitantes.
S. Exa. contrastou esses números com a recomendação da OMS, de um médico para cada mil habitantes, destacando que o indicador é insuficiente para compreender plenamente os desafios da saúde pública.
Assim, sugeriu que devem ser considerados outros indicadores relacionados ao perfil dos profissionais, processos de trabalho, características do sistema de saúde e necessidades da população.
Mendonça também criticou a eficácia do programa Mais Médicos em distribuir melhor os profissionais de saúde, sugerindo a necessidade de repensar as estratégias adotadas. Propôs considerar alternativas como incentivos financeiros e não financeiros, ou mesmo a restrição da liberdade de escolha dos médicos quanto ao local de trabalho.
"[...] entendo que o provimento jurisdicional mais adequado está em determinar seja formatado novo grupo de trabalho, com participação dos setores da sociedade civil diretamente interessados. No âmbito de sua atuação, referido grupo deverá promover a análise do impacto regulatório da política pública em espeque, para, após o iter procedimental técnico-administrativo — e com vistas à assegurar a efetiva e necessária participação social —, promover reanálise do programa em questão."
- Processos: ADC 81 e ADIn 7.187
Veja os votos dos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes e André Mendonça.